Se há um grande mérito no trabalho da Penguin-Companhia, é o de chamar atenção para o romance "O Vale do Medo".
Macavity’s a ginger cat, he’s very tall and thin;
You would know him if you saw him, for his eyes are sunken in.
His brow is deeply lined with thought, his head is highly domed;
His coat is dusty from neglect, his whiskers are uncombed.
He sways his head from side to side, with movements like a snake;
And when you think he’s half asleep, he’s always wide awake.
– TS Eliot, “Macavity: The Mystery Cat”
Nove décadas depois de Sir Arthur Conan Doyle pôr o ponto final na última aventura de Sherlock Holmes que escreveu (o conto “O Velho Solar de Shoscombe”, de 1927), dezessete anos depois de a obra completa do autor cair em domínio público, escritores, editores e marqueteiros de todo o mundo seguem buscando formas de capitalizar o apetite, universal e aparentemente inesgotável, despertado pelos feitos do brilhante e excêntrico detetive vitoriano.
Uma vertente desse esforço é a das adaptações para outras mídias, que nos últimos anos rendeu produtos tão díspares quanto a série cinematográfica de Guy Ritchie, com Robert Downey Junior; a série televisiva britânica com Benedict Cumberbatch; a criativa reimaginação americana Elementary e o sensível filme Mr. Holmes, estrelado por Ian McKellen. Outra é a das recriações literárias, como o romance A Casa da Seda, de Anthony Horowitz. Uma terceira, não menos vigorosa, mas que até agora tem chamado bem pouca atenção, é a do fracionamento temático, ou oportunista, do corpus original de 60 aventuras deixado por Conan Doyle.
Esse corpus, ou “cânone” – como o conjunto é chamado por estudiosos e entusiastas – tem uma divisão clássica em nove volumes: um para cada um dos quatro romances (Um Estudo em Vermelho, O Signo dos Quatro, O Cão dos Baskerville, O Vale do Medo), mais cinco coletâneas de contos, tradicionalmente intituladas, em inglês, The Adventures of Sherlock Holmes, The Memoirs of Sherlock Holmes, The Return of Sherlock Holmes, His Last Bow e The Case-Book of Sherlock Holmes. Em português, os títulos variam de uma editora para outra. A edição completa da Zahar, por exemplo, usa “Aventuras”, “Memórias”, “Volta” (para “Return”), “Último Adeus” (para “Last Bow”) e, para o “Case-Book”, “Histórias”.
Essa partição tradicional dos relatos curtos não é arbitrária: nela, cada volume corresponde a uma das séries de contos publicadas na revista britânica Strand Magazine. Cada vez que uma série (contendo de oito a 13 histórias) completava-se, os contos eram reunidos em livro, antes que a seguinte tivesse início. Existe numa imensa fortuna crítica tratando do cotejamento temático, de contexto histórico e de qualidade entre os diferentes volumes. Há motivos para tanto: Adventures, afinal, veio à tona em 1892; Case-Book, o livro derradeiro, em 1927.
Em Adventures e Memoirs, vemos Conan Doyle apropriar-se do molde incipiente do “conto de raciocínio”, deixado por Edgar Allan Poe, refiná-lo e, ao fundi-lo à narrativa de aventuras do tipo praticado por seu conterrâneo (e contemporâneo) Robert Louis Stevenson, criar algo de novo e só seu. A partir de Return, vemos o autor testando os limites do molde, até quebrá-lo, com audácia, em vários dos episódios dos volumes finais, Last Bow e Case-Book. Mas, se não é arbitrária, a divisão tradicional também não é obrigatória: editores criativos já produziram diferentes recortes do cânone, gerando, por exemplo, compêndios da “ficção científica de Sherlock Holmes”, de suas “aventuras góticas” e assim por diante.
Moriarty’s not there!
O Livro de Moriarty, recém-lançado pela Companhia das Letras na roupagem da coleção de clássicos Penguin-Companhia, é a mais recente iniciativa do tipo em território brasileiro. Embora o livro siga, graficamente, o estilo da prestigiosa coleção internacional Penguin Classics, este volume específico parece ser, ao menos até o momento, uma jabuticaba. O recorte escolhido fica óbvio já no título – trata-se da coleção das histórias a que comparece o ardiloso professor James Moriarty. Mas essa é uma escolha, para dizer o mínimo, problemática.
