Brasil

A pseudociência do “Golpe” na UnB e o tiro no pé do MEC

por Carlos Orsi (22/02/2018)

Pode-se desconfiar de que o professor da UnB pressupõe o que deveria demonstrar.

Durante décadas, a Universidade de Brasília (UnB) manteve um Núcleo de Estudos de Fenômenos Paranormais (NEFP) cuja principal produção acadêmica, além de alívio cômico, foram algumas “provas” da eficácia da astrologia que os astrólogos adoraram, mas que ninguém mais levou a sério. Nature e Science não tomaram conhecimento.

A despeito de o núcleo ter consumido recursos públicos por mais de vinte anos (criado na década de 80, ele não aparece mais na lista oficial de núcleos da UnB, mas a notícia de sua extinção é, notavelmente, difícil de encontrar) e de ele ter, em dado momento, “certificado” os poderes de uma vidente acusada de assassinato, não consta que o MEC tenha mobilizado o Tribunal de Contas da União, a Controladoria-Geral ou o Ministério Público para averiguar a barafunda, como faz agora por conta da disciplina “O Golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, oferecida no curso de Ciência Política da universidade.

É fácil ver, no entanto, que o potencial de dano do NEFP sempre foi muito maior que o da disciplina criada pelo professor Luis Felipe Miguel. Vinte e poucos anos oferecendo a chancela da UnB a rabiscadores de horóscopos e buscadores da pessoa amada é muito mais grave do que seis meses de peroração petista para garotos e garotas provavelmente mais preocupados em falsificar assinaturas na lista de presença do que qualquer outra coisa.

Mas, veja só, ninguém pensou em intervir na universidade por causa do núcleo. Por quê? A resposta cínica é: porque ninguém estava nem aí. A nobre é: por causa da autonomia universitária, exatamente o princípio que o MEC ameaça pisotear, agora.

Autonomia, diga-se de passagem, não é imunidade à crítica: a existência do NEFP sempre foi duramente criticada. Autonomia é a prerrogativa de ouvir as críticas e a liberdade de avaliá-las com independência, sem ser obrigado a se curvar à autoridade.

Cursos e linhas de pesquisa estúpidos ou ofensivos são o preço da autonomia, assim como a pornografia e o mau gosto são o preço da liberdade artística: cabe tolerá-los, porque a história mostra que tentativas de tolhê-los cedo ou tarde acabam destruindo também o belo e o bom. Ao ameaçar a UnB com a força do Estado, o ministro Mendonça Filho não só revela despreparo para o cargo que ocupa, como ainda oferece aos defensores da narrativa do golpe um argumento – e um mártir.

Até mesmo este autor – que distingue “golpe baixo” de “golpe de Estado”, e vê provas materiais do primeiro, mas não do segundo, nos fatos de 2016 – fica tentado a dizer que a carapuça serviu.

E o que afirmar a respeito da disciplina em si? Pode-se desconfiar de que o professor Miguel pressupõe o que deveria demonstrar. Elementos dados como fatos estabelecidos e pontos pacíficos na ementa da disciplina – “ruptura democrática de maio de agosto de 2016”, “restrição às liberdades”, necessidade de “restabelecimento do Estado de direito e da democracia política no Brasil” – são tudo, menos isso.

Na defesa-que-diz-que-não-é-defesa publicada em sua página pessoal no Facebook, o cientista político afirma que a disciplina representa um exercício de “interpelação da realidade à luz do conhecimento produzido nas ciências sociais”. Curiosa interpelação, em que a resposta, ao que tudo indica, já vem dada antes da pergunta. O professor insiste que não abre mão do rigor científico e nem se prende a dogmatismos. Será verdade? A ementa não é promissora mas, de fato, só seus alunos poderão dizer.

“Na academia é como no jornalismo: o discurso da ‘imparcialidade’ é muitas vezes brandido para inibir qualquer interpelação crítica do mundo e para transmitir uma aceitação conservadora da realidade existente”, prossegue ele. O que é apenas meia verdade. A outra metade é a de que o discurso “contra a imparcialidade” é muitas vezes brandido por quem quer produzir um cínico nivelamento epistemológico que busca vestir opiniões como se fossem fatos, e pretende dar à convicção pessoal o peso de argumento convincente.

Carlos Orsi

Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.