Aos seus críticos nas extremas esquerda e direita, o discurso de Macron é sempre suspeito de ideologia de classe.
1.
Napoleão definiu famosamente os ingleses como um povo de merceeiros. Além de dar expressão à Guerra dos Cem Anos simbólica que dura eternamente entre os dois lados da Mancha, a frase servia a demarcar por oposição a mentalidade francesa. O economicismo é frequentemente compreendido na França como algo de alógeno, de preferência anglo-saxão – o escritor católico J.-K. Huysmans chamou a modernidade democrática e capitalista de “grande banho de América” que levaria de roldão a Europa. Isso porque a autoimagem francesa se construiu em torno da noção de grandeur – grandeza militar, grandeza política, grandeza artística, grandeza literária. “A França não pode ser a França sem a grandeza”, escrevia o General de Gaulle nas Memórias de Guerra; para ele, a mediocridade seria sempre, em seu país, “uma absurda anomalia”. Com efeito, poucos se lembram com saudades de Luís XV, do rei burguês Luís Felipe, a turba presidencial da Terceira República – governos discretos e ordeiros que asseguraram a estabilidade sobre a qual uma burguesia se firmou e propulsionou em surdina o enriquecimento do país. Toda a nostalgia patriótica vai para os Luís XIV, os Napoleão: brilhantes artífices do Estado; ao mesmo tempo, aventureiros militares que lançaram o país à beira da ruína perseguindo uma visão de grandeur coletiva.
A grandeur é um topos político e literário. Ela corresponde a uma fusão parcial entre elites do poder e elites do intelecto que ocorreu em poucas nações modernas, remontando aos salões dos séculos XVII e XVIII. Os testamentos dos principais estadistas (Richelieu, Mazarin, Napoleão, de Gaulle) integram uma parte importante dos textos conservados nos manuais escolares, e presidentes como Pompidou e Mitterrand tiraram prestígio de sua fama de letrados (o primeiro chegou a organizar uma famosa seleta de poesia francesa que vai desde a Idade Média ao Modernismo). Ao mesmo tempo, muitos dos clássicos da literatura nacional fizeram carreira como homens públicos, uma linhagem estelar que inclui Montaigne, magistrado conciliador durante as Guerras de Religião; Chateaubriand, embaixador e par de França na Restauração, ou ainda André Malraux, ministro durante a crise de 68. A concepção da nação como entidade política e literária inscreve em profundidade a França na tradição latina sem a qual é incompreensível sua concepção vertical do Estado; também na antiga Roma encontramos sem surpresa Júlio César, Adriano ou Marco Aurélio como figuras da vida política e da história literária.
Uma manifestação recente dessa verticalidade francesa é a expressão “presidência jupiteriana” (de novo, Roma!), cunhada por Emmanuel Macron para descrever sua própria ação enquanto nono presidente da Quinta República. Os livros Revolução: a autobiografia de um líder e Macron por Macron oferecem dois vislumbres sobre a maneira como Macron se pretende parte dessa tradição, sem deixar de demarcar suas distâncias. Há, por certo, o Macron merceeiro, o Macron que, como acusam seus críticos (Alain Finkielkraut, Luc Ferry), representa a americanização da França. Um Macron que cruzou a Mancha e passou para o inimigo, para o anglo-saxão de mentalidade contábil que vê o Estado como sua vendinha e que aplica a um e a outra as mesmas regras de razoabilidade financeira. Trata-se também do Macron que faz a defesa do dinheiro e que critica o suposto complexo de seus conterrâneos quanto ao vil metal: afinal, Balzac antecipa-se ao Manifesto do Partido Comunista ao retratar a ascendência que as relações monetárias assumem na modernidade sobre as paixões e as fidelidades da antiga sociedade, e como não lembrar a cena da obra-prima cinematográfica de Marcel Carné, Les Enfants du Paradis, em que o dândi Pierre-François Lacenaire descreve a outrora boêmia Garance, agora casada com o conde Édouard de Montray, como “acanalhada pelo dinheiro”? Macron se insere em falso nessa tradição quando, ainda ministro da Economia, conclamou os jovens à “vontade de se tornarem bilionários” – talvez fazendo eco à célebre e apócrifa frase de Guizot, ministro liberal do rei Luís Felipe: Enrichissez-vous, messieurs! (“Enriqueçam, senhores!”) – ou ainda quando, em Revolução, faz o elogio da ambição e do sucesso individual, na lembrança talvez da lei mandeviliana que quer que os vícios privados geram benefícios públicos.
