A formação humanística recebida por Roberto Campos o habilitou para entender em profundidade o mundo econômico.
Comemora-se este ano o centenário de nascimento do grande estadista e pensador liberal Roberto Campos (1917-2001). Para recordar esta ímpar figura, em sua honra publico um breve comentário sobre alguns aspectos da sua vida, obra e pensamento. Nestes momentos pelos que o Brasil passa, com o governo e a sociedade tentado fazer reformas para diminuir o tamanho do ineficiente Estado Patrimonialista, a lembrança do pensamento de Roberto Campos é norte que nos deve guiar.
Durante décadas, a figura de Roberto Campos tentou ser riscada pelo establishment no interior do Itamaraty, porquanto representava um perigo para os que tinham se encastelado no regime de sesmarias ao redor de uma opção pelo “socialismo real”, após a derrota dos alemães na Segunda Guerra Mundial.
Inicialmente, quando nosso autor optou por se habilitar em concurso para trabalhar no Ministério das Relações Exteriores em pleno Estado Novo, no ano de 1938, a maior parte dos nossos diplomatas se colocava no contexto dos interesses do Eixo. Mas, quando as forças de Hitler começaram a ser detonadas pelos Aliados na Segunda Guerra Mundial, os diplomatas correram céleres para se arrumarem em torno aos representantes das democracias ditas “populares”, chefiadas pela antiga União Soviética. Guinada de 180 graus que deixou intacto, contudo, o dogmatismo e o gosto pelo “poder total”.
Entre os Aliados, os itamaratianos fizeram a sua escolha: os russos, que representavam a nova força que se estabelecia no mundo, contrária aos americanos. A respeito do clima que se vivia no Ministério das Relações Exteriores no contexto dessa arrumação ideológica, escreve Roberto Campos em suas memórias: “O Itamaraty, situado na avenida Marechal Floriano (a antiga rua Larga de São Joaquim), era comumente apelidado de Butantã da rua Larga. São cobras, mas fingem que são minhocas – dizia-me de seus colegas o admirável Guimarães Rosa, que depois se tornaria o meu escritor preferido”.
Roberto Campos e um grupo minoritário representaram a opção por um conceito de diplomacia afinado com a democracia ocidental e alheio à busca do “democratismo” que terminou vingando no mundo comunista. Como ele mesmo destacava, virou uma espécie de “profeta da liberdade”, à maneira, aliás, de Tocqueville, que se descrevia a si próprio como um “João Batista que prega no deserto”. A respeito da opção liberal, observava Roberto Campos:
Em nenhum momento consegui a grandeza. Em todos os momentos procurei escapar da mediocridade. Fui um pouco um apóstolo, sem a coragem de ser mártir. Lutei contra as marés do nacional-populismo, antecipando o refluxo da onda. Às vezes ousei profetizar, não por ver mais que os outros, mas por ver antes. Por muito tempo, ao defender o liberalismo econômico, fui considerado um herege imprudente. Os acontecimentos mundiais, na visão de alguns, me promoveram a profeta responsável.
Nosso autor definia seu compromisso intelectual com a defesa de duas variáveis: opulência e liberdade, que deveriam estar estreitamente ligadas para não degenerarem em populismos irresponsáveis. A respeito, frisava:
Neste fim de século ressurgem tendências liberais sob a forma do capitalismo democrático. Este se baseia na convicção de que somente através do mercado se alcança a opulência, enquanto que para a preservação da liberdade o instrumento fundamental é a democracia. Ambos, opulência e liberdade são valores desejáveis. O mercado pode gerar opulência sem democracia, e a democracia, sem o mercado, pode degenerar em pobreza. Conciliar o mercado, que é o voto econômico, com a democracia, que é o voto político, eis a grande tarefa da era pós-coletivista – o século XXI.
Talvez o traço mais marcante da personalidade intelectual de Roberto Campos tenha sido a capacidade de rir de si próprio, estabelecendo uma saudável relatividade nos seus pontos de vista. Definiu-se a si mesmo, no primeiro capítulo de sua autobiografia, como o “analfabeto erudito”. Analfabeto em matéria de especialidades cartoriais que o habilitariam para um concurso público. Mas erudito por uma inegável formação humanística haurida no Seminário, onde cursou os estudos completos de Filosofia e Teologia, além de ter recebido as “Ordens Menores” (hostiário, leitor, exorcista, acólito). Lia com familiaridade o grego e o latim. E, forçosamente, para quem viveu anos a fio em meio às exigências celibatárias, a iniciação sexual começou bastante tarde, já na casa dos vinte e tantos anos — como também está registrado, com humor, na sua obra autobiográfica.
