A antologia "Poema-piada" concentra-se na poesia brasileira após 1922.
1.
O humor pode parecer um efeito exclusivamente subjetivo. Embora necessite, de fato, da subjetividade do destinatário para “funcionar”, ainda assim é possível discernir, com algum grau de objetividade, a intenção humorística por trás de um discurso, a não ser em casos mais refinados de ironia, em que a graça está justamente em ocultar essa intenção, pretendendo soar sério e, por vezes, engabelando quem ouve ou lê. O que torna a intenção humorística objetivamente perceptível é que, no caso da piada, ela costuma se manifestar por meio de um número limitado de expedientes linguísticos familiares. Aí está o maior desafio: surpreender o ouvinte/leitor, levando-o ao riso, a despeito da limitação e da familiaridade dos expedientes utilizados. É o que se constata na leitura do pequeno e agradável volume Poema-piada: breve antologia da poesia engraçada, organizado pelo comediante Gregório Duvivier.
Na introdução, Duvivier denuncia como anacrônica uma compreensão da poesia baseada na divisão de estilos da poética clássica, que relega o tom humorístico e os temas ordinários ao estilo baixo, enquanto a lírica — que coincide com aquilo que o leitor de hoje identifica como poesia — faz parte do estilo elevado, caracterizando-se por uma dicção mais solene e pela temática sublime. De um lado, o ridículo da sátira; do outro, o patético (o que expressa pathos, emoção) da lírica. Contudo, a modernidade, desde o romantismo, veio dissolver tal divisão, reduzida depois a pó com o advento das vanguardas estéticas no começo do século XX. Desde então, o humor integrou-se à produção poética, digamos, “oficial”, ainda que aqui e ali ouçamos vestais guardiãs de uma suposta dignidade intrínseca da poesia. Portanto, Duvivier está correto ao afirmar que os textos por ele coligidos não são fenômenos marginais e episódicos em nosso sistema literário; ao contrário, diz ele, “[o]s poemas que você encontra aqui não são o hobby de poetas canônicos — mas o próprio cânone”.
A antologia concentra-se na poesia brasileira após 1922, contando com apenas um autor anterior a nosso modernismo: Gregório de Matos. Na verdade, mesmo os escritores modernistas estão em pequeno número, pois a grande maioria dos autores selecionados pertencem à poesia contemporânea, que se estende desde a década de 1960 até os dias atuais. Talvez a desproporção na representatividade das diferentes épocas tenha como razão primeira as preferências pessoais do organizador, assim como motivações ligadas à política literária, pois o volume reúne muitos nomes próximos a Duvivier (presente na própria antologia com um poema). Porém, com base no conjunto, é possível identificar o humor como importante componente da poesia contemporânea, com uma intensidade ainda maior do que se verifica na primeira fase do modernismo brasileiro.
Para o modernismo de 1922, como assevera Oswald de Andrade nas páginas do Manifesto antropófago (1928), “a alegria é a prova dos nove”. Mais do que “alegria”, a palavra-chave é irreverência — atitude profanadora diante da tradição literária e da história nacional, com o intuito de revigorar e atualizar nossa cultura, constituindo uma espécie de nacionalismo crítico (vacina contra o ufanismo protofascista de vertentes como o Movimento Verde-Amarelo e o Grupo Anta). É o que se observa, por exemplo, em “Erro de português”, poema de Oswald incluído no livro:
Quando o português chegou
Debaixo d’uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português
Como destaca Heloisa Buarque de Hollanda em 26 poetas hoje — antologia de 1975 que apresentou ao público a poesia que circulava fora dos meios institucionais da literatura brasileira da época —, a produção dos poetas marginais e de seus colegas de geração, localizados nas primícias de nossa poesia contemporânea, caracterizava-se por uma retomada de aspectos do modernismo de 1922, dentre eles o humor, expresso na forma do poema-piada. Entretanto, parece-me que a afinidade da poesia contemporânea com o humor deriva de circunstâncias mais profundas do que apenas a releitura sistemática da poesia modernista.
Tenho defendido em outros textos que um dos traços fundamentais de nossa poesia contemporânea, pelo menos até o começo da presente década, é a tendência de fazer coincidir a linguagem poética com a função poética da linguagem. Isso teria se dado pela recepção do formalismo russo na crítica acadêmica brasileira e pela divulgação de seus princípios na teoria e na prática da poesia concreta (uma divulgação às vezes redutora, comprometida com os pressupostos do próprio concretismo). Além da ascendência dos poetas concretos sobre as gerações que lhes sucederam, há de se levar em conta a voga da crítica estruturalista no contexto da repressão levada a cabo pelo regime militar, uma vez que o estruturalismo, focado nos aspectos técnicos do texto literário, propiciava uma distância segura de temas e debates que poderiam ser considerados subversivos.
