O tráfico de drogas e as milícias sempre tiveram total liberdade de ação.
1.
A intervenção federal no Rio de Janeiro foi muito tardia e incompleta. Foi uma solução tirada da caixola pelo governo Temer para maquiar o cadáver da reforma da previdência, morta pela incompetência política do Palácio do Planalto. Não vai mudar imensamente o quadro fluminense, que continuará agonizante. Uma infinidade de razões pesam contra. Mas, é desnecessária? Não: a intervenção no Rio é urgente. Explico.
A intervenção deveria ter se dado por outras razões, ainda durante o governo Sérgio Cabral, no mínimo. Caberia o seu decreto, ainda, no fim de 2017, quando deu-se a completa insolvência do estado do Rio, sob a gestão de Luiz Fernando Pezão (MDB), que deixou de pagar as contas por falta de dinheiro em caixa.
É incompleta a intervenção porque seria mais do que necessário, para reorganizar as coisas, o afastamento dos titulares do governo do Rio de Janeiro. Luiz Fernando Pezão e Francisco Dornelles não têm mais a menor condição de administrar o estado. A Assembleia Legislativa, cujo presidente esteve preso em novembro do ano passado, é comprovadamente uma zona, um antro de corrupção e prostituição do voto por dinheiro. A segurança pública está comprometida muito mais pela classe política, que hoje representa o tráfico de drogas, a milícia e o jogo do bicho, como tratarei mais adiante. Amarrados estão, convulsionando, a ordem democrática e o estado de direito. A intervenção exigível é a entrega dos poderes constitucionais do executivo fluminense à União, por inteiro.
Pezão não será afastado por três razões muito simples. A primeira, e mais óbvia, é que está filiado ao mesmo partido do presidente da república. A segunda é que o principal beneficiário no espectro fluminense (no nacional, é o próprio Michel Temer), em caso da intervenção dar certo, é o próprio MDB, que terá aí uma grande chance de catapultar ao governo do Estado o ex-prefeito Eduardo Paes. Pesaria mais contra o partido afastar o governador do que mantê-lo, afinal, como um peso morto a decorar o Palácio Guanabara, que bem deveria ter continuado se chamando Paço Isabel. A terceira razão é impedir que tramite no Congresso a proposta de emenda constitucional nº 287/16, que trata da reforma da previdência.
De acordo com o art. 60, §1º, da Constituição Federal, nossa carta magna não poderá ser emendada durante vigência de intervenção federal. Por isso, com muita sabedoria política, o presidente da república lançou mão desse instrumento constitucional excepcionalíssimo, jamais usado em toda a vigência da carta de 1988. A razão é que o governo não conseguiu um número de votos suficiente para aprovar a emenda constitucional da reforma da previdência, principal raison d’être da gestão Temer. A reprovação de uma emenda em plenário tornaria público e notório o fato de que o governo não tem mais maioria qualificada no Congresso. Retirar a emenda proposta ou lutar pelo seu arquivamento sumário seria muito feio para a imagem já corroída do governo.
Ao mesmo tempo, lançar mão do instrumento da intervenção federal manda recados muito claros. Mostra que o governo continua ativo, propositivo, saindo da lúgubre defensiva que tem se enfiado desde os dois pedidos de impeachment do presidente. Pode elevar seus índices de aprovação. De quebra, retira a exclusividade da pauta de segurança pública das mãos de Jair Bolsonaro, cacifando, em caso de resolver a grande questão fluminense, sabe lá Deus, o próprio Michel Temer à reeleição – ou aliviando o lado do candidato do Centrão.
Apesar de toda essa realpolitik, se bem aplicada, a intervenção federal objetivamente poderá resolver grande parte do problema de segurança pública em crise no estado. O general-de-exército Walter Braga Netto e o resto do seu Comando Militar do Leste não têm o que dever à milícia, ao tráfico e à banda podre da polícia. Se tiverem carta branca, podem mudar muito da caótica desgraça do Rio de Janeiro.
2.
Um livro fundamental para compreender o atual problema da segurança pública no Rio de Janeiro é Como nascem os monstros: A história de um ex-soldado da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, de autoria de Rodrigo Batista, militar expulso da corporação por crimes horripilantes, como sequestro, homicídio e tentativa de estupro. Neste livro, Batista conta como foi (de)formado ao sentar praça na “briosa” PM fluminense, e o circo de horrores que era. É assustador.
A principal razão de serviço do militar carioca, ao menos no extinto 6º Batalhão, onde servia (e diz que nos outros lugares era bem pior, como no 1º Batalhão), consistia em roubar, sequestrar, extorquir e matar. Era baseado nessa carruagem da sacanagem que todo o esquema de policiamento era montado. Os membros das rádio-patrulhas, por exemplo, pagavam ao sargenteante, ao comandante de sua companhia e ao oficial-de-dia do quartel, todas as semanas, quantias que variavam de 50 a 200 reais para que fossem escalados. Policiais de trânsito, membros de rondas especiais como GAT e Patamo pagavam muitíssimo mais – porque o lucro era maior.
