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O estranho poder das cicatrizes

por Rodrigo Duarte Garcia (11/02/2018)

Cormac McCarthy faz do choque entre opostos e a sua consciência possível um tema subjacente a todo o romance.

“Todos os belos cavalos”, de Cormac McCarthy (Alfaguara, 2017, 280 páginas)

“As cicatrizes têm o estranho poder de nos lembrar de que nosso passado é real”, diz em determinado momento um personagem de Todos os belos cavalos, primeiro volume da Trilogia da Fronteira, de Cormac McCarthy – e a frase paira sobre cada página do romance e a história de John Grady Cole, que aos dezesseis anos se vê sozinho no mundo, depois da morte do avô (um ranchero texano) e a decisão da mãe em vender as terras da família onde vivia. Na companhia do amigo Lacey Rawlings, Cole parte então a cavalo numa jornada épica rumo ao México e que o levará também a percorrer todas as fronteiras interiores da existência, nas linhas estreitas que separam civilização e barbárie, juventude e velhice, vida e morte, mas, especialmente, as tensões entre a urgência esmagadora do presente e o espectro do passado, com todas as suas cicatrizes.

É altamente significativo que o livro – um western – se passe em 1949, o ano limiar entre o século velho e as mudanças vertiginosas que viriam a partir da década de cinquenta. Porque você até consegue imaginar alguém a cavalo no Texas rural de 1949, mas 1950 já remete a outro espírito do tempo, de diners, rock’n’roll e televisão. Ao partir para o sul, John Grady Cole cavalga em meio ao tráfego da cidade – o bicho assustado, escoiceando um ônibus –, depois toma milk-shakes numa lanchonete e cruza fazendas que conduzem a estradas modernas e seus caminhões barulhentos, tão deslocados quanto a imagem de índios que acampam em refinarias, ao longo do livro.

Na terminologia da famosa jornada do herói, o tempo presente em que Cole não se reconhece é o seu mundo comum, e nós ficamos ansiosos para que ele cruze logo o limiar ao mundo extraordinário que é a busca por um passado que – contra todo o bom-senso – talvez possa ser reconquistado para que nada mude e tudo permaneça contra a inevitabilidade das voltas que o relógio dá: “Olhando a região com aqueles olhos fundos como se o mundo ali fora tivesse sido alterado ou se tornado suspeito pelo que dele vira em outra parte. Como se talvez jamais fosse vê-lo de novo”. Oprimido entre a temporalidade e a eternidade, você também torce para que Cole chegue logo ao México, parado cem anos antes no tempo, e não precise lidar com tudo aquilo a que naturalmente estará – e estamos todos – obrigado a lidar.

E o livro retrata esse percurso interior mas também exterior de maneira muito bonita, na descrição de longas cavalgadas sob o céu e seu “enxame de estrelas”, com “dez mil mundos à escolha”. Eu poderia ler páginas a fio de paisagens descritas por Cormac McCarthy, ainda que nada nelas acontecesse, da mesma maneira em que contemplamos o retrato luminoso de desconhecidos enfadonhos pintados por Vermeer, ou jubileus burocráticos cantados por poetas laureados de gênio:

Na meseta eles observavam a tempestade que se formara ao norte. No crepúsculo, uma luz nervosa. As escuras formas cor de jade das lagunillas abaixo estendiam-se no chão da savana do deserto como buracos para outro céu. As faixas laminares de cor a oeste sangrando sob as nuvens marteladas. A terra subitamente encapuzada de roxo.

Há uma melancolia contida e exata, como se Raymond Chandler escrevesse faroestes, como se Hopper pintasse pradarias.

Entre essas tensões, Todos os belos cavalos é um romance de formação construído sob os arquétipos míticos do western e a sua qualidade de espelho moderno das epopeias, como dizia Borges. John Grady Cole representa a figura do perfeito domador de cavalos – como Heitor, na Ilíada –, enquanto Blevins, o menino que encontram pelo caminho, é o “exímio atirador”, à semelhança de Teucro ou Filoctetes. E, também como nos ciclos troianos e cantos homéricos, os ritos de passagem vão acontecendo sob a violência cruenta de batalhas – tiroteios, brigas – e amores proibidos que aos poucos descortinam a John Grady Cole uma consciência mais profunda da realidade, suas tragédias e grandezas:

Lembrou-se de Alejandra e da tristeza que vira pela primeira vez na curva de seus ombros e que pensara entender e da qual nada sabia já que era uma criança e sentia-se inteiramente estranho ao mundo embora ainda o amasse. Pensou que na beleza do mundo havia um segredo oculto. Pensou que o coração do mundo batia a um custo terrível e que a dor do mundo e sua beleza moviam-se numa relação de equidade divergente e que nesse déficit invertido o sangue das multidões podia em última análise ser cobrado pela visão de uma única flor.

É uma das passagens mais bonitas da literatura contemporânea em qualquer língua e sentimos ali todo o equilíbrio de uma realidade misteriosa vislumbrada na força extraordinária do instante: o instante em que a máquina do mundo se abre – majestosa e circunspecta – e em que nos invade a consciência opressora, mas libertadora, da existência simultânea e delicadíssima do Mal e da Beleza, com todas as tensões e tempestades a que nos sujeitamos ao contemplá-los.

De certa maneira, Cormac McCarthy faz desse choque entre opostos e a sua consciência possível um tema subjacente a todo o romance, mergulhando o leitor nos entremeios de polos que repelem e atraem a cada momento – o metaxy platônico: abismos de escuridão e as réstias de luz que os confrontam e equilibram. E, nessas tensões entre presente e passado, o Mal e a Beleza, há não apenas equilíbrio, mas um equilíbrio feito de ordem e hierarquias metafísicas, retratadas na simplicidade de cowboys durões que, ao se verem impelidos a ser “pessoas de valor”, perguntam-se como isso “seria possível se não houvesse em nossa vida alguma coisa como uma lama ou um espírito que pode suportar qualquer infortúnio ou desfiguramento e ainda assim não ser diminuída por isso”.

Todos os belos cavalos mostra – com a força estética dos grandes autores – as frestas dessa possibilidade de resistência contra o desfiguramento das tragédias do mundo, no esforço monumental para alcançar a síntese de equilíbrio entre o tempo inclemente e a eternidade, o presente e a memória do passado, mesmo ao custo imprescindível das cicatrizes que nos revestem, como rasgos necessários na beleza de cada céu estrelado.

Rodrigo Duarte Garcia

Foi articulista e membro do conselho editorial da revista Dicta&Contradicta, e é autor do romance Os invernos da ilha (Record, 2016).