No Brasil, o indivíduo médio ainda aceita o diagnóstico rousseauniano de que o mal reside nas instituições e classes sociais.
“Prisons are built with stones of Law, Brothels with bricks of Religion”
– Wiliam Blake, “Proverbs of Hell”, The Marriage of Heaven and Hell
1.
Uma das possíveis razões para a doença crônica que debilita a cultura brasileira atualmente é a recorrência quase imediata não aos símbolos condensados da experiência humana, mas à teoria já diferenciada pela análise racional. Dito de outro modo, tão logo uma catástrofe, um acontecimento público ou injustiça coletiva se dão, recorre-se primeira e unicamente a um teórico ou sistema que possua suficiente poder explanatório da situação, sempre na expectativa um tanto ingênua de que todos os seus elementos constituintes, seus efeitos radiais a longo prazo e mesmo suas contingências serão, numa abrangência totalitária, absorvidos num esquema inteiramente lógico.
Invariavelmente, pois, o especialista é convocado e instado, pela expectativa comum, à interpretação e (evidentemente) resolução dos problemas que se apresentam. A infalibilidade, sendo um conceito virtualmente inescapável, abandona o campo religioso e é transportada para o âmbito da expertise, e as suas opiniões são sempre apresentadas como a voz atualizada de um João Batista condenando os erros de Herodes, o tetrarca.
Certamente que o gramscianismo jamais se preocupa com incoerência ou contradições em seu discurso, visto que o objetivo derradeiro é, antes de tudo, a promoção da desordem – e a consequente “regeneração por meio do caos” que Gary North mencionava. Nesse sentido, a demonstração de mais uma de suas incongruências torna-se apenas um preciosismo, uma curiosidade um tanto mórbida e senil por detalhes. Mas o fato é que a fala do especialista, com seu caráter moderadamente aristocrático, contrasta com a ideia tão propala pelos estudos culturais de experiência identitária, voz das ruas, etc.
Retomando a questão da experiência imediata e a diferenciação racionalista, podemos dizer que, no Brasil, o problema se dá na medida em que, na construção de seu pensamento, o indivíduo ignora, de forma recorrente, o andaime da expressão concreta e da percepção nas artes. Ora, a engenharia social, técnica máxima da modernidade, fundamenta-se na imagem do homem como uma massa dúctil; para isto, evidentemente, é necessário que seus atributos, volições e circunstâncias sejam todos homogeneizados.
Todavia, dentre as artes, a literatura, em especial, se constitui na apresentação do homem como ente heterogêneo, o qual porta, conscientemente ou não, uma abertura à transcendência ou, ao menos, para fora de suas contingências. E isto até mesmo com relação ao biologismo degradante do naturalismo, pois, embora negando toda metafísica, é certo que os autores naturalistas, enquanto estenógrafos dos movimentos orgânicos, tiveram em si mesmos a capacidade de abranger e por isso transcender as relações físico-químicos que regem seus personagens.
2.
No conto “Véspera de Páscoa”, do livro de estreia O mar não sofre coisa morta, de Leonardo Paiva, o relato de quatro mulheres que visitam um detento na prisão assume, desde o início, um tom pascal de marcha ao matadouro.
As mulheres – mãe, as irmãs mais nova e mais velha e a esposa – aparentemente se entregam à satisfação de oito presos, talvez como forma de propiciação pelo homem que é filho, irmão e esposo.
Os oito homens se serviram das quatro mulheres. Às vezes um, às vezes dois, às vezes três em uma. Só no cinco estrelas se ouviam gemidos e choros. Enquanto eles se serviam, elas pensavam no filho, no irmão, no esposo – era por ele que elas se entregavam à matilha.