Porque, a despeito da fantástica sombra que o Napoleão do Crime projeta sobre as várias adaptações de Holmes para cinema, quadrinhos, rádio e TV, de seu papel indiscutível como protótipo do supervilão intelectual – Dr. Mabuse, Fu Manchu, Lex Luthor e Ernst Stavro Blofeld, até mesmo o Imperador Palpatine de Guerra nas Estrelas, talvez não existissem sem ele – a verdade é que Moriarty tem participação ativa em apenas uma das aventuras canônicas do Grande Detetive, o conto “O Problema Final”. Pode-se dizer que ele é peça importante no enredo de outro conto, “A Casa Vazia”. Moriarty atua, ainda, nos bastidores do romance O Vale do Medo. E só. Coadjuvante em duas oportunidades, antagonista direto, somente, em uma. Como a Penguin-Companhia fez para rechear um livro de mais de 400 páginas?
Simples: juntou ali todos os contos em que Moriarty é meramente citado, ainda que só de passagem, às vezes merecendo menos de uma linha. São eles: “Construtor de Norwood”, “Atleta Desaparecido” (neste volume, intitulado “Jogador de Rúgbi Desaparecido”), “Cliente Ilustre” e “Último Adeus”, que o tradutor José Francisco Botelho optou por verter como “Última Mesura”, buscando, talvez, uma aproximação mais direta com o original “Last Bow”, onde “bow” se refere à reverência que o ator faz, curvando-se, após o fim da peça, durante os aplausos.
Não é, portanto, difícil imaginar que o leitor eventual, ignorante talvez da obra de Conan Doyle, mas fascinado pela estatura mítica de Moriarty, sinta-se enganado ao ver que, em O Livro de Moriarty, o personagem-título praticamente não aparece. Em “Jogador de Rúgbi Desaparecido”, por exemplo, a alusão não vai além de duas palavras! Com um critério de seleção tão frouxo, não custaria nada incluir aí também as aventuras mencionadas obliquamente por T.S. Eliot em seu poema felino inspirado por Moriarty, “Macavity: The Mystery Cat”: “O Tratado Naval” e “Os Planos do Bruce-Partignton”:
And when the Foreign Office find a Treaty’s gone astray,
Or the Admiralty lose some plans and drawings by the way,
There may be a scrap of paper in the hall or on the stair—
But it’s useless to investigate—Macavity’s not there!
Teoria dos Jogos
A introdução do livro, assinada por Botelho, insinua algo dessa assombrosa escassez de Moriarty no livro que leva seu nome, mas, parafraseando um contemporâneo do Grande Detetive, de forma oblíqua e dissimulada. O ensaio introdutório, meticuloso e informativo, prefere mergulhar em factoides biográficos de Conan Doyle (ele acreditava em fadas!) e no Grande Jogo – a brincadeira intelectual de ler o cânone sherlockiano como um teólogo fundamentalista lê a Bíblia, tomando ficção por história e encarando “aparentes” contradições como problemas de interpretação e “supostos” erros como portas de entrada para significados mais profundos.
Para os participantes do Grande Jogo, assim como Holmes e Watson, Moriarty foi uma pessoa real, com uma personalidade a ser desvendada. As referências canônicas, então, seriam apenas a ponta de um iceberg. Ao tratar desse Moriarty-dentro-do-Jogo, Botelho bebe, sofregamente, do artigo “The Napoleon of Crime”, de Edgar W. Smith, um dos autores da era clássica da brincadeira. Smith, citando outro eminente “jogador”, Vincent Starrett, lê sinistros significados no fato de que tanto o professor Moriarty quanto seu irmão, o coronel Moriarty, são chamados, em diferentes histórias, pelo mesmo prenome, “James”.
Ao se apoiar tanto em Smith, no entanto, Botelho deixa de explorar vias abertas por outros estudiosos. D. Martin Dakin, cujo volume A Sherlock Holmes Commentary é até hoje reverenciado como um dos textos-padrão dos estudos críticos do Grande Detetive, sugere que “James Moriarty” seria um sobrenome composto, como, digamos, “Silva Santos”. Dakin lembra ainda que, na peça de teatro sobre Sherlock Holmes escrita pelo ator William Gillette, com autorização e supervisão de Conan Doyle, o primeiro nome do professor é dado como “Robert”.