O policial carioca lucra, conforme Rodrigo Batista, no atacado e no varejo. Pode lucrar com o fruto de um roubo. Pode lucrar substituindo um fuzil de um traficante morto por uma pistolinha fubanga, vendendo a arma por um dinheiro inacreditável para a milícia (ou para o próprio tráfico). Pode receber de “fechos”, pontos que pagam ao policial para fazer figuração, segurança privada, ou meramente estacionar a viatura na porta. Pode receber propinas espetaculares de contraventores, de viciados pegos em flagrante. Pode ganhar com resgate de traficantes sequestrados, que pagam centenas de milhares de reais para não serem presos ou mortos, mas libertados. E isso, meus amigos, é só no círculo dos praças.
Entre os oficiais, a sacanagem é muito mais embaixo. Além de dividirem entre si os pagamentos feitos pelos praças aos seus comandantes, pelo privilégio de melhor rapinar a bordo de uma viatura, existe uma mina de ouro por trás. Essa mina de ouro cai em conta corrente a cada semana. Do pequeno ao grande, vamos exemplificar: um policial que não quer trabalhar, e só ficar com a carteira de policial e a arma legalizada, para poder organizar seus negócios junto ao bicho ou às milícias, deposita o seu salário inteiro nas mãos do comandante de sua companhia, que divide meio-a-meio com o coronel-comandante do batalhão, seu superior hierárquico. O jogo do bicho e as clínicas de aborto pagam ao comandante do batalhão que abrange a área quantias fabulosas, todas as semanas, para que não sejam incomodados; assim também pagam os bancos privados, pela proteção extra através de uma patrulha. Lucra o coronel com o aluguel de carros blindados para incursão em favelas, com régios proventos da milícia.
Agora, vem o pior.
O grosso da renda dos coronéis cariocas, de acordo com o ex-soldado Rodrigo, vem do tráfico. Os morros pagam toda semana muitíssimo dinheiro ao comandante, para que não ocorra nenhuma invasão ao seu território, ou para que façam vista grossa a determinadas coisas. Na época de seu serviço, conta Rodrigo, havia uma proibição expressa aos militares da Tijuca de que atacassem o Morro dos Macacos, porque malas grossas de dinheiro eram divididas entre o Estado-Maior do 6º BPM. Os policiais que se aventurassem eram via de regra punidos, a menos que dividissem o espólio de guerra (era esse o objetivo da aventura: roubar) com o comando.
Assim como se lucrava muito no batalhão, delegacias de Polícia Civil também recebiam esses pagamentos, chamados pelos vagabundos de “arregos”. A ninguém interessava, por conta desse estágio séptico da segurança pública, resolver o problema. Por isso que as espetaculares forças do Batalhão de Operações Especiais, ou os esquadrões especializados da Polícia Civil, jamais dariam conta do problema. O tráfico de drogas, que domina grande parte do território carioca, e as milícias, que comandam a outra parcela, sempre tiveram total liberdade de ação.
Mas, ora, por que o governo do Estado nunca interviu nisso? Por que a classe política, tão determinada em prover o bem maior do povo, nunca se manifestou? Parece piada nos perguntarmos isso, diante da realidade. Campanhas políticas foram financiadas pelo tráfico de drogas. As milícias elegem vereadores, deputados estaduais e federais, e até tinham um candidato único ao governo do Estado em sua área: primeiro Sérgio Cabral, depois o seu sucessor, Pezão. Os arregos, isso é, a grana suja, paga no varejo para os soldados e sargentos, e no atacado para os majores e coronéis, também pingava no bolso da administração pública.
O problema não está no fato de que o policiamento ostensivo é feito por militares. A Polícia Civil também está envolvida até o talo na corrupção. A desmilitarização não alteraria absolutamente nada no quadro.
O problema não está no fato de que existe uma banda podre das polícias. Está no fato de que a polícia é inteiramente podre. Quem não é podre na Polícia Militar, por exemplo, é relegado a serviços burocráticos, à faxina, ao rancho (refeitório); ou é enviado para Iguaba Grande, Varre-e-Sai, ou Bom Jesus do Itabapoana; ou, na maioria dos casos, é morto pelos próprios conselheiros, vai para a vala, recebe honras fúnebres, tiros de festim e toque de clarim no Jardim da Saudade. Ser honesto, portanto, não é uma opção viável.
O problema não está no fato de que mata-se pouco. No Rio periférico, as execuções sumárias são uma praxe. Seja policial, seja traficante, seja vagabundo, seja ladrão, seja trabalhador honesto e de carteira assinada na mão, todo mundo morre. Pode ser de bala perdida, pode ser pelos excessos policiais, do tráfico ou da milícia: o assassínio é bastante democrático em terras fluminenses. O policial mata sem dó porque é assassinado covardemente pelo bandido, quando esse descobre sua carteirinha funcional. O vagabundo mata sem dó porque “os alemão”, os policiais, executam. É um círculo vicioso.
