PESQUISA

AUTORES

  • Augusto Gaidukas
  • Bruna Frascolla
  • Carlos Orsi
  • Emmanuel Santiago
  • Fabrício de Moraes
  • Gustavo Melo Czekster
  • Lucas Baqueiro
  • Lúcio Carvalho
  • Luiz Ramiro
  • Martim Vasques da Cunha
  • Norival Silva Júnior
  • Paulo Roberto Silva
  • Pedro Almendra
  • Renata Ramos
  • Renata Nagamine
  • Rodrigo Cássio
  • Rodrigo de Lemos
  • Rodrigo Duarte Garcia
  • Sérgio Tavares
  • Sérgio Tavares
  • Tomás Adam
  • Wagner Schadeck

Laranja Mecânica e o totalitarismo tecnocrata

por Ivo Meirelles (16/02/2019)

A perversão de Alex valida a perversão do Estado, do uso indiscriminado da técnica?

Augusto Comte – fundador do positivismo e da sociologia – conferiu vigor a um dos mais influentes movimentos do pensamento ocidental do século XIX: o que exalta o enquadramento das humanidades nos pressupostos e moldes científicos rígidos, próprios das ciências naturais em sua versão mais tradicional. Na época, buscava-se essa inserção das humanidades no contexto da ciência formal em virtude da potência que o modelo científico passou a representar. A revolução industrial, por exemplo, possibilitada pelo avanço técnico-científico, operou uma transformação radical no que diz respeito à estrutura das sociedades tradicionais, inserindo-as em um processo violento de modernização. Houve, portanto, a alteração de uma série de práticas sociais. O universo das relações humanas sofreu profundas ressignificações. Há, grosso modo, uma configuração ocidental antes e depois da revolução industrial. A ciência, portanto, transformou-se em valor. Ascendeu na hierarquia das importâncias.

Pode-se dizer que Comte, investindo na sistematização rígida das ciências humanas, fortaleceu as pretensões de se raciocinar as humanidades através dos princípios mecanicistas da física newtoniana com o objetivo de trazer de volta o prestígio da investigação do que envolve as criações que derivam do gênero humano. Para isso, utilizou-se principalmente da causa-e-consequência – até então o centro da visão científica – enquanto única relação cósmica válida, capaz de desvendar as estruturas da realidade do homem e das relações estabelecidas com o mundo e com seus iguais. E ao se tentar entender o homem somente sob o espectro restrito da causalidade, acabou por reduzir o homem ao mecânico, negando a liberdade e a imprevisibilidade inerente à subjetividade.

O termo causal, por definição, diz respeito a tudo aquilo que é propriamente de natureza determinística. Tudo que opera como maquina. O efeito – ou consequência – é determinado pela causa. É um produto dela. E perceba: a ideia de causalidade não é idêntica à percepção fundamental de que tudo que existe é uma continuidade da instância anterior. De que tudo que é depende do que foi. Essa é a própria noção abstraída do que é situável no tempo, entendendo tempo como um contínuo: passado que persiste no presente e se abre para o futuro. Em vez disso, a ideia de causalidade – especificamente – prega que todo acontecimento causal é previamente determinado de acordo com as inclinações apresentadas pela disposição do passado. Previamente determinado. Há fenômenos – em especial os que envolvem matéria bruta – em que a ideia de causalidade serve com perfeição. Por exemplo, o movimento de queda das pedras sob a ação da força gravitacional. Porém, se empregada como única relação válida para analisar o homem, produz-se consequências severas – patologias intelectuais.

