A protagonista tem personalidade similar à da chatíssima Emma Bovary, de Gustave Flaubert.
[nota: contém spoilers]
“O adolescente, o anti-infantil, por ter crescido um palmo em um ano, se gloria de ser um obelisco solitário perambulando num deserto.”
Gustavo Corção
Se Lady Bird é ou não tão bom quanto diz a voz crítica das massas, não me importa. Nunca um filme é tão bom quanto diz a massa, e clamar essa obviedade com pretensões bombásticas sempre me pareceu um tanto besta. A massa, por definição, é imprecisa, pois é, sempre, hiperbólica. Tão inútil quanto dizer que um clássico qualquer é melhor do que os seus entusiastas imaginam, é afirmar que um filme contemporâneo não é tão bom quanto dizem seus fãs.
Assim, não me interesso pelo possível desconcerto entre os méritos do filme e sua absurda recepção crítica. É uma discussão entediante. Digo apenas que me surpreendi com Lady Bird. Esperava ver mais um daqueles filmes indies ou cults que desdenham da ingenuidade do interior e enaltecem as complexidades e as modas da metrópole. Enganei-me. O filme aponta em mão contrária.
Passa-se na capital do estado da Califórnia, em Sacramento– cidade onde, apesar de ser a capital, prevalece a simplicidade, a vida comum e poucos resquícios remanescentes da tradição cristã… ao contrário de Los Angeles, por exemplo, no mesmo estado.
Já na adolescência, a personagem principal não se identifica com sua cidade, está mais interessada nas novidades de Nova York. O filme, porém, longe de enaltecer as glórias escapistas da adolescência – como é moda em Hollywood –, mostra seu vazio absoluto. Trata-se de uma purgação certeira da adolescência; as complexidades desta são reduzidas a pó e sobeja a simplicidade.
A protagonista tem personalidade similar à da chatíssima Emma Bovary, de Gustave Flaubert. O conflito é quase o mesmo: ambas estão fadadas a viver em uma cidade simples, enquanto sonham com complexidades e sofisticações inacessíveis. Lady Bird cai em erros muito similares aos da cria de Flaubert: frustra-se, pois fantasia amantes heroicos em sua cabeça que nunca correspondem aos de carne e osso, tem repulsa pela própria pobreza e gosta de fingir possuir mais do que realmente possui, preferindo chegar a pé na escola que no carro simples de seu pai, por vergonha de sua condição financeira.
Batizou a si mesma Lady Bird por rejeitar o nome que lhe fora dado pelos seus pais – Christine. Quer criar sua própria persona. Tal qual Emma Bovary, presume-se autêntica e liberta, quando é escrava das próprias ilusões. Porém, o que para Emma é destino imutável, para Lady Bird é apenas uma fase. Ela consegue, pois, libertar-se do mal de nosso tempo: a adolescência perpétua.”
E é precisamente nessa mudança de fase que a mensagem da diretora e roteirista Greta Gerwig se torna interessante. A libertação apontada na obra é marcada por duas datas simbólicas: a quarta-feira de cinzas e o domingo de páscoa. Começo e fim da quaresma. Logo antes de todas as mentiras que Lady Bird contava a si mesma e aos outros começarem a se quebrar uma por uma, acontece uma missa de quarta-feira de cinzas, onde a personagem é marcada com uma cruz de cinzas na testa sob o alerta: Lembra-te que és pó e ao pó hás de voltar.
Lembrete que contraria tudo que Lady Bird fazia até então. Ou seja: tentar esquecer de sua condição real – de cinzas – enquanto inventava uma persona para se sentir melhor e mais especial que os demais. Chega ao ponto de, por exemplo, trocar sua melhor amiga por uma mais popular. A esta, ainda mente, dizendo que morava em uma mansão numa zona nobre da cidade, quando, em verdade, mora, em suas próprias palavras, “no lado errado dos trilhos”. A partir daí, pouco a pouco, a farsa que é Lady Bird vai queimando lentamente, até que resta apenas Christine, triunfante.
Pelo final, uma cena inusitada se dá. Já depois de tanto ter passado, Lady Bird – que a essa altura já usava seu nome real – vai a uma festa no campus, onde fica completamente bêbada e se envolve com um jovem hipster ateu, estereótipo de tudo aquilo que ela havia aparentemente superado. Prestes a transar com ele, Christine vomita e desmaia bêbada. É levada ao hospital. Na manhã seguinte, já na rua, pergunta a um estranho que dia era aquele, e o homem responde: domingo. Christine vai à missa: era domingo de páscoa.
Ao contrário de Emma Bovary, a “Paris” de Christine não lhe foi inacessível. Ela pôde ver de perto o quão pouco e o quão irrelevante era tudo aquilo que fantasiava, tudo que idolatrava, todas as mentiras que contava a si. Às vésperas do domingo de páscoa, assim como Cristo, Christine trava um último combate com o mundo. Encara-o de peito aberto, recebe o melhor golpe, cai, mas levanta triunfante no domingo. É quase uma alegoria, digamos, secular à história de Cristo no mundo. O nome da personagem, claro, não é à toa.
A conclusão se dá, pois, com Lady Bird e seu cabelo vermelho ressurgindo das cinzas como Christine: uma fênix. Ao contrário de Emma Bovary, uma fênix não cai com as cinzas, mas emerge delas. Tendo se agarrado àquilo que queima, acreditando no peso do mundo, Emma cedeu à purgação – virou pó junto com suas ilusões. Por sua vez, Christine enfrenta o peso de toda a glória do mundo, mas não cede, pois já sabe que essa glória é feita de pó. É quando se perde de vista essa realidade – quando se esquece da lição das cinzas – que se cai na adolescência perpétua.
Aí está o segredo da ressurreição: momento em que o mundo inteiro, ao ser enfrentado por um reles carpinteiro, é reduzido a uma cruz de cinzas que, ano após ano, marca a testa de fiéis em uma quarta-feira.
Pedro Almendra
Estudante. Vive em Teresina.
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