O tradutor acerta, no entanto, ao abster-se de mencionar as hipóteses heréticas dos que defendem que Holmes e Moriarty eram a mesma pessoa, ou que Moriarty não passava de uma alucinação de Holmes (ideia muito bem explorada no livro e filme The Seven-Per-Cent Solution, de Nicholas Meyer).
Passam em branco, ainda, os autores que, de fora do Grande Jogo, buscaram identificar as fontes históricas por trás do gênio do mal. Em artigo publicado em 1993 no Journal of the British Astronomical Association, Bradley Schaeffer traça um paralelo convincente entre as carreiras acadêmicas de Moriarty e do astrônomo americano Simon Newcomb: ambos escreveram tratados sobre o Binômio de Newton na juventude; ambos manifestaram interesse em asteroides na idade madura.
Quanto ao lado criminoso da figura, parece haver consenso de que Conan Doyle construiu Moriarty em torno de dois personagens históricos.
Um, Jonathan Wild, foi uma figura do século 18 (perdeu a vida na forca em 1725). Wild se apresentava como líder de uma rede informantes capaz de encontrar qualquer objeto roubado, e por algum tempo fez fama nessa atividade. A sorte virou quando se descobriu que sua rede de informantes coincidia com a súcia de ladrões responsável pelos roubos. Wild acabou tornando-se personagem de um romance satírico de Henry Fielding.
O outro, Adam Worth, viveu até 1902 e foi o verdadeiro “Napoleão do Crime”, na opinião da Scotland Yard. Líder da corja londrina no último quarto do século 19, ele se especializava em roubos de obras de arte e joias e, ao contrário do inescrupuloso Moriarty, insistia que seus asseclas não usassem violência. Durante 25 anos, Worth manteve uma valiosa pintura como “refém”, até negociar um preço para devolvê-la ao dono legítimo.
O Livro de Moriarty tampouco menciona a colaboração indireta do professor maligno para o nascimento de um ramo novo de pesquisa científica, a Teoria dos Jogos: um dos artigos seminais dessa ciência, “Wirtschaftsprognose: Eine Untersuchung ihrer Voraussetzungen und Möglichkeiten”, do austríaco Oskar Morgenstern, inclui uma análise jogo-teorética da caçada movida por Moriarty a Holmes no “Problema Final”. A mesma análise reaparece no livro que popularizou o novo campo, Theory of Games and Economic Behavior, publicado nos anos 40, nos Estados Unidos, por Morgenstern e John von Neumann.
Mas, claro, introduções têm se de espremer em espaços limitados, e uma discussão completa do Moriarty extra-canônico poderia, sem dificuldades, preencher um livro ainda mais volumoso que este, que reúne apenas as aventuras canônicas que mencionam o vilão.
Vale?
Quem chegou até aqui provavelmente deve estar impaciente para saber: mas, afinal, mesmo sem a mão de Moriarty na maior parte das histórias, o livro da Penguin-Companhia vale? Resposta curta: sim, mas é claro! Sir Arthur Conan Doyle era, e ainda é, um dos grandes narradores da literatura universal, capaz de exercer um controle acrobático e hipnótico sobre a linguagem, o ritmo da história e a atenção do leitor.
Quando se levava a sério, como nos romances históricos que, acreditava, seriam sua principal contribuição para a literatura, às vezes criava textos que sentiam o peso de uma certa empáfia vitoriana – ainda que os pouco conhecidos Micah Clarke e Rodney Stone sejam ótimos romances, apesar de tudo.
Já quando escrevia sem compromisso, era imbatível: há alguns anos, a British Library publicou os diários pessoais mantidos por Conan Doyle durante seu primeiro emprego após formar-se em medicina (cirurgião de bordo de um navio baleeiro no Ártico, porque no século 19 a medicina era raiz, não nutella), e o material é simplesmente impossível de largar. Sherlock Homes, claro, é o Conan Doyle descompromissado por excelência.