Bem entendido, o Macron jupiteriano nunca está longe. E, como Mazarin ou Mitterrand, é pela reputação de fino letrado que ele em primeiro lugar afirma o seu lugar à parte. Ficamos sabendo em uma das entrevistas de Macron por Macron que ele tentou a mão em um romance, lido apenas pela esposa e logo engavetado, sobre os conquistadores da América hispânica. Em outro momento do livro, conta com naturalidade que descobriu a filosofia com Kant, depois com Aristóteles, com Descartes, com Maquiavel e com Hegel (ele chegou a realizar trabalhos acadêmicos sobre os dois últimos); relembrando encontros com Paul Ricoeur, para quem trabalhou, ele resume alguns pontos do pensamento político do grande filósofo cristão, reivindicando-se dele como inspiração para sua ação pública. Na entrevista “Não vejo minha vida sem os livros”, faz a ronda em seus gostos literários: Racine, Chateaubriand, Stendhal, Céline, Fernando Pessoa, Carlos Fuentes, Albert Camus, René Char, Pascal Quignard, Michel Tournier. Poderia ter citado também sua breve experiência de pianista premiado na sua Amiens natal ou sua passagem pelo teatro – em uma sequência televisa famosa, o ainda candidato Macron encena de improviso uma cena do Misantropo, de Molière, diante das câmeras de um apresentador popular. Pirotecnia? Nicolas Sarkozy desmoralizou-se depois de haver debochado publicamente do clássico A Princesa de Clèves: sindicatos passaram a protestar em frente ao palácio presidencial com maratonas de leitura do romance. A França é um país peculiar.
Mais do que tudo, a imagem macroniana é construída com topoi literários. Eles surgem sobretudo nos primeiro capítulos, autobiográficos, de Revolução. A sua própria narrativa dos primeiros contatos com a literatura encerra ecos proustianos, na figura da avó que encarna a simplicidade dos genuínos bom gosto e sensibilidade, servindo de mediadora entre a criança e o mundo dos livros. Outra figura é, e só poderia sê-lo, o do jovem balzaquiano que deixa a família na província e que “sobe” a uma Paris sede de toda a vaidade e de todo o poder, onde “o céu é o limite” (a frase é dele!); num momento algo especular de Macron por Macron, ele próprio declara: “Tenho uma queda por esses heróis românticos cuja vida é exposta ao desconhecido, ao perigo, aos grandes espaços. Por isso que gosto muito de Fabrício del Dongo [protagonista da Cartuxa de Parma, de Stendhal], que se lança pelos caminhos com uma mente incônscia.” Nesse enredo, não falta o tema também tipicamente romântico da mulher mais velha como veículo de uma educação sentimental que é também uma educação para a realização de si e para o predomínio sobre os outros. Um tema literário ele próprio imbricado em literatura: Brigitte Macron é professora de letras à época de seu envolvimento com o aluno Emmanuel; o romance entre os dois se dá, diz a lenda, durante ensaios para uma peça de teatro escolar. Tudo nessa história aspira a roteiro de um daqueles filmes por demais literários e às vezes inassistíveis made in France.
Assim patenteado, Macron se livra a uma crítica ao nivelamento igualitário promovido pela democracia em que retine algo de Tocqueville. Ele parece remeter à visão veiculada em A Democracia na América da sociedade como o resultado de um conjunto de forças dinâmicas que se reforçam, que se equilibram, que se anulam. Assim como Tocqueville distinguia nos Estados Unidos a consequência positiva de um princípio hierárquico representado pelos magistrados e pelas associações, contra-peso à pura democracia que podia a qualquer momento degringolar em uma tirania das maiorias, assim também Macron, por outros motivos, mostra-se cético quanto à aplicação do princípio democrático livre de impurezas:
A forma democrática é tão pura e procedural no plano teórico que ela precisa de uma representação momentânea: ela deve aceitar algumas impurezas se deseja alcançar uma forma concreta de existência. Essa é a grande dificuldade. Preferimos os princípios e os procedimentos democráticos à liderança. Assim como preferimos o procedimento deliberativo pós-moderno à confrontação de ideias no real. Ou seja, se quisermos estabilizar a vida política e sair da situação neurótica atual, precisamos, mantendo o equilíbrio deliberativo, aceitar um pouco mais a verticalidade. (Macron por Macron)
A crítica à democracia desemboca em uma interpretação histórica da França republicana como eternamente órfã de um rei que encarnasse essa verticalidade. Seria dizer que Macron, fundamentalmente centrista, teria preferido que a Revolução Francesa se tivesse detido na monarquia constitucional, evitando os excessos da tirania jacobina posterior? Sua reflexão tem algo de ousado, perceptível sobretudo a quem já se conviveu com franceses para quem a República é sacrossanta: na Basílica de Saint-Denis, as insígnias reais dos últimos monarcas, circundadas por tumbas de reis e por conjuntos habitacionais de imigrantes, perdem a cor e o viço, negligenciadas. Nada disso apaga, segundo Macron, uma nostalgia da monarquia:
A democracia carrega hoje uma forma de incompletude porque ela não satisfaz em si mesmo. No processo democrático e no seu funcionamento, existe uma ausência. Na política francesa, essa ausência é do rei, de quem, acredito, o povo francês não quis a morte. O terror aumentou um vazio emocional, imaginário e coletivo: o rei não está mais entre nós! Logo depois, tentamos dar novos poderes a esse vazio, colocar outras figuras: são os momentos napoleônico e gaullista, principalmente. No resto do tempo, a democracia francesa não preencheu o vazio. Vemos isso claramente no questionamento permanente da figura presidencial, desde a partida do general de Gaulle. Depois dele, a normatização da figura presidencial reinstalou um lugar vazio no coração da vida política. Enquanto isso, o que esperamos do presidente da República é que ele ocupe essa função. Tudo foi construído sobre esse mal-entendido. (Macron por Macron)
Na realidade, não é apenas que o Macron jupiteriano não está longe do Macron merceeiro; é que este é instrumento daquele. Não há mais oposição entre ética heroica e vida econômica, entre grandeur e prosperidade; há um heroísmo da vida econômica, uma grandeza no melhoramento capitalista. Algo aí remete à sensibilidade dos EUA, que erige o empreendedorismo a um status épico. Chateaubriand vislumbrara nas suas Memórias de Além-Túmulo (1849) que a preponderância vindoura da vida americana substituiria as conquistas da indústria e do conforto material à sede de glória dos reis e dos nobres de outrora. Macron vê um novo momento capitalista se abrir em nossa época e tenta extrair as consequências morais dessa situação: que novas formas de valor, de aretê, ela pode ensejar?