Em suma, é preciso compreender nossa poesia contemporânea tendo em vista um processo de crescente especialização (e profissionalização) acadêmica da atividade intelectual, inclusive no que se refere à produção e ao estudo da literatura. Não é por acaso que grande parte dos poetas de hoje e de nosso passado recente tenha frequentado o curso de Letras, de modo que, apesar da postura muitas vezes anti-institucional assumida por eles, não é exagero falar de um novo academicismo, com seus estilemas e lugares-comuns próprios, o que é facilmente observável nas revistas literárias editadas por alunos e que têm como público alvo os leitores universitários.
Resumindo, a função poética da linguagem, como descrita por Roman Jakobson, ocorre quando há ênfase nos elementos constitutivos da mensagem, como os aspectos fonéticos, gráficos, sintáticos etc., além da maneira como, num dado enunciado, devido à combinação específica de seus termos, uma palavra pode assumir significados diversos do convencional, explorando criativamente a polissemia. No entanto, nem a poesia se resume ao uso da função poética — pois todas as demais funções participam na construção do discurso poético —, nem tal função é exclusiva daquela, sendo muito frequente na publicidade e — o que nos interessa aqui — no humor. Como já disse, o efeito humorístico é, muitas vezes, obtido à base de expedientes linguísticos, e estes, quase sempre, estão ligados à função poética. Vejamos alguns exemplos da Breve antologia da poesia engraçada. Em “Ménage à trois”, de José Paulo Paes:
casa de ferreira
espeto de paulo
O poeta brinca com as semelhanças do sobrenome “ferreira” com o termo “ferreiro” e do prenome “Paulo” com “pau”, configurando uma figura de linguagem chamada paronomásia, que consiste numa modalidade de trocadilho. Com isso, cria-se uma paródia sacana do conhecido dito popular, baseada na conotação da palavra “espeto” como equivalente do órgão sexual masculino (outro tipo de trocadilho, de natureza semântica). Um manjado exemplo de paronomásia, mas de um autor não contemporâneo, são os seguintes versos de Mário de Quintana (“Poeminha do contra”), também encontrados na antologia:
Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!
Quanto ao emprego humorístico da polissemia, vejamos “Posição”, de Leila Míccolis:
Injustiça e veneno
é dizer que só me deito sobre os louros…
Também sobre os morenos…
A graça do poema se sustenta sobre a ambivalência do termo “louro” que, ao mesmo tempo em que se trata de uma metonímia da vitória e do sucesso, indica um indivíduo do sexo masculino de cabelos claros. Outro expediente, desta vez diametralmente oposto ao da exploração do significado conotativo das palavras, é o de tomar de maneira literal uma expressão em sentido figurado, como acontece em “Na discussão (nasce a luz?)”, de Millôr Fernandes:
Tivemos uma troca de palavras
Mesquinhas
Agora eu estou com as dela
E ela está com as minhas
Nos últimos três poemas citados, é possível perceber que a rima ocasional é um recurso da função poética bastante utilizado, quem sabe com o objetivo de dar aos textos, que ameaçam se esvair no prosaísmo, um aspecto lapidar, fechado. Mas, da antologia, o poema mais representativo do trabalho com a materialidade da palavra que define a função poética é “pequenas ocupações da poesia”, de Geraldo Carneiro, sobretudo em seus últimos três versos:
Iracema é anagrama de América
termo é anagrama de morte
dog, em inglês, é o contrário de deus
Um procedimento recorrente no corpus reunido por Duvivier é a paródia, que se aplica tanto a ditos populares (já visto em José Paulo Paes) quanto a poemas clássicos da literatura de língua portuguesa, como o soneto camoniano “Alma minha gentil, que te partiste” (Juó Bananére e Geraldo Carneiro) e a replicadíssima “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias (Cacaso). A paródia foi amplamente utilizada pelos modernistas, mas não me parece fortuito que sua retomada entre os poetas das décadas de 1960-70 coincida com o interesse acadêmico por tal procedimento e com a disseminação do conceito de intertextualidade, no encalço da chegada ao Brasil dos estudos de Julia Kristeva e Mikhail Bakhtin (este devidamente filtrado à luz do estruturalismo por Kristeva em Introdução à semanálise, publicado por aqui em 1969).