As vítimas sofrem a truculência de prisioneiros que se esforçam por impor uma hierarquia jamais estável, posto que pautada na brutalidade. Uma das mulheres é aparentemente morta pela agressividade dos homens, que logo, na voluntariedade peculiar de toda ponerocracia, ditam suas novas ordens, instando para as mulheres permanecerem:
A irmã mais velha pegou as roupas da mãe e disse para ela se vestir. A esposa disse que a mãe não estava respirando. Um disse que era impressão, a velha estava boa, era só dar um puxão bem dado que ela erguia o corpo e saía pianinho. Puxou o braço da velha, a velha caiu com a cabeça de lado, o olho aberto e roxo, o nariz sangrando. O da ronda ouviu a conversa, apareceu perguntando como eles iam dar conta daquela velha morta, dar conta do que as outras mulheres espalhariam lá fora. […] O da ronda disse que eles eram uns filhos da puta, que teriam que se ver com o chefe. Um disse que o chefe era ele: o que os sete homens resolvessem ficaria decretado. Não tinha ninguém que desdissesse a sua palavra.
Ao final, todavia, há um aparente (e talvez ilusório) milagre, pois as quatro mulheres saem caminhando em meio ao pátio da prisão, como se testemunhássemos uma ressurreição. Portanto, temos toda a estrutura pascal: a imolação da inocência, o sacrifício e a ressurreição. Resta apenas a expiação, que não há. As descrições viscerais da narrativa são menos sombrias do que sua estrutura simbólica – há violência sacrificial, mas não redenção[1].
Entretanto, o que talvez sufoque a expiação seja a natureza mesma daquele a quem se sacrifica. Há aqueles que “fazem do punho o seu deus”, e nesse estado de coisas é impossível, pois, a existência de uma hierarquia do mal, ao menos no sentido literal. Evidentemente falamos do “maioral dos demônios”, mas entre estes não existe autoridade, posto que esta pressupõe a legitimidade. Há somente a ação bruta e a força coercitiva, e o direito se estabelece por meio da crueza, somente. Daí Leviatã e Behemot, ou ainda Moloque, os maiorais dos demônios que ameaçam o homem e sua ordem com o colosso de seus corpos e a promoção do caos.
Ademais, na ausência de uma lei objetiva, resta-nos somente o império da veleidade. O capricho, via de regra, constitui-se como uma das camadas subjacentes da tirania. À vista disto, todo grupo no qual a organização, ainda que pálida, se dá mediante a escalada da força, vive imerso na contingência, sendo, por conseguinte, incapaz de construir ou sustentar as coisas permanentes.
3.
Nos últimos meses, vemos a desordem no estado do Espírito Santo, as revoltas nos presídios no Norte e Nordeste do país, o acordo de paz proposto pelas FARC – após mais de 50 anos de assassinatos, roubo, sequestros e tráfico de entorpecentes –, e ainda a situação nas Filipinas, onde o povo assolado pelo narcotráfico e da violência dele resultante, elegeu como presidente Rodrigo Duterte (o “Duterte Harry”, referência ao famoso justiceiro representado por Clint Eastwood), cujos métodos também não raro transgridem a lei, e que atualmente convoca todos a seguirem-no até ao inferno na guerra pela erradicação do tráfico de drogas. Numa leitura mais imediata, o que esses acontecimentos nos revelam é o falhanço dos ideais iluministas como um todo. Habermas, por exemplo, define o pós-modernismo como uma espécie de neoconservantismo, um espírito reacionário semelhante às críticas de De Bonald e Joseph de Maistre, ferrenhos opositores da Revolução Francesa. Movido por paixão senil, Habermas advoga o modernismo, construído, segundo seu entendimento, sobre os ideais das Luzes e da razão humana – incluindo, claro, seu projeto de formalização da sociedade.
Portanto, esses acontecimentos acima listados têm sido convertidos em signos, em geral apontados, com justiça, pelos conservadores e liberais como os efeitos deletérios dos valores apregoados pelos progressistas, especialmente a esquerda histérica brasileira.