2.
Revolução é, antes de tudo, um daqueles livros de campanha que são comuns nos períodos eleitorais em democracias desenvolvidas como os Estados Unidos e a Europa, onde a discussão programática, supõe-se, prevalece sobre o puro clientelismo. Nessas publicações, os candidatos dão a conhecer aspectos cuidadosamente selecionados das suas vidas e detalham seus programas, vinculando-os a um projeto nacional – no caso de Macron, francês entre franceses, ele busca fazê-lo a partir de uma visão retrospectiva da história nacional.
O título pode ser enganador. Nomear um livro de campanha com a palavra “revolução” em um país que conheceu tantas (e a mais célebre de todas) não pode ser inocente. No entanto, e os capítulos programáticos não deixam dúvidas, não estamos às voltas com um piromaníaco. Todo o tempo, Macron busca inscrever as inovações propostas na longa duração, usando de uma retórica que ressalta as continuidades mesmo ao assinalar a urgência da reforma.
Onde estaria então a “revolução” evocada no título? Muito mais do que uma proposta, a revolução de Macron é uma constatação. A globalização, as novas tecnologias, a questão ecológica: eis três fatos que conspiram a fazer do nosso um mundo revolucionado. Não é gratuito que eu tenha escolhido o verbo no particípio passado: a ideia de revolucionar o mundo, na voz ativa, relaciona-se ao sujeito moderno, sujeito da História que transforma o acontecimento em movimento, que conduzia os eventos em um sentido único. A complexidade de um mundo interligado de mil e uma maneiras, as externalidades incalculáveis geradas por uma poeira de inovações tecnológicas, realizadas a seu turno por atores diversos em várias partes do globo, tornaram a rédea do sujeito sobre a História larga o suficiente para desfazer qualquer pretensão de controle absoluto. A revolução não é mais o que fazemos; ela é o que nos acontece.
No caso da França, essa revolução, para a qual os anos 80 representaram um ponto de virada, é vivida com sentimentos mistos de entusiasmo e de traumatismo. O universalismo é um dos componentes maiores de algumas de suas principais correntes de pensamento francês, e o dépaysement, a atração por paragens desconhecidas e pelo outro sábio e insondável é uma constante da vida intelectual no país desde os canibais brasileiros sobre os quais se debruçou Montaigne, passando pelos persas a que Montesquieu derrogou a prerrogativa de estranhar e de criticar a sociedade em processo de esclerose do Antigo Regime e o mundo muçulmano em que os grandes do romantismo, de Nerval a Delacroix, buscaram um espelho reverso da França burguesa. A mensagem da própria Revolução não conhecia fronteiras; Napoleão foi levá-la ao então atrasado mundo germânico; o colonialismo republicano instalou o prefeito e a laicidade entre os bérberes e as areias do Norte da África. Era uma globalização centrada em uma cultura política herdada da Revolução e na influência universal de uma língua e de pensamento filho do Iluminismo. Ora, a globalização dos anos 80 baseava-se na finança, no comércio e na inovação tecnológica; o ideal da laicidade francesa, que tirara países como a Turquia da égide da tradição, encontrou uma concorrência crescente nas religiões descentralizadas cuja metástase global se serve inclusive dessas novas tecnologias, e a cultura que punha o livro no centro da vida intelectual e que igualava o domínio do francês ao acesso ao que havia de mais avançado no pensamento passou a lidar com a rivalidade de uma ciência globalizada em inglês, também a língua da indústria cultural planetária que provê os modelos de desejo das classes médias internacionais. Não é a toa que os franceses experimentem por esse admirável novo mundo um certo fascínio e a angústia de um relativo descentramento.