Resposta longa: sim, o livro vale, mas com a ressalva de que, se seu interesse por Sherlock Holmes ultrapassa a mera curiosidade superficial sobre o professor Moriarty, vale ainda mais a pena procurar outras edições, mais caprichadas, do cânone, disponíveis em português. Uma boa pedida são os volumes comentados lançados pela Zahar. As notas de rodapé, escritas pelo especialista sherlockiano Leslie S. Klinger, são ricas, instrutivas, divertidas e iluminam vários aspectos do mundo em que Holmes e Watson viviam suas aventuras. Para ser justo, Botelho se esforça em ilustrar o material reunido no livro da Penguin-Companhia com algumas notas explicativas que vão do útil ao interessante mas, assim como o livro em si, são mais voltadas a um leitor casual.
Os contos reunidos em O Livro de Moriarty não configuram exatamente uma lista das mais brilhantes das 56 aventuras curtas de Sherlock Holmes, e também não são típicos do detetive: vêm quase todos da segunda fase do cânone – do “Novo Testamento”? – quando Conan Doyle já não se sentia obrigado a respeitar tanto as fórmulas que haviam garantido o sucesso das primeiras investigações de Holmes. Mas também estão, com certeza, longe de ser as menos expressivas, e a tradução é, no fim, fluente e agradável, a despeito de algumas escolhas idiossincráticas. Se há um grande mérito neste trabalho da Penguin-Companhia, é o de chamar atenção para o romance O Vale do Medo.
Das quatro aventuras longas de Sherlock Holmes, é a menos conhecida e a mais subestimada pelo público em geral, embora valorizada pelos conhecedores. John Dickson Carr, biógrafo de Conan Doyle e ele próprio um talentoso autor de mistérios, incluiu-o em sua lista de melhores romances policiais de todos os tempos. O canadense Christopher Redmond, autor de vários trabalhos sobre Sherlock Holmes, refere-se ao livro da seguinte forma: “este romance pode até ser a obra-prima de Doyle”.
Escrito às vésperas da I Guerra Mundial e publicado, sob a forma de folhetim, quando o conflito já se desenrolava, O Vale do Medo incorpora vários cacoetes holmesianos que, na verdade, haviam nascido no palco e no cinema, como a figura do pajem Billy (papel que marcaria a estreia de um jovem Charles Chaplin no teatro) e o tom mais ou menos cômico do diálogo entre Holmes e Watson. É um curioso caso de o criador sendo influenciado pela percepção popular da criatura. Mas esses aspectos são meros detalhes.
O que conta são as duas narrativas contidas no romance – uma, a da solução de um mistério por Sherlock Holmes, na Inglaterra; a outra, a do desbaratamento de uma gangue terrorista nos Estados Unidos pelo agente secreto Birdy Edwards.
A gangue é chamada de “Scowrers”, no original. Uma edição anotada de The Valley of Fear, parte da coleção de Sherlock Holmes publicada pela Universidade de Oxford, aponta a expressão como derivada do inglês “to scour”, “limpar, esfregar, purgar”, mas lembra que, na Escócia (Conan Doyle era escocês), o verbo também tem o sentido de expulsar inimigos de um território, eliminar, varrer os adversários, repreendê-los violentamente. Há edições brasileiras que traduzem “Scowrers” como “Vingadores”. A edição comentada e anotada da Zahar, traduzida por Maria Luiza X. de A. Borges, preferiu manter a expressão no original. Botelho optou por “Rufiões”.
O texto usado em O Livro de Moriarty parece seguir a versão publicada na Inglaterra pela Strand Magazine, que sofreu algumas interferências editoriais por conta da guerra então em curso, como a eliminação da identidade alemã de alguns personagens e a supressão de breves parágrafos descritivos.
Em Vale do Medo, Conan Doyle antecipa, com brilhantismo, as duas principais tendências que a literatura de mistério seguiria ao longo do século 20: o golden age, em que o elegante detetive resolve um mistério cerebral como um talentoso mágico executando um truque, e o hard boiled, onde a linha que separa detetive de criminoso é mínima, e às vezes parece apagar-se num torvelinho de ação onde ninguém merece confiança.
Sherlock Holmes e Birdy Edwards representam os polos de onde depois sairiam Hercule Poirot, Continental Op e legiões de discípulos e imitadores. Ali, no Vale do Medo, já se encontravam todos – delineados com maestria.
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.