Como medida de ação inteligente, efetiva e de médio e longo prazo, não há otimismo.
O Decreto de 16 de fevereiro de 2018, assinado pelo presidente Michel Temer, que institui a Intervenção Federal no Rio de Janeiro, na área de Segurança Pública, impressiona mais pelos objetivos eleitorais do atual governo federal do que pela preocupação com a violência urbana na metrópole carioca. Politicamente a manobra é ousada, pois trava a pauta do Congresso, inclusive uma joia deste governo: a aprovação da reforma da previdência. É um tiro que procura atingir pelo menos três alvos:
1. O reduto eleitoral carioca. Dar alguma resposta imediata ao caos da segurança pública no Rio, afinal, ninguém quer perder o quinhão de votos do Rio de Janeiro, segundo maior aglomerado populacional do país. De quebra, demonstra a força da União sobre um estado central no mapa político;
2. O legislativo federal. A Intervenção dá fôlego para a batalha no Congresso a respeito da reforma da previdência, o governo ganha tempo e retira o foco enquanto não tem os votos suficientes dos parlamentares; e,
3. Bolsonaro. O enredo da decisão sobre a intervenção é interessante, veio junto com a criação do Ministério da Segurança Pública; nesse sentido o governo procura dizer algo sobre o drama da violência urbana. A seu modo, claro: mais um ministério é mais dividendo político, mais trocas, mais cargos, mais apoios. Ainda assim, a visão eleitoral é clara. Através de pesquisas de opinião encomendadas pelo Planalto, e aquilo que já corre solto nas ruas, ficou claro como o tema “segurança pública” é apelativo, e como em nenhuma outra eleição nacional isso será central no pleito de 2018. A Intervenção Federal no Rio, com as Forças Armadas responsáveis pela segurança pública, pode servir para dar uma resposta àquele que melhor sabe usar o desespero da população, acossada e cansada da impunidade. O fenômeno “Bolsonaro” tem se tornado mais sério do que um “mito” aloprado com sucesso nas mídias sociais.
Para o país, o que essa intervenção significa?
Embora a medida tenha como objetivo angariar dividendos e apaziguar os ânimos dos cariocas, o apelo público por segurança é nacional. De acordo com o Decreto a Intervenção deve acabar em 31 de dezembro de 2018, quando o mais importante para o governo terá passado, as eleições. A médio e longo prazo, o que marca é a quebra de um paradigma político, o pacto federativo brasileiro, cristalizado na Constituição Federal de 1988. Ainda que esse pacto já estivesse se deteriorando há algum tempo, pelas inúmeras intervenções federais “brancas”, em operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem) no Rio de Janeiro e em outros estados do país, o fato é que a autonomia estadual era intocável.
Juridicamente, ainda o é, pois a intervenção ora em curso suspende apenas uma parte da autonomia estadual, e não ela toda. Os poderes estaduais estão mantidos – exceto na segurança pública, em que o comando passa para uma autoridade federal, no caso o general de exército Walter Souza Braga Netto. Hierarquicamente, o militar designado é subordinado ao poder civil do ministro da Defesa, Raul Jungmann. Daí porque é errado dizer que a intervenção é “militar”, ainda que a autoridade máxima da segurança pública no Rio de Janeiro seja exercida por um membro do exército.
Já do ponto de vista político, se a segurança pública estadual é o último (e quase que o único) bastião de “monopólio da violência legítima” por parte de um ente estatal, no caso do Rio ela será completamente legada ao ente federal. Ou seja, fica deflagrada a dependência do poder político local. Como contraste, é significativa a fala do chefe da Polícia Militar de São Paulo, Nivaldo Restivo, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, em 2017, ao esclarecer que no seu estado, “as forças de segurança dão conta do recado”, e dispensam as tropas federais.
