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O tempo é um grande personagem na trama de "A Montanha Mágica", agindo contra os personagens principais.

“A montanha mágica”, de Thomas Mann (Companhia das Letras, 2016, 736)

“Goza boa saúde, está aqui apenas de passagem, como Ulisses no reino das sombras? Que audácia descer até estas profundezas, onde os mortos levam uma existência irreal, desprovida de sentido…”

Quem o diz é o Sr. Settembrini, um professor italiano, humanista e iluminista. O Ulisses em questão é Hans Castorp, recém-formado em engenharia naval e que está visitando seu primo Joachim Ziemssen no Sanatório Internacional Berghof destinado a tuberculosos nas montanhas de Davos, na Suíça. A fala de Settembrini se torna paradoxal, na medida em que Castorp tem que subir a montanha para descer aos subterrâneos da existência humana. Pensando em ficar por pouco tempo, acaba permanecendo durante mais de sete anos, sem conseguir voltar para casa — tal qual o herói grego da aventura homérica —, pois também acaba sendo diagnosticado com um início de tuberculose.

O tempo é mencionado muitas vezes durante o romance A montanha mágica, do alemão Thomas Mann, publicado em 1924, com edição recente por estas bandas a cargo da Companhia das Letras, mantendo a clássica tradução de Herbert Caro:

O tempo é o elemento da narrativa, assim como é o elemento da vida; está inseparavelmente ligado a ela, como aos corpos no espaço. É também o elemento da música, que o mede e subdivide, tornando-o interessante e precioso. Nesse ponto, como já mencionamos, assemelha-se à narrativa e difere da obra de arte plástica que surge diante de nós de uma vez, em todo o seu esplendor, e não se acha relacionada com o tempo senão à maneira de todos os corpos. A narrativa, porém, não se pode apresentar senão sob a forma de uma sequência de fatos, como algo que se desenvolve, e necessita intimamente o tempo, mesmo que deseje estar toda presente a cada instante que transcorre.

Arrisco dizer que o tempo é um grande personagem na trama, afinal não apenas marca o período cronológico do enredo, mas também tem a função de antagonista, pois age contra os personagens principais. A tuberculose é apenas o motivo que os faz ficar ali, mas ela faz parte da vida dos personagens, torna-se a essência deles. Já o tempo, um “mistério, “imaterial” e “onipotente”, “uma instituição divina e geral”, “tinha uma caráter especial e parecia feito para produzir hábitos, ainda que fosse apenas o hábito de não se habituar”. O tempo, portanto, modifica os personagens.

O tempo, por mais enfraquecida ou aniquilada que esteja a sensação subjetiva que se tem a seu respeito, possui uma realidade objetiva, enquanto age, enquanto “traz consigo”. É um problema que compete a pensadores profissionais, embora Hans Castorp, em certa ocasião, o tivesse atacado, impelido por uma presunção juvenil, o problema de saber se a conserva hermeticamente fechada e posta na prateleira se acha ou não fora do tempo. Mas sabemos que o tempo age até mesmo sobre hibernantes.

O romance é aparentemente, mas só aparentemente, monótono. Essa monotonia simboliza o cotidiano sempre igual dos pacientes do sanatório, que apenas comem, conversam, medem a temperatura do corpo, descansam, comem, conversam, medem a temperatura do corpo, descansam… Há inclusive um capítulo intitulado “O grande tédio.” Não acontece quase nada na história, basicamente formada pela descrição da rotina dos doentes no sanatório e nos diálogos e reflexões dos personagens, principalmente a contenda intelectual entre Ludovico Settembrini e seu oposto, o jesuíta Leo Naphta (“… ambos democratas por natureza, se bem que um não gostasse de sê-lo.”). O primeiro, um racionalista, anticlerical e liberal, o segundo, marxista, defensor da Igreja. Ambos representam visões ideológicas distintas dos europeus, sendo que o sanatório simboliza a Europa antes da Primeira Guerra Mundial.

Há o caso do amor do protagonista por Claudia Chauchat, que até não ocupa muitas páginas do romance, mas se torna um dos motivos para Castorp não fazer muita questão de se curar. Aqui nosso Ulisses se transforma em Penélope, na medida em que espera Claudia voltar depois de um tempo em que ela fica fora do sanatório. Ainda aparece, mais perto do final, a figura do holandês Mynheer Peeperkorn (“não há motivo para recear que entre em cena uma nova fonte de perturbações espirituais e pedagógicas”), um comerciante de café que se torna a grande admiração de Hans e brevemente acaba sendo seu rival pelo amor de Chauchat.

Assim como é interminável a estada de Castorp no sanatório, também nos parece interminável a leitura do romance. É como se realmente subíssemos uma montanha alta, muito alta, sem fim, por isso mágica. Mas nada disso torna o livro maçante. Fiquei uns dois meses lendo, com a calma necessária para apreciá-lo, intercalando, também, outras leituras. Como escreveu o crítico Harold Bloom em Como e por que ler, “o leitor que estiver aberto à interpretação de A montanha mágica encontrará um romance dotado de uma seriedade meiga e altiva, em última análise, uma obra que encerra grande paixão, intelectual e emocional.” Vale a pena a escalada.

Cassionei Petry

Professor e escritor. Seu novo livro é Cacos e outros pedaços.