Imagine-se um psiquiatra ignorante da situação política do Brasil ouvindo um militante médio de esquerda ou direita falar de suas preocupações.
Acabo de ler A faca entrou (É Realizações, 2018), de Theodore Dalrymple. É um livro de crônicas onde o psiquiatra de prisão conta seus causos e, à luz deles, reflete sobre cultura e políticas públicas. Há uma revelação que me pareceu particularmente espantosa: amiúde os advogados não percebiam que seus clientes eram loucos, e houve até mesmo uma vez em que ele próprio quase tomou por sã uma doida.
Quem teve argúcia foi o juiz, que achou que deveria ser doida aquela mulher fina e educada que, a pauladas, tinha deixado o filho caolho e surdo de um ouvido. Chamou Dalrymple. Ele ficou conversando por horas com a elegante mulher, até desistir de encontrar qualquer sinal de loucura. Foi só no momento da despedida, quando ela lhe perguntou se queria que o abençoasse, que ele teve a oportunidade de perguntar por seus poderes sobrenaturais. Aí, sim, descobriu que ela uma profetisa, tinha acesso direto à palavra de Deus, e seguira Suas instruções para tirar o demônio do filho.
Seria o arguto juiz um irmão espiritual de Simão Bacamarte? Teria ele a capacidade de olhar para senhoras distintas, cavalheiros probos, e discernir aí um motivo para levá-los à casa de orates? E, o pior de tudo: estaria ele sempre tão coberto de razão, descobrindo doidices tão cabeludas?
Lembrei-me de um profissional austero que, certa feita, passara uns tempos trancado em casa com medo de maçons. Teria sido uma reação adversa a um medicamento. Passada a crise, porém, seguia temendo os maçons, convicto de que poderiam matá-lo a qualquer momento por causa de uma discussão acerca de astronomia num fórum obscuro da internet. Fazia-me ainda o bem de revelar que os maçons são malignos e perigosos.
Mas isso foi nos saudosos tempos pré-impeachment. Aí, sim, era razoável supor que eu reconhecia um doido quando via um: doido era o maltrapilho que se apresentava como compositor de “Domingo no parque” e pai do reitor da UFBA, tinha o que escrevia com tinta no asfalto que era perseguido pela Globo, o outro que pichava cada muro da Bahia com a Verdade do Universo… Os doidos eram via de regra perceptíveis, e era uma excepcionalidade alguém aparecer com esse temor pontual por maçons.
O meu alarme para doidos começou a falhar quando esse mesmo senhor sabia que os maçons estavam tramando o impeachment. Os maçons estavam mancomunados com a direita, a mídia e o judiciário para dar um golpe e derrubar Dilma: eis que alguém com evidentes problemas psiquiátricos se tornava indiscernível do militante de esquerda médio. O doido que pintava o asfalto, a seu turno, tornou-se modestíssimo para os parâmetros atuais. Hoje, ser perseguido pela Globo não é mais coisa de políticos no governo: é o mínimo para qualquer cidadão politizado que se preze. Assim como os maçons, a Globo é somente parte de um grande conluio que pode incluir ou a direita, o PSDB, o judiciário, a CIA, o FBI, o Mossad, os Irmãos Koch e o capital internacional, ou então a ONU, o PSDB, George Soros, muçulmanos, gays e demais globalistas propagadores do marxismo cultural. Por que a Globo faz isso? Por que é má. Ela quer dar todo o petróleo e riquezas naturais para bancos e brancos, para fascistas neoliberais que proibirão o pobre de andar de avião, e que exterminarão negros, mulheres e LGBTs. Ou então ela quer destruir os bons costumes, a família e as nações por meio do marxismo cultural para implementar uma ditadura globalista. É uma luta do Bem contra o Mal. Uma vez que o nobre cidadão tenha se posto do lado do Bem, torna-se inimigo da Globo e demais componentes das hostes do Mal.
Imagine-se um psiquiatra ignorante da situação política do Brasil ouvindo um militante médio de esquerda ou direita falar de suas preocupações. Poderia dizer que é outra coisa senão um doido? Até falam como os que ouvem vozes: dizem “eles” para se referir aos inimigos que o atormentam. Além disso, como tudo é política, como o seu Universo é política, é questão de tempo começarem a pichar compulsivamente toda parede com a Verdade absoluta. E o farão morrendo de medo, é claro – pois eles não querem que a Verdade seja revelada.