3.
Mas, que diferença faz colocar o general Walter Braga Netto com poderes para comandar a segurança pública e a administração penitenciária no Rio de Janeiro? O que ele pode fazer para mudar a situação?
Em primeiro lugar, o Exército não participa no carrossel de dinheiro sujo que alimenta as polícias fluminenses. Por mais que existam corruptos da maior categoria conscritos no exército, e por mais que a Brigada Paraquedista seja o principal centro de treinamento de soldados do tráfico – conforme atestado por vasta literatura, como o próprio livro indicado acima, ou em Abusado: O dono do morro Dona Marta, de Caco Barcellos (e Márcio Amaro de Oliveira, o Marcinho VP) – o Exército não está contaminado por isso. Também, pudera: por qual razão o dono de boca, o bicheiro, o miliciano, o criminoso, enfim, pagaria ao exército?
Não sabemos a diferença entre o papel e a prática, e qual é o poder de barganha dos políticos cariocas. Mas, institucionalmente, o general Braga Netto está submisso apenas ao presidente da república. Ele está horizontalmente igualado em poder ao governador do estado. Não está sujeito às pressões dos representantes eleitos do crime organizado, que se encontram na Câmara dos Deputados e na Assembleia Legislativa fluminense. Não recebe arrego, até onde se sabe, da contravenção.
Portanto, estando livre dessas amarras, e se Michel Temer for realmente inteligente e quiser cacifar-se politicamente, Braga Netto pode atuar como quiser. Pode demitir comandantes de batalhão, lixando-se para a chiadeira do miliciano da vez. Pode implodir companhias militares, transferindo seus membros para outros cantos. Pode empoderar a Corregedoria da Polícia Militar, arrebentando a espinha dorsal da corrupção policial. Pode colocar os vagabundos que pagam seu soldo ao coronel para não trabalharem, ineditamente, de volta às ruas. Pode desocupar as viaturas que protegem “fechos”, que recolhem dinheiro, que estão na rapinagem.
Uma polícia não “arregada” finalmente poderá cumprir o seu papel institucional. Poderá invadir o morro e prender o dono da área, longe da demagogia das Unidades de Polícia Pacificadora. Poderá investigar e prender o miliciano. Poderá fazer policiamento ostensivo de rua, já que o efetivo ampliar-se-á, uma vez que a porta da corrupção estará fechada e não haverá outra opção senão o serviço. O tráfico de drogas não se iguala em número de soldados às forças policiais. Nem as milícias, posto que a maioria dos militares têm preferido, até aqui, outro tipo de rapinagem. Nenhuma dessas forças são páreo para o efetivo policial completo. Terão, portanto, de desocupar área.
Contudo, isso é apenas o ideal. Acredito que a gestão do general Braga Netto como interventor federal fará ocupações paliativas. Penso que implodirá os batalhões mais escandalosamente envolvidos em corrupção. Mas, no geral, a corrupção policial, verdadeiro câncer de espinha dorsal do Rio de Janeiro, continuará existindo firme e forte. Refrear-se-á por meros dez meses, prazo de vigência do decreto, e somente conforme a necessidade de Michel Temer, que terá de fazer um malabarismo entre o que é importante para sua demonstração de força, o que é válido para sua popularidade e o apetite insaciável do MDB carioca, garantidor maior do tráfico e da sacanagem.
Eis, portanto, uma oportunidade única. Poderá o presidente da república resolver o gravíssimo problema do crime organizado carioca, presente desde o alvorecer da República, mas que ganhou maior proporção no tempo do governo de Leonel Brizola (1922-2004), que deu carta branca para a expansão do Comando Vermelho, em troca de não ser incomodado? Michel Temer pode conseguir mostrar-se como um governante de mão forte, capaz de resolver o maior problema do carioca, que é a falta de segurança, e realizar um feito único. Poderá estabelecer um contraste forte, por exemplo, entre os governos do PSDB e do PT, que em todos os níveis, estadual e federal, nunca deram conta do recado. Poderá até, quem sabe, descolar um pouco a associação da sigla “MDB” com Sérgio Cabral, patrono maior da expansão das milícias, um verdadeiro miliciano honorário. Poderá dar uma resposta clara à parcela de cidadãos que pretende votar em Jair Bolsonaro, cacifando-se como “o candidato contra a vagabundagem”, voltando a sonhar com a até então impossível reeleição.
Agora, terá Temer essa inteligência? Atacará com sucesso o problema na raiz, não por honestidade e consciência, mas para o seu próprio benefício e de sua popularidade? Ou será um frouxo, um laxo, um pusilânime, como até aqui tem sido, cedendo a qualquer chororô da bancada carioca, em troca de uma governabilidade mixa?
Isso, meus amigos, só o tempo dirá.
Lucas Baqueiro
Bacharel em Humanidades pela UFBA. Editor de política e atualidades da Amálgama.
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