A Beija-Flor trouxe o povo brasileiro como ele é, desnudo e exposto na avenida como um Macunaíma herói e vilão.
“Jogo feito, banca forte, qual foi o bicho que deu? Deu águia, símbolo da sorte, pois vinte vezes venceu”. Esses versos marcantes compõem o grande samba-enredo “Contos de Areia”, que sagrou a Portela campeã de 1984. E homenageiam, sobretudo, o grande patrono das escolas de samba cariocas, o financiador dos imensos carros alegóricos e dos trajes adornados com penas de faisão e brilhantes: o jogo do bicho.
Ainda hoje, as escolas cariocas continuam firmemente ligadas à contravenção. Em 2013 e em 2015 duas operações policiais estouraram a sede da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, que também é uma organização social oficiosa do jogo do bicho. Para além dos bicheiros, algumas escolas de samba mantém fortes vínculos com milicianos e traficantes. Ou seja: o grosso da verba que sustenta as escolas não é dinheiro limpinho e cheirosinho. Nem nunca foi, diga-se de passagem.
Mas carnaval é tempo de fantasia, de desvencilhar-se da realidade, de viver-se o que não é. Nessa toada, veio à avenida a Unidos do Fora Temer, anteriormente conhecida como Paraíso da Tuiuti. Vestiu a toga de vestal da moralidade, ignorando os caminhos do dinheiro que bancou o desfile. E, paramentada como julgadora do cidadão, desviou o seu enredo para escarnecer do povo brasileiro que foi às ruas pedir a saída do governo Dilma.
Num constrangedor desfile, que deveria oficialmente falar sobre a escravidão, o carnavalesco-militante Jack Vasconcelos resolveu desviar-se da temática para apresentar a cartilha da blogosfera petista. Imagine um espantalho do necrogovernismo. Imaginou? Ele estava presente em alguma alegoria. Tinha tucano, tinha presidente-vampiro, tinha pato da FIESP, tinha gente vestida de verde e amarelo sendo apontada como fantoche. A única coisa que não tinha no desfile, mesmo, era coerência.
Eis que, num vacilo, revelou o carnavalesco a verdadeira razão do saudosismo dos tempos do petismo, que fez desfilar na passarela. Em entrevista ao site Carnavalesco, Jack Vasconcelos deu a sua razão para bater tão forte no atual governo e nas suas reformas, mas para silenciar quanto aos desmandos de Lula, Dilma e Sérgio Cabral: “Eu acho que é positivo a gente poder se posicionar. Muito disso tem relação com a troca de governo. Hoje somos oposição e antes éramos parceiros do poder e não podíamos arranhar a relação. Enredo mais críticos não eram incentivados. Agora com uma guerra declarada tem essa abertura maior. Os dirigentes nos deixam livres, e temos mais é que fazer”.
Revelador, não é?
Na contramão da hipocrisia em forma de samba, desfilaram na Marquês de Sapucaí a Mangueira e a Beija-Flor, grande campeã do carnaval de 2018. A Mangueira trouxe uma contundente crítica ao prefeito Marcelo Crivella, seu desprezo pela festa popular e o corte de verbas para o desfile, com o enredo “Com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco”. Cobrou muito arrazoadamente a promessa de Crivella à LIESA, feita durante a sua campanha, de que manteria o financiamento do carnaval. Num carro alegórico veio pintado uma placa imensa fazendo referência ao bispo da Igreja Universal que comanda a capital carioca, dizendo: “Prefeito, pecado é não brincar o carnaval”. Ao lado da placa, vinha um boneco da malhação de Judas, com o rosto de Crivella, e uma plaquinha com o samba-enredo salgueirense cantado por ele durante seu comício na LIESA, “Pega no ganzá”.