Aplicando-se a lógica positivista à psique humana, não há liberdade a ser exercida. Nem qualquer imprevisibilidade possível caso se conheça a suposta mecânica que constitui o ser do humano. O que se é nada mais é do que uma consequência direta e irrestrita da disposição mecânica anterior – mero desdobramento pueril. Dai a ideia de mecanicismo. O entendimento de se empregar o princípio causal à totalidade dos fenômenos do mundo – próprio do positivismo de Comte – entende a realidade como uma máquina absoluta, bem aos moldes do início da revolução industrial, movida por engrenagens rígidas que se locomovem através dos princípios descobertos pela física clássica. Dentro dessa concepção, todas as ações humanas são apenas continuísmos das direções de rotação das engrenagens brutas do espírito. Decifrando a mecânica da subjetividade, seria possível prever todas as ações do homem. Não há liberdade, escolhas, imprevisibilidades, contingências, subjetividade real – há apenas a previsibilidade absoluta da maquinaria do comportamento.

Ao idealizar a sociologia – inicialmente chamada de “física social”, nome escolhido para transmitir a ideia de aproximação com o mecanicismo newtoniano –, Comte acreditava que, através das supostas descobertas da mecânica do homem e da sociedade, seria possível estruturar a vida comunitária de modo a conduzi-la ao progresso. Acreditava ser viável a construção de uma engenharia social. Formatar o mundo baseado na racionalidade fria. Comte se utilizava da lógica instrumental para supor formas de organização das ações humanas. Porém, desconsiderava os ímpetos humanos imprevisíveis e as variáveis ocultas que compõem o que poderíamos chamar de alma humana. Ignorava as forças rebeldes das paixões. Como dito, para o positivismo o mundo é determinístico. Não há ímpeto apaixonado a ser encarado como variável. A imagem máxima da concepção filosófica determinista pode ser ilustrada, didaticamente, do seguinte modo: imagine uma máquina capaz de levar em consideração todas as micropartículas do universo inteiro, suas posições e seus vetores de movimento – em um universo regido apenas pelo princípio da causalidade seria possível prever com precisão absoluta todas as ações e os movimentos de tudo – absolutamente tudo – que existe. Inclusive, as ações dos seres humanos. Essa cosmovisão retira do humano o que existe de mais próprio: a subjetividade. Confunde o homem com pedras. Amputa a complexidade do sujeito. Aproxima a matéria viva do homem da matéria bruta dos minerais.

O positivismo, entendendo a razão instrumental – alinhada à técnica – como única chave de leitura das humanidades, o que por excelência desumaniza o homem, possibilitou a lógica inerente a todos os regimes totalitários do século XX. Tanto o Stalinismo quanto o Nazismo tinham como pressuposto a ideia de que poderiam modificar a natureza humana através de técnicas aplicadas à organização das massas. O totalitarismo – entendendo-o enquanto um regime que não apenas tiraniza se valendo do monopólio da violência física, mas também transformando a sociedade civil em escrava das ideias disseminadas pelo partido – é um fenômeno próprio do século XX. Apenas foi possível através da convergência de dois fatores: a explosão demográfica vivida na transição do século XIX para o século XX e o surgimento das mídias de massa, por exemplo, rádio, cinema e jornais produzidos em larga escala. As mídias de massa foram capazes de propagar ideias de modo quase instantâneo, imediato, controlando o imaginário da população com objetivo de dominação dos corpos. Serviram enquanto meio de estupro ideológico.

O olhar puramente mecânico, frio e excessivamente linear do positivismo produziu várias das grandes aberrações sociais modernas. Desejava ser máximo, conquistando todas as formas de pensar de modo a assimilá-las para o próprio crescimento. Visão totalitária por excelência. O positivismo tentou destruir a arte e a religião para oferecer o ideal cientificista como solução emancipadora – como meio de salvação imanente dos males que perturbam o espírito humano. Pretendia substituir todas as cosmovisões por uma única: a visão positiva. A de ordem e progresso. Visão esta que encontra na obra Laranja Mecânica, uma crítica vigorosa no que diz respeito aos seus pressupostos e suas consequências.