A relação com a realidade interna da Nação é ainda mais ambígua, e Macron a leva em consideração a cada ponto. A França pós-revolucionária é a primeira nação democrática em sentido moderno, formada pelo confluência de um Estado, um território e um povo, e era nesse quadro que a discussão social evoluiu no contexto de uma economia industrializada: direitos trabalhistas, política industrial, proteção social, sistema de saúde, educação nacional. Assim a França se tornou uma das histórias de sucesso do século XX: segue-se ao desmoronamento do país na Segunda Guerra o período conhecido como os Trinta Gloriosos (1945-75), em que as classes médias se expandem, o crescimento dispara, a demografia é favorável, o pleno emprego faz-se acompanhar do aumento do nível de vida dos trabalhadores, e consolida-se uma sociedade do consumo. Some-se a isso o prestígio internacional do país, que irradia por toda parte seus principais movimentos em todas as áreas, do existencialismo a Christian Dior e à Nouvelle Vague. Um papel importante nessa recuperação espetacular coube ao Estado, que dirigiu parte considerável da retomada econômica e que estabeleceu os princípios de um Estado-Providência generoso, dirimindo a tensão social inerente aos períodos de acelerada industrialização. Os resultados desse momento foram duradouros, e em 1988 a Economist listava a França, seguida pela Grã-Bretanha e precedida dos Estados-Unidos, como o segundo melhor lugar para nascer no planeta. Significativamente, em 2013, os Estados-Unidos desabaram à 16a posição, a França à 27a e a Grã-Bretanha à 28a, as velhas joias da coroa cedendo o passo às social-democracias escandinavas ou a tigres asiáticos, além da Austrália e do Canadá.
O evento que explica esse desabamento seria precisamente a revolução que começara naquela própria década de 80 e na qual Macron se propõe a inserir de pleno a França em uma posição de força, ainda que com relativo atraso. Seu diagnóstico é o de um descompasso entre os meios postos em prática pelo Estado para assegurar o êxito nacional no Pós-Guerra e o mundo revolucionado pela globalização a cuja criação a própria França contribuiu ao levar à frente o projeto da União Europeia. O novo cenário propicia a desindustrialização das velhas nações em prol das fronteiras industriais, de legislação propícia e condições laborais por vezes dickinsonianamente miseráveis. Sua retórica situa-se muito longe do linguajar algo adolescente que denuncia qualquer proteção social como o caminho para a servidão. A questão parece bem mais a de conciliar com o novo mundo pós-nacional e pós-industrial, transformando-a, a herança do Estado de Bem-Estar, cujos sucessos são ainda vivos nas consciências e que mesmo hoje está longe de colecionar só fracassos (basta comparar os dados do sistema de saúde francês com o americano).
Essa visão de uma ruptura (revolução!) entre o mundo nacional e industrial de ontem, com sua relativa fixidez, e o mundo da economia digital sem fronteiras, de proeminência dos serviços e de novas formas de trabalho, serve de enquadramento histórico ao projeto macronista. Ele se exprime frequentemente pela construção nem… nem para eludir as opções clássicas de esquerda e de direita – evasão (ou síntese?) a que responde a fundação do próprio movimento En Marche!. É assim com o debate em torno do “reaquecimento” baseado na despesa pública e do “rigor” prevendo a redução da mesma despesa para fomentar um crescimento sustentável; a resposta centrista de Macron é a queda durável das despesas e o investimento público em áreas-chave (energia, educação, saúde, economia verde). É assim também com relação aos direitos trabalhistas: nem a redução “unilateral de direitos de todos os assalariados”, nem a conservação de regras rígidas “por vezes totalmente inadaptadas”; antes, a definição na legislação de grandes princípios (igualdade de gênero, salário mínimo, etc) e sua implementação por meio de acordos setoriais e empresariais por meio de sindicatos fortes. É assim também com relação à indústria: nem a fórmula dirigista clássica, mas ultrapassada (“colbertista”), que assegurou o enriquecimento do país no passado, nem a proposição, comum em meios liberais ortodoxos, de que a melhor política liberal é a de não ter uma, mas a adoção de uma estratégia de Estado menos centrada na ideia de proteção à indústria do que no estímulo à criação de empresas inovadoras no lugar das obsoletas. Foi, aliás, essa visão que marcou um momento forte da campanha de 2017: precisamente em Amiens, Marine Le Pen e Emmanuel Macron comparecem no mesmo dia a uma empresa que anunciava a demissão de todos os funcionários em vista de sua deslocalização para a Polônia; ao passo que a candidata do Front National usava da ocasião para reforçar seu discurso protecionista, Macron acusou-a de demagogia, insistindo, frente a uma plateia hostil de operários, não poder garantir o não-fechamento da empresa e a proteção da indústria nacional a qualquer preço (isso resultaria por sua vez no fechamento de empresas estrangeiras atuando no território nacional), mas ressaltando um ponto recorrente em Revolução: o apoio do Estado ao re-treinamento e à troca de setor.
O episódio é revelador de um traço forte do macronismo. Havia na social-democracia em sua forma clássica uma sensibilidade ao “lado fraco” (o trabalhador), a ser protegido do “lado forte” (o patronato) por um conjunto de regulações que equilibrassem o sistema. No liberalismo macronista, o papel do Estado é menos o de proteger do que o de apoiar o indivíduo em um processo de emancipação que se configura como a realização de um projeto, ao mesmo tempo pessoal e profissional. “O Estado não deve se limitar a oferecer uma rede de segurança – isso é o mínimo. Ele deve permitir que cada pessoa expresse todos os seus talentos e toda a sua humanidade, onde quer que ela se situe” (Revolução). Não é que a proteção social seria abolida, mas ela é reinterpretada: como pode ela se restringir à proteção ao trabalhador se o assalariamento se reduz de toda evidência? Daí a ideia de proteção ao indivíduo, estendendo os benefícios de uma seguridade social forçosamente mais enxuta tanto ao assalariado quanto ao profissional liberal – tão mais porque o indivíduo na nova economia de serviços assume frequentemente esses papéis ao longo da vida, quando não ao mesmo tempo. Daí também a ideia de reformar o seguro-desemprego, que não mais seria um seguro, mas o financiamento do indivíduo pela coletividade (por meio do imposto) para apoiá-lo em períodos de formação e de reorientação profissional (quando não, poderíamos pensar, de direcionamento ao empreendedorismo).