A importância do humor para a poesia brasileira contemporânea, portanto, tem bastante a ver com o relevo dado por esta à função poética da linguagem, que, sob o influxo de correntes teóricas como o formalismo e o estruturalismo, apresenta-se como a quintessência da poesia, sendo que essa mesma função é essencial às manifestações verbais do humor. O discurso poético e o humorístico compartilham uma série de expedientes linguísticos, e é como se, na piada, desnudassem-se alguns dos procedimentos que tornam poético um poema.
2.
Agora, quero me concentrar especificamente nos critérios empregados na organização do livro. Creio que, caso a proposta fosse realizar uma antologia do poema-piada na literatura brasileira, como a primeira parte do título sugere, o resultado seria mais coerente. O poema-piada não se confunde com qualquer poema humorístico — desenvolvido na primeira fase do modernismo brasileiro, ele se caracteriza pela concisão, pela coloquialidade e pela temática prosaica. Neste caso, temos uma ótima amostragem, mesmo com algumas omissões significativas, como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes; escolhas óbvias, ausentes no volume provavelmente por questões de direitos autorais. Assim, porém, três autores — Vinícius de Moraes, Juó Bananére e Glauco Mattoso — ficariam deslocados, pois seus poemas se filiam mais à tradição da poesia satírica do que ao poema-piada.
Entretanto, como uma antologia da “poesia engraçada” no Brasil, o livro peca em vários sentidos. O isolamento de Gregório de Matos no conjunto, separado por mais de dois séculos do segundo autor mais antigo, Oswald de Andrade, leva a pensar que pouco se escreveu de poesia humorística em nosso país durante esse intervalo, o que é falso. Para contrariar essa impressão, merece destaque a profícua produção dos poetas da segunda geração do romantismo brasileiro, brilhantemente estudada por Vagner Camilo em Risos entre pares: poesia e humor românticos.
Um poeta que mereceria estar presente em qualquer antologia do tipo é Laurindo Rabelo, cujo famoso poema “As rosas do cume” entranhou-se na cultura popular, chegando a ser gravado pelo cantor Falcão, expoente da música brega. Além dele, um autor que, nas últimas décadas, tem ganhado relevo por sua poesia grotesca e fescenina é Bernardo Guimarães, mais conhecido pelos enredos água com açúcar de folhetins como A escrava Isaura. No entanto, os versos de “O elixir do Pajé”, “A origem do mênstruo” e “A orgia dos duendes” poderiam figurar tranquilamente na antologia de Duvivier. Para não me limitar a autores do segundo escalão de nosso romantismo, basta citar a segunda parte do Lira dos vinte anos de Álvares de Azevedo, repleta de poemas engraçados, como “É ela! É ela! É ela! É ela!” e “Namoro a cavalo”, para ficar em apenas dois exemplos.
Até mesmo os assim considerados “sisudos” poetas parnasianos praticavam com regularidade versos humorísticos, ainda que estes não fossem incluídos em suas obras de caráter mais oficial. Alvaro Santos Simões Junior possui uma excelente obra — A sátira do parnaso: estudo da poesia satírica de Olavo Bilac publicada em periódicos de 1894 a 1904 — na qual traz à tona os poemas satíricos do príncipe dos poetas brasileiros, dispersos na imprensa de nossa Belle Époque. Outro nome bastante representativo do humor parnasiano é Emílio de Meneses, que, devido à sua verve humorística e ao estilo de vida boêmio, só pode ser aceito na Academia Brasileira de Letras após a morte de Machado de Assis, que era contra seu ingresso na instituição. Seus versos satíricos foram reunidos em Mortalhas (os deuses em ceroulas).
Enfim, estas são algumas poucas referências que, para alguém minimamente atualizado no assunto, pareceriam inescapáveis. O longo caminho que leva de Gregório de Matos a Oswald de Andrade poderia ser pavimentado com elas, incluindo fragmentos de Cartas chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga, para não deixarmos de fora um representante do arcadismo. E o melhor: todas devidamente em domínio público. Vista por esse ângulo, a antologia está longe de fazer jus à nossa tradição satírica. Talvez muitas dessas lacunas estejam relacionadas às dimensões reduzidas do livro, resultantes de um projeto gráfico arrojado, o que é uma marca distintiva da Editora Ubu. Ainda assim, a antologia teria muito a ganhar em consistência concentrando-se apenas na forma do poema-piada, principalmente no que diz respeito à sua forte presença em nossa literatura no último meio século. De qualquer modo, o livro não deixa de ser uma coleção representativa — e divertida — da poesia brasileira contemporânea, com algumas pitadas de humor modernista.
Emmanuel Santiago
Doutor em Literatura Brasileira pela USP. Autor de Pavão bizarro (poesia) e A narração dificultosa (crítica).
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