Não posso dizer precisamente sobre as reais pretensões de Anthony Burguess ao escrever Laranja Mecânica ou de Kubrick ao adaptar a obra para o cinema de modo magistral. Porém, posso evidenciar o que está representado na obra enquanto crítica pressuposta, tanto sob a forma de literatura, quanto de cinema. Em um tempo futuro marcado pela tragédia da distopia, Alex, o jovem protagonista, líder de uma gangue britânica que comete estupros e ultraviolência, contêm, em si, a barbaridade dos bichos e a sensibilidade dos eruditos. Por vezes, essas duas inclinações naturais de seu ímpeto convergem, conferindo certa áurea de paganismo à obra, de complexidade transcende no que diz respeito aos estereótipos das tramas convencionais. A começar pelo fato de que a brutalidade de Alex é dotada de uma beleza mórbida, sublime. Não se trata de um marginal qualquer. Alex é um erudito da violência. É um animal, mas é um animal com classe – sofisticado.

De certo modo, Alex encarna em si a figura mitológica de Wotan – deus Odin da mitologia nórdica – que simboliza tanto a guerra quanto a poesia. E são propriamente as aparentes contradições que tornam o personagem tão interessante, digno de ser lembrado. Vemos em Alex a ausência de condicionamento social adequado à vida em comunidade, de empatia e compaixão. É movido pelos desejos imediatos. Porém, também vemos um amor tão grande à música erudita que Alex cria um neologismo apenas para descrever a sensação que tem ao ouvir as composições de Beethoven: “heavenmetal”. Do ponto de vista de suas paixões, Alex é uma figura visceral, repleta de grande saúde de ímpetos. Mas também perversa.

Em determinado momento da narrativa, Alex comete crimes com sua Gangue e é pego. O resto da gangue consegue fugir. Após ser preso, Alex é forçado a se adaptar à conduta exigida dentro da cadeia. Porém, é rebelde demais para se submeter a normas impostas por pessoas que ele evidentemente não respeita. Portanto, passa a desafiar os oficiais a cada oportunidade, incitando o caos. Torna-se evidente a necessidade de controla-lo. As autoridades querem inseri-lo no contexto das regras civilizatórias adequadas ao ambiente em que estão. É sugerido, então, que Alex passe por um tratamento científico inédito que tem por objetivo de incitar no detento o cumprimento das normas sociais em vigência. De torna-lo melhor. Mais moral. O primeiro e único personagem a perceber contradições, absurdos e fragilidades do modelo científico idealizado para se moralizar artificialmente – chamado de método Ludovico – é o padre da prisão. O padre desconfia da ideia de que alguém pode vir a se tornar bom ao ser submetido a um tratamento técnico-científico. Defende que apenas a redenção através da consciência moral do próprio sujeito – simbolizado para ele na figura de Deus e Jesus Cristo – pode transformar sua totalidade espiritual de modo a torna-lo bom ou algo próximo disso. E não através de métodos. Métodos lógico-formais não seriam meios adequados. A começar pelo fato de que assimilar princípios é um trabalho árduo, ativo e exige o fator humano.

A conduta e os valores civilizatórios são tradicionalmente transmitidos através do contato intersubjetivo, isto é, humano-humano. A cultura – entendendo que cultura contém sociedade – depende de princípios para ser e continuar sendo. Podemos, inclusive, raciocinar a sociedade enquanto elemento constituído fundamentalmente de princípios. É propriamente os princípios a razão de ser das civilizações. E quando aplicados à realidade sob a forma de normas valorativas que prescrevem condutadas, é possível se estabelecer o eixo de sentido da vida em comunidade.

