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Hitler, Lênin, memória e história

por Caio Vioto (05/02/2020)

É na dimensão da memória e dos afetos, e não da história, que entram muitas das comparações entre nazismo e comunismo.

Alguns dias após a polêmica envolvendo as referências a Goebbels por parte do Secretário da Cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, outra discussão veio à tona, em menor proporção, tratando de líderes totalitários da primeira metade do século XX. A Deputada Federal Talíria Petrone (PSOL-RJ) postou uma referência elogiosa a Lênin nas redes sociais e suscitou mais uma das comparações intermináveis entre nazismo e comunismo.

Em primeiro lugar, para analisar a discussão com um pouco de rigor, cabe ressaltar algumas diferenças entre história e memória. A história, enquanto disciplina e área de pesquisa, parte de uma noção fundamental, que qualquer graduando aprende (ou deveria aprender) na primeira semana de aula: evitar o anacronismo, ou seja, não julgar o passado com os olhos do presente. Geralmente, o público leigo (e, por vezes, temerariamente, até pessoas formadas na área) imaginam a história como um grande tribunal do passado e o historiador como um humano virtuoso, acima dos que viveram em outras épocas. É comum ouvirmos “precisamos estudar história para não repetir os erros do passado”.

No entanto, não é disso que se trata a pesquisa em história e não é esse o ofício do historiador profissional. O objetivo da história é compreender o passado, e não existe apenas uma forma de fazer isso. Ao realizar uma pesquisa histórica, o historiador deve se valer de fontes documentais do período estudado, da bibliografia produzida sobre aquele tema, principalmente daquela considerada mais relevante pela academia, deve estabelecer objetivos, métodos, recortes (no tempo e no espaço) e fazer perguntas ao objeto de pesquisa. Dessa forma, uma pesquisa histórica nunca esgota totalmente um tema, apenas estabelece uma abordagem e oferece uma contribuição à área. É assim que a pesquisa científica funciona, em qualquer área do conhecimento.

Tomemos um exemplo (já nos aproximando do recorte discutido pelo artigo): um historiador que estuda a Segunda Guerra Mundial não vai tratar de todos os aspectos que a envolvem. Do mesmo modo, é possível que ele escolha uma entre várias abordagens: pode dar ênfase aos fatores econômicos, políticos, sociais ou culturais que levaram ao conflito, pode combinar duas ou mais destas esferas, pode estabelecer “hierarquias” entre elas, pode buscar as origens do conflito numa duração mais longa (analisando a situação da Europa no século XIX) ou numa duração mais curta (tratando dos eventos bem próximos a 1939) e assim por diante. O que o historiador não pode fazer é deixar de considerar os fatos (o período de duração da guerra, os países e personagens envolvidos etc., ou seja, não pode dizer que a guerra ocorreu entre 1800-1806 na Austrália e teve a participação de Napoleão), nem deixar de discutir a historiografia mais importante e reconhecida sobre o assunto. Em suma, o historiador não pode inventar nada da própria cabeça e deve ter rigor científico ao fazer uma pesquisa, porém, dentro de determinadas balizas, possui várias possibilidades para explorar o tema.

A memória (que também pode ser objeto de estudo da história), por sua vez, refere-se ao passado como ele é lembrado e guarda relações afetivas (positivas ou negativas) com ele. Pode envolver pessoas que vivenciaram um determinado momento histórico ou apenas uma forma genérica pela qual determinados fatos são lembrados pela memória coletiva. Assim, grande parte das pessoas sabe que Napoleão Bonaparte ou Cristóvão Colombo tiveram alguma importância para a história humanidade, sem precisar conhecer profundamente obras historiográficas sobre o contexto em que viveram, e sabem que o nazismo cometeu atrocidades, sem nunca terem folheado um livro sobre o tema. Do mesmo modo, figuras políticas são lembradas de maneira difusa pelas pessoas, e de forma mais parcial por grupos políticos, que as condenam ou exaltam. Essas memórias, no entanto, dizem mais sobre as pessoas que fazem alusão a esses personagens do que a eles propriamente ditos.

Um personagem histórico está condicionado por circunstâncias do tempo e do lugar em que viveu, embora suas ações e decisões não tenham sido uma inexorabilidade, algo inevitável, que iria acontecer de qualquer jeito. Assim, numa pesquisa histórica, o historiador deve tentar entender os motivos que levaram um determinado agente a proceder de uma maneira ou de outra, e não muito mais que isso. Na dimensão da memória, porém, onde os afetos se manifestam, as pessoas julgam, premiam ou condenam personagens, fatos e até períodos inteiros.

É nessa dimensão, da memória e dos afetos, e não da história, que entram muitas das comparações entre nazismo e comunismo ou, mais especificamente, entre Lênin e Hitler. Historicamente e politicamente (tratando-se aqui de ciência política, e não de ideologia), podemos classificar ambos como regimes totalitários. Basicamente, esse tipo de regime se caracteriza por alguns fatores: simbiose entre Estado, governo e partido; culto pessoal a um líder; ausência de mecanismos que limitam o poder; “politicização” (para usar um termo de Norberto Bobbio) integral da vida, ou seja, todas as esferas da sociedade e do cotidiano dos indivíduos remetem à ideologia e ao controle político do regime. Outro aspecto que define o totalitarismo e o diferencia do autoritarismo (ou de uma ditadura “comum”) é o objetivo de criar um “novo mundo” e um “novo homem”. No comunismo, seria a superação da “exploração do homem pelo homem”, da divisão de classes, dos valores e da cultura burguesa etc. No nazismo, o triunfo da “raça ariana” e a ascensão do “Terceiro Reich” (numa referência afetiva a um passado romantizado, algo também da dimensão da memória).

O historiador francês Pierre Rosanvallon, grande autoridade no campo da história política e nos estudos sobre democracia, considera o totalitarismo, na contemporaneidade, a antítese da democracia. Esta seria marcada pela impossibilidade de se estabelecer uma “verdade política”, o que geraria uma tensão permanente entre visões políticas e interesses políticos distintos que seriam, porém, mediados institucionalmente, através de eleições, mecanismos de limitação do poder, possibilidade de contestação política etc. As ideologias totalitárias, conforme mencionado anteriormente, são a negação de todos os instrumentos da democracia e não admitem qualquer questionamento. Assim, embora possa-se considerar que o nazismo e o comunismo tiveram trajetórias, influências e acontecimentos diferentes, não é possível deixar de caracterizá-los como regimes totalitários.

Diante disso, a indagação que se faz é: por que alguém que aceita “jogar o jogo” da democracia exalta um personagem totalitário? Não se trata aqui de julgar historicamente, nem de colocar determinadas nuances do contexto na qual o sujeito histórico se encontrava, mas de perguntar qual o significado que uma memória positiva desse tipo traz para o debate político atual. Para quem aceita a legitimidade da democracia, talvez seja melhor deixar determinados personagens a cargo das pesquisas históricas, feitas sem julgamentos e sem afetos, evitando que uma referência excessivamente emocional à memória venha a contaminar as práticas democráticas.

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INDICAÇÕES DE LEITURA

Dicionário de política – Norberto Bobbio
Os intelectuais e o poder – Norberto Bobbio
Memória e opinião – Pierre Laborie
Por uma história do político – Pierre Rosanvallon

Caio Vioto

Mestre e Doutorando em História pela UNESP.

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