De fato, a presente intervenção foi possível porque os governos do estado e do município do Rio de Janeiro são fraquíssimos e impopulares. Foi o próprio governador Luís Fernando Pezão (PMDB) quem pediu a intervenção, o que diferencia este dos demais pedidos pós-1988 – Alagoas, Espírito Santo e Brasília, quando entidades como Procuradorias Gerais e OAB demandaram a ação federal. Ademais, um terceiro e mais importante fator pesa no caso do Rio: sua tradição política é avessa ao patriotismo estadual, e a índole local é nacional. O Rio é a porta de entrada e saída do país, cartão-postal para o mundo, sede de eventos mundiais, ainda possui inúmeros prédios e instituições federais sem de fato ser capital, e onde os líderes políticos lotados em Brasília catapultam mais políticas nacionais do que dividendos locais. Para o professor Christian Lynch (IESP-UERJ) este seria o principal fator do descompasso do Rio de Janeiro no pacto federativo. E, dentro das circunstâncias políticas momentâneas, a intervenção resfria a crise de autoridade do PMDB local, reforçando o nacional.
Para o Rio, qual a dimensão da intervenção?
A novidade da medida traz uma sorte de incertezas para a população, e para as próprias autoridades. Pouco se sabe, porque a decisão foi às pressas e sem planejamento. A tônica até então era a de manter as ações de GLO, com as Forças Armadas e a Força Nacional cooperando com as polícias. Aquilo que deveria ser excepcional, torna-se corriqueiro. Quando o exército iniciava a ação de GLO no Rio em fevereiro de 2017, já se contabilizava 67 operações nos últimos 10 anos. Em 1/3 dos dias as Forças Armadas foram chamadas a ir às ruas, conforme dados do Ministério da Defesa. Ainda que isso conte para um conjunto de 17 estados do país, a cidade do Rio é a área mais atendida. Aliada ao deslocamento das Forças Armadas de sua principal função, que é a Defesa nacional, essas operações sempre foram demasiadamente onerosas ao erário público – apenas de julho a outubro de 2017, o custo delas no Rio de Janeiro foi de 25 milhões de reais.
Essa prática de convocação das Forças Armadas em âmbito civil, pós-democratização, exceto em dias de eleição, começou com a ECO-1992 – conferência internacional realizada no Rio, que reuniu autoridades e chefes de estado para debater o clima e o meio-ambiente. Naquela ocasião as Forças Armadas fizeram às vezes daquilo que se pode chamar de “polícia espantalho”: soldados circulando pelas ruas da cidade promovendo uma sensação de segurança pela mera presença armada. Isso aconteceu em meio a um verdadeiro limbo jurídico, que parcialmente permanece até hoje: embora o artigo 144 da Constituição Federal de 1988 abrigue a atuação das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem, em 1992, não havia nenhuma norma amparando tal ação.
Enquanto vigoravam essas “intervenções federais brancas”, a menção a uma “intervenção federal” efetiva mal aparecia na mídia ou entre autoridades públicas. E, quando apareceu com mais ênfase, foi pelo Judiciário em 2017: primeiro, no mês de abril, quando o Procurador-Geral da República Rodrigo Janot apresentou pedido ao STF de Intervenção Federal (IF 5215) no estado do Rio de Janeiro, tendo em vista o comprometimento do funcionamento do Tribunal de Contas local (TCE-RJ), em que se deflagrou esquema de corrupção por parte dos conselheiros; depois, em novembro, quando o desembargador federal Abel Gomes, ao votar pela restituição da ordem de prisão de parlamentares estaduais, sugeriu que o tribunal enviasse ao Supremo um pedido de intervenção, caso a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro criasse “obstáculos” ao cumprimento de decisões da Justiça Federal no Rio.
A política como ela é, é feita de oportunidades e riscos, como um cavalo que dispara ao lado e para não ser perdido precisa ser selado. A intervenção tem todo um “quê” de oportunismo, ainda que venha a calhar como medida extrema para a população. Talvez a gota d’água tenha sido o modo como o caos adentrou áreas nobres, com saques e arrastões por Leblon e Ipanema. Mais que isso, a ausência de ação por parte de governos ausentes, e o descontrole sobre as polícias locais. Desmotivada pela falta pagamento, já se sabia que a PM do Rio faria operação tartaruga durante o carnaval de 2018.
A intervenção federal tende a dar errado?