O itálico sobre o termo projeto não vem por nada no parágrafo anterior. Projeto é a grande palavra das classes profissionais nos grandes centros urbanos que fazem o grosso do eleitorado e dos simpatizantes de Macron, o que torna seu discurso sempre suspeito de ideologia de classe aos seus críticos nas extremas esquerda e direita. Nos meios da administração, a palavra “projeto” já foi elevada às nuvens, e fala-se mesmo de uma cultura projeto – como seria de esperar – proativa, inovadora, flexível. De uma perspectiva crítica, os sociólogos Luc Boltanski e Ève Chiapello identificam na cité par projets (cidade por projetos) uma espécie de novo espírito do capitalismo. Para o antigo quadro do Partido Socialista que é Macron, a noção de projeto deve apresentar um atrativo fundamental; ela responde à inquietação, herdada do marxismo, quanto ao problema fundamental do trabalho no capitalismo, o da alienação. Onde o capitalismo oriundo da Segunda Revolução Industrial insistia no aspecto meramente operatório do trabalho (o caso clássico era o fordismo), o novo capitalismo exige um conjunto de competências adquiridas ao longo da vida, dentre as quais a criatividade não é das menores. Onde o antigo capitalismo estipulava uma separação estrita entre vida pessoal e vida produtiva, a cidade por projetos exige o engajamento holístico, de toda a pessoa. Onde a economia industrial clássica estabelecia um regime rígido do tempo, o novo sistema produtivo insiste sobre a flexibilidade na relação tempo-trabalho. Onde o sistema antigo previa uma relação passiva e de longa duração com um mesmo posto de trabalho, o ato hoje que identifica o habitué da cultura-projeto é a passagem ativa a um novo projeto tão logo se conclua o anterior. O “todo” do sujeito é implicado a cada momento, borrando as barreiras entre vida pessoal e profissional e transformando o trabalho de algo alheio (alienado) a uma forma de auto-expressão e, portanto, de realização de si. É o famoso capitalismo-artista. Para alguns, essa é a definição mesma do inferno, e é fácil a sociólogos de esquerda ou de direita tradicional desmascarar aí uma nova forma, mais perfeita e insidiosa, de alienação. No caso do macronismo, podemos pensar que é em uma noção algo heroica do projeto que ele encontra aquela consequência moral da nova economia, a sua forma própria de aretê.
Quem fala em projeto fala não somente em flexibilidade, mas também e sobretudo em mobilidade, e essa é uma das palavras entronizadas em Revolução. Ela surge de tempos em tempos no livro associada a outra, de grande expressividade: o progresso. Há uma certa coragem em reclamar-se do progresso em 2018; desde o fim do comunismo, nada parece mais antiquado do que crer no movimento unívoco do gênero humano em um certo sentido; o chamado progressismo americano tem sido mais e mais esquadrinhado e criticado, haja vista seus excessos; e a coisa fácil a um conservador de internet é acumular citações de Baudelaire ou de autores católicos do século XX pondo tal noção no pelourinho. Se estudássemos a palavra cuidadosamente, veríamos que nem sempre ela corresponde à certeza mística de um melhoramento humano universal, justificatória das piores crueldades contra os recalcitrantes, podendo em realidade se declinar de diferentes maneiras.
No livro de Macron, o progresso inscreve-se em outro registro e responde por um estado social a que muitos conservadores subscreveriam. Ele significa a passagem de uma sociedade fixa, de estatutos, de rendas, de corporações e de direitos assegurados a uma sociedade da fluidez e da mobilidade social irrestrita. Significativamente, é nesse contexto que Revolução faz das raras referências à Revolução, à Grande Revolução, à de 1789, àquela que a direita rejeita em bloco por conhecê-la mal e reduzi-la frequentemente ao Terror. Sua referência é em especial à Lei Le Chapelier. Macron sugere que a França contemporânea parece viver em algo próximo ao Antigo Regime, ao estado anterior à dissolução, proposta por um Isaac Le Chapelier nutrido de liberalismo fisiocrata, das guildas e das corporações operárias e camponesas (a propósito, a lei terá por consequência igualmente a dissolução da guilda de profissionais intelectuais – a Universidade – e das escolas de Medicina, fazendo desta uma profissão liberal desregulamentada por um breve período). Daí ele voltar-se contra certo sindicalismo, contra os contratos estáveis de duração indeterminada, contra as diversas formas de estabilidade – tudo para cumprir a promessa de progresso social propalada pelas alas liberais dos revolucionários de 1789. Seriam os beneficiários do sistema de posições fixas que o travam e que impedem a criação de novos empregos, o que redundaria no desemprego estrutural e na fratura entre gerações e populações, de origem imigrada e autóctone. Em coerência doutrinal, também Macron ataca as travas identitárias – de religião, de gênero, de orientação sexual, de origem étnica – que impedem os indivíduos de se realizarem em um projeto ao mesmo tempo existencial e econômico. A mobilidade é o remédio macronista aos males da sociedade, do terrorismo à dissociação entre metrópoles globalizadas e áreas periféricas. Macron é frequentemente acusado de ser um “puro produto das elites”, mas exemplifica ao paroxismo nele mesmo essa promessa liberal e democrática de mobilidade como meio para a auto-realização: neto de modestos professores primários, milionário banqueiro dos Rothschild aos 30, ministro da economia da 5a potência mundial aos 36 anos, presidente da República francesa e um dos líderes do bloco ocidental aos 39.