Percebemos que as figuras paternas – que são, a rigor, o primeiro contato do homem com o mundo – presentes na narrativa não estabelecem com Alex a relação afetiva necessária à passagem de valores a serem respeitados. Alex praticamente desconhece o sentido real de autoridade. Suas práticas são contrárias às noções que possibilitam a vida de pessoas diferentes em um mesmo espaço. Para tentar corrigir o comportamento que se entende que ele deveria ter para voltar à vida de liberdade dentro dos limites das normas, a solução encontrada pelo Estado é de empurrar goela abaixo regras através da tirania do método Ludovico, idealizado bem aos moldes positivistas. O método Ludovico – substituto pueril do complexo processo de assimilação de valores e normas – é produto da visão determinista sobre o ser humano. Do mesmo pensamento positivista do qual derivou as ciências comportamentais aplicadas aos regimes totalitários e a lobotomia – cirurgia debilitante honrada com o Nobel de Medicina em 1949.

A engenharia social, que busca a perfeição formal da organização social através da técnica, desde o início se valeu do nome cândido da segurança civil para legitimar práticas bárbaras – assim como é muito bem representado em Laranja Mecânica. Um dos grandes dilemas do homem moderno é a constante venda parcelada da própria liberdade para pagar a conservação e praticidade proporcionada pela ciência e sua perspectiva redutora. É indispensável a todo movimento totalitário a busca por um inimigo comum a fim de usá-lo, de forma retórica, como justificativa para a retirada de direitos sociais, políticos e liberdades individuais. O perigo é apresentado. A solução também. Porém, a solução para o perigo pregado implica o controle e a limitação existencial dos indivíduos. A partir dessa lógica, pode-se chegar à situação em que o Estado deixa de ser para o indivíduo, e o indivíduo passa a ser para o Estado. Situação esta legitimada pela própria sociedade civil amedrontada.

Duas importantes perguntas do livro de Burguess e do filme de Kubrick são: a perversão de Alex valida a perversão do Estado, do uso indiscriminado da técnica? A imposição tirânica se torna uma alternativa viável às aparentes aporias morais? Caso a resposta seja sim, acabamos por legitimar a tirania tecnocrata. Por vezes bastante perversa e muito pouco eficaz. Ao final da narrativa, Alex livra-se do condicionamento social imposto pela técnica. Condicionamento este evidentemente equivocado, incapaz de fertilizar semanticamente com signos e símbolos a subjetividade de Alex, apenas impondo estímulos-reflexos negativos à conduta não desejada. O condicionamento não faz sentido para ele. Apenas é.

Laranja Mecânica é um estudo sobre a ética radical. Uma análise sobre as ações que – mascaradas pelo humanismo, pela moral, pelo ideal de perfeição racional positivista – escondem o ímpeto de perversão característico do moralismo. Sobre garantir o direito à vida sem precisar sufocar as liberdades individuais. Vê-se, portanto, que, desde os textos clássicos de filosofia, a natureza humana permanece sendo nosso maior problema moral. Os perigos podem surgir tanto das inclinações naturais do homem quanto das formas construídas para barra-las. Alex é um homem violento. Porém, a lógica sistêmica, instrumental, simbolizada pelo método Ludovico, ao se propor a adestrar a anarquia das paixões de Alex, acaba por adoecer o animal que havia dentro dele de forma cruel. E ao adoecer o animal, acabou-se por podar própria fonte de onde jorra a vida – por castrar a vitalidade do ser. Alex, portanto, declina. Sua vida se enche de medos e o prazer se converte em pudor paralítico. A tirania da técnica perverteu o Eros, transformando sua vitalidade em vergonha e culpa. Seu prazer estético pela música de Beethoven é profanado.

A grande representação da obra de Burgess diz respeito à manifestação da faceta demoníaca da técnica quando aplicada ao despotismo. A razão instrumental retratada – de cunho positivista – entende que os elementos orgânicos como fenômenos regidos pela pura mecânica. Como se fossem meros objetos. Simplesmente meios para se atingir determinados fins, e não como fins em si mesmos. Não há dignidade humana a ser zelada. Alex, portanto, dentro da lógica do método Ludovico, não passa de máquina constituída de carne, sangue e osso. Não passa de uma Laranja Mecânica.

Ivo Meirelles

Estudante de Direito na UFJF.