A Intervenção Federal demandada pelo presidente Michel Temer sobre o Rio de Janeiro já vem com um passivo negativo. Como medida de ação inteligente, efetiva e de médio e longo prazo, não há otimismo. O fracasso das operações de GLO com as Forças Armadas e a Força Nacional, e na cooperação com as polícias estaduais, deflagram um mal estar sobre o assunto. Há muita pirotecnia e altos custos, com pouca eficiência. O Brasil assistiu em 2017 a favela da Rocinha ser ocupada para a prisão de um traficante, Rogério 157, que saiu daquela comunidade sem ser pego, o que aconteceria apenas tempos depois, bem longe dali, e por parte da Polícia Civil.
Como já foi explicado anteriormente, a intervenção é civil, e não militar. O próprio ministro da Defesa, Raul Jungmann deixou claro que as tropas das Forças Armadas escaladas para atuarem no Rio não terão “poder de polícia” – ou seja, a responsabilidade legal sobre o cidadão, de autuação, investigação e prisão permanece com as polícias. Ao mesmo tempo, o mesmo ministro disse que a “intervenção terá tanques nas ruas, bloqueio de vias e varredura em presídios”. Significa que dois problemas que já eram percebidos nas ações de GLO serão mantidos.
Primeiro, a insegurança jurídica para a atuação dos militares das Forças Armadas no âmbito civil. Ainda que possam ser julgados na Justiça Militar, uma série de incertezas permanecem. Segundo, o conflito urbano, e mesmo se falarmos em guerra urbana, demanda um tipo de ação que é incompatível com a prática do exército – de mobilização e movimento. As ações espalhafatosas causam um efeito exclusivamente momentâneo no lugar em que tanques e carros blindados operam, mas geram um desserviço à inteligência policial, que trabalha no silêncio, com ações investigativas e mostrando sua efetividade com prisões e apreensões.
Para o fracasso dessa intervenção não ser, mais uma, tragédia anunciada, e algo de permanente ficar, o general Braga Netto pode tomar algumas iniciativas, tais como: 1)apresentar um plano estratégico, para trabalho interno e para informar a população; 2)prestigiar as instituições policiais locais, promovendo efetivamente ações de cooperação e ações de inteligência em conjunto; 3)ao mesmo tempo, gerar um debacle nas gestões atuais das polícias cariocas, fazendo uma devassa na corrupção interna, nos desvios de função, nos inúmeros casos de policiais, delegados e agentes agindo ilegalmente. Isso pode ser feito com uma auditoria nas polícias, civil e militar, nos Bombeiros, e sobre o sistema carcerário do estado; 4)procurar apoio do Judiciário para angariar respaldo jurídico às Forças Armadas, e dar proteção legal aos agentes que atuarão no Rio.
Essas medidas são importantes porque as Forças Armadas precisam se proteger. Quando o exército assume o comando da segurança pública no Rio, por ordem do Presidente da República, com efeito, uma “batata quente” foi jogada sobre os militares. Como não podem negar fogo, não podem recuar: missão dada é missão cumprida. Mas, se as coisas forem muito mal, o risco é que as Forças Armadas, e não o atual governo, se desprestigiem. O governo Temer não tem muito a perder, já está perto do fim, e boa parte da cúpula apenas vai tentar dar um jeito de manter o foro privilegiado, para em 2019 não sair de Brasília direto para o xilindró. Porém, esse grupo ainda está com a “máquina” na mão, e podem usá-la para a sua estratégia, como o fazem agora, com a prerrogativa constitucional que lhes cabe, e o voluntarismo do exército. Os militares, por seu turno, precisam ficar atentos, pois ainda representam a instituição mais bem quista do país, junto com a igreja católica.
Como essa intervenção surge com um tom de “desresponsabilização”, é bem capaz que o governo se esconda atrás dos homens de farda, como até então os governos estaduais se esconderam atrás das polícias. Quem fica na encruzilhada é o agente público responsável pelo problema, e como este não é resolvido, aquele facilmente vira um vilão. O grande risco disso tudo, entre outros, é trocarmos um bode expiatório por outro – ao invés da PM, culparemos o exército.
Luiz Ramiro
Professor de Segurança Pública (UFF/CEDERJ) e Coordenador-Geral na Fundação Biblioteca Nacional.
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