No entanto, mais do que isso, percebemos, talvez de modo definitivo, que, embora maquiado pelo discurso comum da era pós-ideológica, o que existe, na verdade, é o embate de ordens sociais inconciliáveis: no mais das vezes dois estados, um legítimo e o outro não, que comungam, entretanto, das mesmas capacidades e instrumentos de ação. No Brasil, conforme evidenciado, a questão não se resume à fragilidade de um estado de direito sitiado pelo narcoestado, mas sim a uma interpenetração de ambos. É preciso certa ingenuidade para não perceber, subjacente ao discurso esquerdista, o ideal marcusiano do criminoso ou pária como força revolucionária. Enquanto a Europa, assolada pelo discurso acusatório do pós-colonialismo, e premida por aquilo que Pascal Bruckner chamou de “tirania da culpabilidade”, se entrega, de modo sacrificial, ao abate do terrorismo, no Brasil, o indivíduo médio, embora cético quanto a isto, ainda aceita o diagnóstico rousseauniano de que o mal reside nas instituições e classes sociais (uma metonímia para a classe média, que a esquerda, propositalmente ou não, designa, de forma equívoca, como burguesia).
É possível indagar se aquilo que Sheldon Wolin, embora se referindo às estratégias conservadores na América há vinte anos atrás, é hoje pertinente ao caso brasileiro. Para Wolin, o “totalitarismo invertido” gradativamente se instalava na terra da Liberdade por meio da promoção, por parte das grandes corporações, do sensacionalismo e do consumo em massa, como elementos narcortizantes que, de modo premeditado, conduzem à abolição de seus direitos e liberdades. A despeito dos equívocos e esquematismo de sua posição, o filósofo político lança luz sobre uma das circunstâncias mais prementes em qualquer análise da violência urbana, ao menos hodiernamente no Brasil; pois, uma das formas de operação desse totalitarismo invertido é “abandonar os cidadãos mais pobres a um sentimento de desamparo e desespero político, mantendo, ao mesmo tempo, as classes médias entre o medo do desemprego e as expectativas de recompensas fascinantes, uma vez que a economia se recupere”. De fato, há aqui elementos pertinentes a uma análise política das tensões sociais vivenciadas no Espírito Santo.
Todavia, a questão crucial é a contravenção e transgressão perpetradas por aqueles que, cotidianamente, constituem o grosso dos law abiding citizens. Mercadorias por fim se tornaram espólios, e a rapina sem dúvida pode ser justificada pela ideia de retribuição – como no conto “O Cobrador”, de Rubem Fonseca (curiosamente um texto chave nos cursos de Literatura como manifesto tanto da catarse freudiana quanto da justiça social), em que todo ato barbárico é vislumbrado simplesmente como a arrecadação de uma dívida histórica.
Se um dos objetivos primordiais dos totalitarismos foi a recriação do homem segundo sua imagem e semelhança; e se falharam, ainda que momentaneamente, no estabelecimento e manutenção dessa nova raça, é certo que seus genes se manifestam agora de forma atávica. Em seu livro La haine du monde: totalitarismes et postmodernité [“O ódio do mundo: totalitarismos e pós-modernidade”], a filósofa francesa Chantal Delsol, afirma que, a despeito da condenação unânime aos totalitarismos do último século, os homens são seus herdeiros diretos. Afinal, a ambição totalitária é o desejo demiúrgico inerente ao coração de todo homem, o qual se manifesta nos esforços de negação deste mundo em prol de um outro e na concomitante tentativa de aperfeiçoamento e superação dos limites da criação.
Esse prometeísmo que conduz os grupos ao ideal de um homem perfeito (ariano ou proletário) faz com que os indivíduos levem a cabo aquilo que anteriormente fora implementado pelos governos totalitários. No caso em questão: a expropriação de bens ou a “distribuição” de renda de Estados gigantes são realizadas individualmente, caso as circunstâncias sejam propícias.
Parafraseando Santo Agostinho, é certo que um governo destituído de justiça nada mais é do que um bando de ladrões; todavia, antes disto, há aqueles dentre o povo que já haviam transformado o templo num covil de salteadores.
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NOTA
[1] Mesmo no império bélico romano, o lustrum, o ritual de purificação levado a cabo após todo recenseamento, realizado a cada cinco anos, no qual o povo se banhava no sangue de um animal, constituía-se como manutenção da ordem social e espiritual do povo.
Fabrício de Moraes
Tradutor, doutor em Literatura (UFJF/Queen Mary University of London).
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