Mas piora. Eu conhecia de longa data outro doido, esse de pedra, que me procurou nas últimas eleições para tratar de questão gravíssima. Digo que era doido de pedra porque de fato via mortos-vivos, cavaleiros medievais e soldados da Segunda Guerra andando na rua, às vezes sugerindo que se matasse. Não toma remédio; mas, por alguma razão, as visões não são assíduas como na juventude. (A razão atribuída pelo próprio foi conferida por um pai de santo, que tratou de expulsar espíritos francófonos de soldados de Napoleão que o atormentavam.) Pois bem: a razão por que ele estava inflamado é que era que uma pessoa de nossa relação estava completamente louca. Louca, louca, louca!
Tinha virado psolista, e estava chamando ele de fascista porque ia votar em Bolsonaro. Uma das razões para Bolsonaro ser mau é que ele odeia mulheres, negros, gays e Paulo Freire. Outra é ele não defender os seus direitos de professora concursada prestes a virar uma jovem aposentada. Segundo o relato do esquizofrênico, que estava achando toda aquela conversa de genocídio muito maluca, o ponto alto foi o desejo dela de que as coisas continuassem exatamente como estão, porque ela tem propriedades, filhos adultos, e quer receber a aposentadoria dentro de poucos anos. Perguntou-me, inflamado, várias vezes: “Não é louca?! Ela acha que, se estiver num sítio recebendo a aposentadoria dela, pode acontecer qualquer coisa com o país! Qualquer coisa!” Fui forçada a concordar, acrescentando o fato de ela ter uma filha muito jovem e largada, que nem terminou a escola. Realmente, alguém que queira ficar parado numa roça, com saúde, sem a mínima preocupação com o que se passa fora do cercadinho da propriedade (tiroteio? fome? saques? expropriações?), nem com o que vai acontecer daqui a dez anos, e que ainda tem filhos jovens do lado de fora desse cercadinho, não pode ser bom da cabeça. O doido tem toda a razão de se assombrar com ela.
Será que toda essa retórica de defensora dos oprimidos, de boa alma preocupada com o genocídio negro e a lesbofobia, é uma invenção para acobertar o fato de que se quer apenas encher os bolsos com o erário? Será que a pessoa percebe que usa uma máscara? E será que isso faz dela uma doida? Bom, ela também revelou a parentes atônitos que a facada de Bolsonaro era uma farsa. Será que acreditava nisso, mesmo? Ou será que essas pessoas mentem, mentem, mentem, e começam a delirar? Deve ser isso. Se não um delírio de esquizofrênico, ao menos uma visão de mundo distorcida e diabólica, onde cabe um agente do Mossad em cada esquina.
Voltemos ao esquizofrênico. Vendo uma doida elevar às alturas o nome de Paulo Freire, ficou preocupadíssimo com o fato de sua própria filha estudar em uma escola chamada “Paulo Freire” e resolveu pesquisar sobre. Começou a ler Gramsci e ficou profundamente impressionado. Desde então, define-se como “bem de direita mesmo”, e deve ler tudo quanto encontra na internet sobre marxismo cultural. Pretendia ir à escola conversar com a diretora sobre Paulo Freire. Chegou a cogitar fazer o curso de Olavo de Carvalho, e me perguntou o que eu achava. Recomendei Quando ninguém educa, de Ronai Rocha, para uma boa crítica a Freire, e que acompanhasse o canal de Waack para se inteirar de política (o que ele já fazia).
O doido me parece mais sensato do que o olavete médio. Não tive notícias de nenhuma doidice política sua; mas, se cometer uma que não envolva aparições, será apenas mais um doido psiquiátrico indiscernível de um doido político.
Como teremos chegado a esse ponto em que boa parte da população politizada tem crenças de pacientes psiquiátricos? Toda resposta desenvolvida terá de passar por má ciência política, que reduz tudo a uma conspiração simplória. Já n’ A sociedade aberta e seus inimigos, dos anos 40, Popper apontava a coqueluche acadêmica que reduzia o marxismo a uma teoria conspiratória – coqueluche que não arrefeceu de lá para cá, mas se ampliou para os cultural studies. Uma vez que se eduque uma população a raciocinar em termos simplórios e conspiratórios, sob a fórmula “todas as coisas ruins acontecem porque um grupo de pessoas más e poderosas as planejaram”, fica fácil produzir várias narrativas similares, trocando vilões e mocinhos conforme o gosto do freguês.
Está difícil discutir política. Não podemos num pulo mudar toda essa deseducação da sociedade, mas podemos tomar como dever não admitir pânico. É um bom começo para termos discussões racionais e produtivas, necessárias a qualquer país democrático.
Bruna Frascolla
Doutora em Filosofia pela UFBA e pesquisadora colaboradora da Unicamp.