A formação humanística no Seminário fez com que Campos tivesse como pano de fundo da sua vivência intelectual a compreensão da complexidade das relações sociais, ancorando o estudo destas na meditação aprofundada sobre o ser humano. Algo semelhante ao que motivou o pai do liberalismo, John Locke, a entender as relações políticas sob o pano de fundo mais largo das exigências morais, a partir do imperativo, de inspiração medieval, do controle moral ao poder. Não em vão o maior vulto do liberalismo inglês frequentou os estudos humanísticos preparatórios para a clerezia no Christ Church College, antes de passar pelos estudos da Medicina em Oxford que o levaram, jovem praticante, a tratar do conde de Shaftesbury e virar, pelo seu intermédio, o principal assessor da liderança parlamentar no desmonte do absolutismo monárquico.
A formação humanística recebida por Roberto Campos o habilitou para entender em profundidade o mundo econômico, ao ensejo dos estudos feitos em nível de pós-graduação em Economia, na Escola de Governo da George Washington University, sob a rigorosa orientação de Edward Champion Acheson. Na mencionada universidade, ele teve contato com os maiores vultos do pensamento econômico da época, como John Donaldson, Arthur F. Burns, Gottfried Haberler, Fritz Machlup, Joseph Alois Schumpeter (que considerou que o montante das pesquisas feitas por Campos para a tese de mestrado “era suficiente para uma tese doutoral”), John Maynard Keynes e o papa da Escola Austríaca, Friedrich A. Hayek.
Assim, a passagem de Roberto Campos pela divisão de “secos e molhados” (nome jocoso dado pelo nosso autor à área de Assuntos Econômicos do Itamaraty) foi bastante profícua, tendo-o colocado, junto com Eugênio Gudin, na linha de frente da formulação das políticas econômicas que se tornariam, após a Conferência de Bretton Woods em 1944, a peça forte das relações diplomáticas. (Da mencionada Conferência, Roberto Campos participou como assessor da equipe brasileira chefiada pelo professor Gudin).
Duas etapas podem ser reconhecidas na formação do liberalismo econômico de Roberto Campos: a primeira, onde a influência maior veio de Keynes e a segunda, já derrubado o Muro de Berlim, com uma aproximação maior ao pensamento da Escola Austríaca. Mas sempre mantendo atenta a vista na construção de instituições que conduzissem o Brasil ao pleno desenvolvimento econômico com preservação da liberdade.
Roberto Campos, crítico do patrimonialismo. Ele foi, ao meu ver, um dos críticos mais sistemáticos e radicais das práticas patrimonialistas com a tendência secular a fazer do Estado negócio de família. Na sua última fala no Congresso, ao se despedir da vida pública, em 1999, frisou:
Sempre achei que um dos mais graves problemas dos subdesenvolvidos é a sua incompetência na descoberta dos verdadeiros inimigos. Assim, por exemplo os responsáveis pela nossa pobreza não são o liberalismo, nem o capitalismo, em que somos noviços destreinados, e sim a inflação, a falta de educação básica, e um assistencialismo governamental incompetente, que faz com que os assistentes passem melhor que os assistidos. Os inimigos do desenvolvimento não são os entreguistas que, aliás, só poderiam entregar miséria e subdesenvolvimento, e sim os monopolistas, que cultivam ineficiências e criaram uma nova classe de privilegiados – os burgueses do Estado. Os promotores da inflação não são a ganância dos empresários ou a predação das multinacionais e sim esse velho safado, que conosco convive desde o albor da República – o déficit do setor público.
Ricardo Vélez-Rodríguez
Colombiano, militou na extrema-esquerda até o início dos anos 70. Estudou pensamento brasileiro na PUC-RJ e foi professor da Universidade Federal de Juiz de Fora. Publicou em 2015 A grande mentira: Lula e o patrimonialismo petista. Colabora com o Estadão e outros veículos.
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