O enredo da Beija-Flor de Nilópolis, por sua vez, enterrava o dedo na ferida do Brasil. Num protesto que não olhava para um lado só, e que não poupou absolutamente ninguém, desfilou o brilhante enredo “Monstro é aquele que não sabe amar: os filhos abandonados da pátria que os pariu”. Apontava o brasileiro como enjeitado pelo seu país, mostrando o caos e o estado de indigência da nação. Não se escorou em pouca moral para apontar mazelas. Consciente de sua história intrinsecamente ligada ao bicho, com seu Anísio (Aniz Abrahão David), a Beija-Flor não se travestiu de escola-arauto dos bons-costumes, mas trouxe o povo brasileiro como ele é, desnudo e exposto na avenida como um Macunaíma herói e vilão.
A Beija-Flor levou à avenida Sérgio Cabral com guardanapo na testa, dançando em farto banquete, rememorando o escândalo do ex-governador carioca e ex-melhor amigo de Lula em Paris, ao lado de Fernando Cavendish e outros empreiteiros. Na Sapucaí desfilou o prédio da Petrobrás transformado em favela, com diretores da estatal tirando pizzas do forno. Não faltou uma ala referenciando Temer e Rocha Loures, com sujeitos de terno e malas de dinheiro.
Crítica social verdadeira também não faltou. Alunos tomando tiros de bala perdida em sala de aula, em referência à triste morte da menina Maria Eduarda, estavam presentes. Cariocas e turistas sendo vítimas de arrastões e de roubos atravessaram o Sambódromo. Um policial morrendo baleado nos braços da mãe, numa releitura humana da Pietá de Michelangelo, cercado de mendigos e um caixão de criança, foram à Sapucaí.
O fim do desfile foi arrasador. Colado à última ala, que trazia uma síntese do povo brasileiro: gente honesta e trabalhadora, putas, ladrões armados, gays e travestis vítimas de homofobia, mães solteiras, meninos de rua, policiais, numa verdadeira síntese de brasilidade, veio o povo. A multidão desceu as arquibancadas e tomou, de forma nunca antes vista, a passarela do samba. Mesmo a Beija-Flor tendo finalizado o seu desfile, e a bateria de Mestre Rodney se calado, o povo continuou, por minutos a fio, cantando o samba-enredo magnífico, enquanto espontaneamente desfilava. Ouvia-se um coro popular gritando, a plenos pulmões: “Oh pátria amada, por onde andarás? Teus filhos já não aguentam mais! Você que não soube cuidar, você que negou o amor, vem aprender na Beija-Flor”.
“A voz do povo é a voz de Deus”, berrava Neguinho da Beija-Flor no fim da apuração. E foi. Por mais que militantes de organizações de esquerda como o Juntos! e a UJS, tomassem a praça da apoteose na quarta-feira de cinzas berrando “Fora Temer” e vaiando notas menores à Paraíso da Tuiuti, não foi isso o que ecoou no coração dos jurados. A harmonia, quesito importantíssimo no julgamento das notas das escolas de samba, se revelou na imensa multidão que invadiu a Sapucaí, em espontâneo protesto representado pelo desfile da campeã Beija-Flor. Não deu para a Unidos do Fora Temer, não deu para Jack Vasconcelos.
“Jogo feito, banca forte, qual foi o bicho que deu?”, pergunta o samba portelense histórico. Numa paródia, “deu Beija-Flor, símbolo da sorte, que este ano venceu”. Venceu porque não fez uma crítica vazia, que só encheu os corações dos dançadores de protesto, dos twitteiros que gritam “Lula, ladrão, roubou meu coração”, que pensam poder derrubar um governo gritando “Fora, Temer!” em shows. Venceu porque fez a espinha arrepiar, mostrando que o buraco é muito mais embaixo. Venceu porque ecoou na avenida o sentimento de revolta do nosso coração, porque falou sobre o nosso estado de abandono, que não começou em 31 de agosto de 2016, mas em 22 de abril de 1500.
Lucas Baqueiro
Bacharel em Humanidades pela UFBA. Editor de política e atualidades da Amálgama.
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