Resta que a visão macronista tem limites, e o cientista político Vincent Martigny os expõe no melhor texto crítico ao presidente no livro Macron por Macron. Afinal, é forte a coerência doutrinal do En Marche! sobre uma sociedade ideal
onde os indivíduos sem posições sociais fixas evoluem em estruturas flexíveis, dinâmicas, livres de regulamentações pesadas que anulam as suas energias, e, assim, ocupam posições temporárias em função de sua motivação para desenvolver e empreender projetos.
Ainda assim,
Macron mantém em silêncio os impases da sociedade da mobilidade que defende e, principalmente, a manutenção das classes sociais. Na sociedade francesa, não são todos os cidadãos que podem – ou querem – se colocar ‘em marcha’, e isso é muito mais fácil para um jovem que estudou no ENA e trabalhou no mercado financeiro [como o próprio Macron] que para os empregados do Gad [abatedouros de porcos]. Mensageiro de uma globalização feliz, Emmanuel Macron ainda precisa provar que a sociedade da mobilidade não vai se contentar em servir aos mesmos interesses das camadas mais altas, sociedade de posições fixas ou não: não é Mark Zuckerberg que quer.
Não só de globalização feliz se faz o imaginário de Macron; também a mobilidade aparece sempre como valor intrinsecamente positivo. Essa mobilidade é sempre ascendente, nunca descendente; não se fala das perdas, por vezes irreparáveis. É claro que a França que Macron defende é também, como ele mesmo lembra, a França da solidariedade, e toda proteção social não será do dia para a noite abrogada para dar à luz o heroi da Cidade por Projetos. Mas quem tem relativamente pouco – e muitos dos “protegidos” pelo sistema que Macron denuncia, sem serem totalmente desmunidos, têm relativamente pouco – quer se ver sem nada? Tão mais porque mais e mais ter algo ou nada depende de fatores caóticos, que nos ultrapassam. A abertura de uma fábrica na China ou o desenvolvimento de uma nova tecnologia na Suécia pode destruir setores inteiros de uma economia, e nada é menos evidente que os náufragos vão sempre encontrar um destroço a que se agarrar, não porque eles não o busquem, mas porque ele não se apresente… O apoio do Estado aos habitados pela “motivação para desenvolver e empreender projetos”, como escreve o então candidato Macron, seria o único traço distintivo entre o macronismo e um darwinismo social versão start-up?
Também pesa a questão das desigualdades, que Macron aborda apenas sob o prisma das desigualdades de oportunidade – e cujo receituário, em Revolução, passa por Amartya Sen e pelo progressismo americano, longe do igualitarismo da tradição francesa e republicana de que Macron marca suas distâncias: fazer mais por quem precisa mais e menos por quem precisa menos. A desigualdade de riqueza passa a um segundo plano, apesar de relatórios de organismos insuspeitos de esquerdismo, como a OCDE e o Credit Suisse, apontarem um aumento constante em suas taxas recentemente. Ainda assim, a ala de políticos e de ideólogos pró-mercado, de conservadores como Margaret Thatcher a liberais como Deirdre McCloskey, faz coro para negar que se trate de um problema: que importam aos trabalhadores precários londrinos os patrimônios intocáveis dos herdeiros seus contemporâneos se hoje eles se alimentam melhor do que o fariam no século XVIII? Há uma ingenuidade política aí, ao não se reconhecer a inveja como a paixão democrática por excelência. É como se o homem, bicho gregário por excelência, pudesse deixar de se medir com seus iguais de aqui e agora com a consolação de que outrora sua vida estaria ainda pior, e como se na raiz do sentimento revolucionário a pobreza relativa, a pobreza ressentida, não disputasse um lugar com a pobreza real e absoluta. Alain Finkielkraut costumava reclamar que o centro republicano francês, ao negligenciar a questão da identidade nacional, deixava o campo aberto para que populistas de direita monopolizassem um tema sensível e real. O mesmo se dá com a desigualdade de riqueza entre os liberais; ao negarem um problema que leva parte da juventude nos países desenvolvidos a duvidar hoje tanto do livre mercado quanto da democracia, os liberais entregam de bandeja o tema a demagogos da esquerda radical, que têm uma retórica pronta para abordar problema e dizer o que os descontentes querem ouvir.
A desigualdade de riqueza tem consequências políticas. Uma certa retórica em torno da necessidade de sacrifícios corre o risco de soar falsa se a partilha dos sacrifícios é muito discrepante. Não é diferente com o projeto macroniano. É bom e belo ouvirmos sobre uma sociedade de mobilidade total, mas como a mobilidade irrestrita soa a um pequeno funcionário que só tem de certo a protegê-lo da precariedade o seu estatuto de categoria, comparado por Macron a um privilégio de nobreza? Isso tão mais quando o modesto funcionário sabe e só pode saber que, no mundo globalizado de que Macron tece as coroas, os ultra-ricos gozam de meios sem precedentes de proteger suas fortunas e que os Estados não poupam meios de cortejá-los. Para o comum dos mortais, a possibilidade de mobilidade é frequentemente possibilidade de mobilidade descendente, e é natural que aqueles que só dispõem da proteção coletiva a essa perspectiva deprimente não sorriam diante de uma nova sociedade onde seu déclassement é sempre propínquo.
Essa dinâmica não ameaça apenas o projeto de Macron, mas de todo o centro. Com a direita republicana (Les Républicains) e a esquerda social-democrata (Partido Socialista) aos frangalhos, esmagados pela ascensão de En Marche! nas legislativas, para quem votarão os menos entusiastas com a sociedade da mobilidade em velocidades diferentes em que pode redundar a visão de Macron? Os populismos estão sempre à espreita; o Front National ensaia uma recuperação após o vexame de Le Pen, e o bolivariano Jean-Luc Mélenchon angariou votos recorde para a extrema-esquerda em décadas em uma eleição francesa.
3.
O macronismo se insere na linha de continuidade da esquerda ocidental na segunda metade do século XX – em primeiro lugar, na história eleitoral recente da esquerda francesa. A eleição de François Mitterrand em 1981 pôs o partido socialista em estado de euforia. Finalmente, seria possível aplicar um programa de esquerda para retirar a França da crise dos anos 70, decorrência dos choques do petróleo. Foi a política da “retomada” (la relance), que incluiu a nacionalização do sistema bancário, o estímulo às grandes obras, o crescimento pelo consumo, o aumento da despesa pública e a valorização do salário mínimo com diminuição do tempo de trabalho. O resultado logo se fez sentir: o déficit orçamentário dispara; os capitais fogem, e o franco é desvalorizado todos os anos entre 1981 e 1983 para reequilibrar a balança comercial, suscitando o debate sobre uma possível saída do Sistema Monetário Europeu, ancestral do euro (o que representaria o abandono da perspectiva continental em favor do isolacionismo e do protecionismo). É neste ano que Mitterrand lança o que ficou conhecido como a “virada do rigor” (le tournant de la rigueur). As empresas nacionalizadas serão privatizadas ao longo da década de 80, e reequilibrar o déficit orçamentário será uma das metas do governo a partir de então: aumento de impostos (carros, tabaco e álcool); aumento de taxas (hospitais, combustíveis); aumento de tarifas (transportes). Mitterrand muda o tom, fazendo o elogio da empresa e do lucro. O socialismo francês se desinveste da miragem do “socialismo em um só país” em um momento de construção europeia e abraça a economia de mercado. A história do blairismo que renovaria o Reino-Unido na década de 90 começa dez anos antes além da Mancha.
François Hollande, em 2014, encenou uma reviravolta semelhante. Eleito em 2012 com um discurso radical (“meu inimigo é a finança”), o novo presidente socialista amargou dois anos de crescimento pífio e de desemprego recalcitrante. Em 2014, em uma reforma ministerial bombástica que tinha por objetivo reposicionar a França em uma economia de mercado mais agressiva, trocou, no Ministério da Economia, o estatista Arnaud Montebourg por um jovem desconhecido: Emmanuel Macron. O objetivo do novo ministro: desestatizar, desregulamentar, estimular o crescimento pela liberação das energias produtivas por um Estado sufocante.
Esses coups de théâtre se inserem por sua vez na história intelectual de longa duração da esquerda francesa. Os anos 1950, de denúncia dos crimes do estalinismo, foram de um impacto transformador na esquerda europeia. Não foi diferente na França. À chamada “primeira esquerda”, herdeira do jacobinismo revolucionário e influenciada pelo marxismo, segue-se a dita “segunda esquerda”, citada como inspiração por Macron e chefiada pelo rival de Mitterrand, Michel Rocard – a quem, aliás, o líder de En Marche! dirige um elogio póstumo em Macron por Macron. Anti-totalitária, a segunda esquerda congregou de cristãos reformistas a social-democratas e mesmo trotskistas. Foram representativos dessa onda nomes como Pierre Mendés France e Jacques Delors (artífice da “virada do rigor”), além de intelectuais que se ilustrariam na crítica ao marxismo, como François Furet e Pierre Rosanvallon. A segunda esquerda vai teorizar, nas palavras de Michel Rocard, a descentralização, a autogestão, a regionalização e a participação cidadã, em oposição à via jacobina, estatista e centralizadora, da esquerda clássica. É a sociedade civil contra o Estado, uma das ideias-chave da esquerda pré-Reagan e Thatcher (tirem a medida: nessa época, nosso liberal Merquior se consagrará a uma defesa do Estado contra o radicalismo anti-estatismo da esquerda de então!). Levado a primeiro-ministro de Mitterrand (ele próprio convertido à esquerda moderna), Rocard vai levar à frente esse programa desestatizante, propondo uma reforma descentralizadora em uma França em que há lustros tudo passa por Paris. Ele perderá o cargo por sua aliança com Lionel Jospin – o mesmo que, alçado ao cargo de primeiro-ministro socialista durante a presidência de Jacques Chirac em 1997, dirá de uma fábrica Michelin em fechamento a frase que lhe custou o destino político, mas que se tornou emblemática do pensamento da esquerda renovada: “O Estado não pode tudo” (L’État ne peut pas tout). A virada social-liberal de Hollande e a ascensão de Macron estão na linha direta desses acontecimentos na vida interna da esquerda.
É por isso que a tradução do macronismo na linguagem política de outros países é tão precária. Tão mais em termos brasileiros e latino-americanos, em que o advento de algo próximo a uma segunda esquerda ficou sempre em estado de esboço. A incompletude dessa obra se deve em parte a nossa falta de sorte; justo quando a revelação da natureza do comunismo durante os anos 1950 e 1960 despertava algumas consciências europeias à inviabilidade do caminho do Leste, os barbudos chefiados por Castro e Guevara tomavam Havana de assalto, renovando a promessa da esquerda totalitária: aqui finalmente seria diferente… A queda do bloco soviético assinalou outra ocasião de renovação da esquerda latino-americana – ocasião que se mostrou apenas o interregno entre a miragem comunista do Leste Europeu e o socialismo do século XXI bolivariano, com os resultados conhecidos na Venezuela. Os partidos de esquerda latino-americanos demonstram hoje uma admiração sem vergonha por Havana ou Caracas que poucos de seus homólogos europeus podem se permitir, sob pressão da própria sociedade que não esqueceu o que ocorreu durante 80 anos no seu quintal. Um escândalo estourou na França quando Segolène Royal minimizou os crimes do regime cubano durante o enterro de Fidel Castro em 2016.
Resta que, no Brasil, a crise da política tradicional pode engendrar o que a história da esquerda falhou em criar. Na esteira do caso En Marche!, surgiram no Brasil os chamados “movimentos cidadãos”, de que o mais influente é Agora! (o qual, sem surpresas, mantém contatos com seu homólogo francês), Seus membros apresentam um perfil análogo ao dos que integraram o movimento de Macron: profissionais hiper-escolarizados, oriundos das classes médias superiores das metrópoles brasileiras inseridas a contento na globalização. Na pauta, uma síntese entre valores de esquerda e valores de direita em nome da autonomização do indivíduo: desestatização, economia de mercado, luta contra as discriminações, legalização de drogas, educação como remédio às desigualdades – isso sem falar em globalização e ecologia. Que se tenha cogitado Luciano Huck para representar o movimento em uma eleição presidencial demonstra que iniciativas desse tipo têm ainda caminho a trilhar para desenvolver uma liderança política e se apresentar como alternativa viável. A mesma questão da liderança se coloca quanto à Rede, originada como En Marche! dos cismas da esquerda decadente e partilhando muito da agenda centrista: ainda assim, qual é o crédito de Marina Silva? A confluência entre a Rede e Agora! só cresceu nas últimas semanas, mas falta a encarnação, a verticalidade macronista do líder que paga da sua pessoa o preço pelas suas ideias. Em um ambiente de corações ao alto e de tentação populista, as consequências de um centro vazio podem ser imprevisíveis.
Esse centro principiológico teria ainda espaço no país? O caso francês poderia iluminar um caminho. Como a França, o Brasil sofre e beneficia-se da tradição estatista de que bebemos todos na teta da loba romana (como mostrou Raymundo Faoro). O fato de que o Estado francês seja grande e forte e que o Estado brasileiro seja grande e fraco é uma diferença importante – e, a propósito, a fraqueza do Estado é uma pauta muito mais urgente a quem se reclama de uma visão liberal do que discussões pontuais sobre o que ou não o Estado deve fazer (do tipo “dá milhão?”). Ainda assim, tanto lá quanto aqui, o dirigismo estatal teve seu papel na construção de uma nação industrial moderna e na acomodação social necessária a tanto (não discutamos se as consequências desses arranjos foram igualmente exitosas nos dois países). Agora que ressurge no Brasil uma crítica à via prussiana, um movimento análogo ao macronismo pode ser pertinente. Não porque En Marche! seja fonte de fórmulas prontas ou de uma visão totalizante, mas pela questão que ele coloca à nação. Em um momento anti-estatizante, é fácil a esse personagem de tendência compreensivelmente bovarista que é o intelectual brasileiro envergar o tweed ou um cachimbo de country gentleman e repisar chavões thatcheristas. Resta ser duvidoso que um ou outro se adaptem ao nosso clima e a nossa história; a herança estatista brasileira, que é um saber-fazer muito concreto, com seus defeitos mas também com suas contribuições, não vai desaparecer porque mudamos de fantasia. É interessante entender como, em um contexto tão diferente e tão parecido quanto o francês, um movimento marcadamente liberal encara a reforma dessa velha estrutura estatal sem negá-la em um gesto simplista, antes buscando fazer dela, sob nova forma, um trunfo em um mundo revolucionado.
Rodrigo de Lemos
Doutor em literatura pela UFRGS e professor na UFCSPA. Escreve no site do Estadão e em outros veículos.
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