O peso da responsabilidade

por Guilherme Stumpf (06/02/2022)

Emerenc odiava o mundo de César, não o mundo de Deus.

“A porta”, de Magda Szabó (Intrínseca, 2021, 256 páginas)

É sabido por todos aqueles que apreciam literatura que o mercado editorial brasileiro se encontra atrasado no que tange à publicação dos escritores contemporâneos. Um exemplo desse atraso é o fato de muitos autores importantes só receberem atenção das editoras nacionais após o reconhecimento da Academia Sueca.

No entanto, há um esforço das editoras para se colocar em circulação autores desconhecidos pelo público brasileiro. Traduzida pela primeira vez no Brasil e editada pela Intrínseca, 34 anos após o seu lançamento, o excepcional romance A Porta, da escritora húngara Magda Szabó, surge como fruto desse engajamento editorial.

Nessa história, acompanhamos a relação de Magda, uma escritora culta, e Emerenc, sua empregada doméstica idosa, ao longo de muitos anos. O estranhamento inicial entre as duas, com o passar do tempo, vai suavizando e dando lugar a uma relação de confiança e respeitabilidade mútua.

O romance é narrado em primeira pessoa pela própria Magda e, no primeiro capítulo, já nos apresenta o desfecho da trama:

Este livro não foi escrito para Deus, que conhece minhas entranhas, nem para as sombras, que são testemunhas de tudo e me observam a todo instante, nas horas de vigília ou de sono, mas sim para os homens. Vivi com coragem, espero morrer da mesma forma, com coragem e sem mentir, mas, para isso, é preciso que eu diga: fui eu que matei Emerenc. Eu queria salvá-la, e não matá-la, mas não faz a menor diferença.

Já sabemos desde o início, portanto, que a empregada fora morta pela patroa. Isso pode gerar no leitor um tipo de expectativa: como essa morte se deu? A patroa era uma assassina? Qual é o teor desse depoimento? Isso, no entanto, só ficará claro quando se chegar ao último capítulo, de extensão menor do que uma página.

A força narrativa de Szabó é de tal envergadura, que encontramos profundidade tanto nas simples falas da empregada, como nas complexas reflexões da escritora intelectualizada. Conforme os anos avançam, pequenos acontecimentos dão a tônica da aproximação entre as personagens principais: a adoção de um cachorro, a preparação de jantares, o cuidado com os bibelôs – momentos que ensejam o conflito entre as personalidades.

Emerenc mora na mesma vizinhança de Magda, numa casa cuja porta nunca é aberta. Os vizinhos e amigos se reúnem no pátio para confraternizar, jamais entram. Com o passar do tempo, a porta vai se tornando uma espécie de mística para a escritora: não afasta as pessoas apenas da casa de Emerenc, mas também do seu íntimo, do seu ser mais profundo.

Conforme a relação das duas vai se estreitando, Emerenc é capaz de se abrir – ainda que muitas vezes em momentos de fúria ou profundo sofrimento – e revelar a Magda incidentes de tempos remotos. E é nessa volta ao passado, que o romance abandona a questão humana e se aprofunda nas questões políticas, nos acontecimentos que marcaram a história da Hungria ao longo do século XX.

Pelas memórias de Emerenc, somos levados à Revolução dos Crisântemos, movimento iniciado em 1918, que culminou na independência da Hungria do até então Império Austro-Húngaro. Com a crise econômica, esta mesma Hungria, agora independente, viu suas relações comerciais com a Alemanha crescerem, alinhando-se ao Eixo na Segunda Guerra Mundial e engrossando as fileiras das tropas nazistas nas invasões das extintas Iugoslávia e URSS.

De acordo com Hannah Arendt, quando o fim da guerra já era iminente, a Hungria recebeu o oficial Adolf Eichmann em 1944, para pôr fim à questão judaica – depois de já haver deportado milhares de judeus para Auschwitz. Em 13 de fevereiro de 1945, o país caiu sob o domínio do Exército Vermelho. E então passaria por uma nova fase da sua história política.

Sob o domínio dos soviéticos, o controle passou a ser total. Nada escapava ao governo: correspondências, produção artística ou intelectual. Tudo era vigiado. Depois da revolta fracassada da Polônia ao tentar se desvencilhar dos países da Cortina de Ferro, foi a vez da própria Hungria buscar a sua emancipação, de uma forma muito mais radical do que até então se tentara. Em 12 dias de insurreição, destituíram o regime estabelecido e fundaram uma nova ordem social – que foi debelada pelos tanques soviéticos.

Esses acontecimentos funcionam como um cenário – ainda que algumas vezes não seja totalmente explícito, devendo o leitor ter algum conhecimento prévio da história desse país – a partir do qual os feitos maternos e humanos de Emerenc se destacam. A personagem – a verdadeira protagonista do livro, embora não seja a narradora da história – encarna em si uma moralidade superior, quase uma santidade. Sempre disposta a ajudar o próximo, a suportar as humilhações e as dores do mundo, a lutar pelos ideais de justiça, procurando apenas morrer com certa dignidade. Dizia não acreditar em nada que fosse transcendente, mas será verdade?

Emerenc odiava o mundo de César, não o mundo de Deus, conforme o depoimento da própria Magda:

o que Emerenc odiava era o poder, não importa em que mãos estivesse, se aparecesse algum homem capaz de resolver todos os problemas dos cinco continentes, Emerenc ficaria contra ele também, simplesmente porque seria o vencedor. Para ela, todos tinham um denominador comum, deus, o escriturário, o militante do partido, o rei, o executor, o secretário-geral da ONU, e, se acontecia de ela manifestar sua solidariedade a alguém em particular, sua compaixão era universal, não apenas a quem a merecia, mas a todos, mesmo aos criminosos

Magda é a personagem terrena, que não consegue entender as reais motivações da sua emprega, tampouco o seu temperamento peculiar. Sempre age em busca da aceitação social, seja do Parlamento, do marido, da vizinhança, dos editores, dos críticos. Talvez por isso seja incapaz de compreender as ações de sua empregada, não consegue vestir a pele do outro. E assim, em um momento crucial, ainda que tentando ajudar, trai a confiança de Emerenc – com consequências trágicas.

Engana-se quem enxerga em A Porta a mesma literatura feita por Elena Ferrante – talvez a associação seja imediata por conta do predomínio de personagens e da psiquê femininas. Szabó conversa diretamente com os romances da primeira fase de Milan Kundera – período que vai de A Brincadeira até A Insustentável Leveza do Ser. Ambos os escritores de países destruídos pelo comunismo, utilizando essa realidade sofrida como pano de fundo para construção de seus romances e erigindo indivíduos moralmente superiores, que não se deixaram sucumbir pelas intempéries do poder.

A Porta carrega em si a simbologia da passagem, da abertura para o que é desconhecido. O portal que conduz ao inferno de Dante, ao oráculo de Delfos ou a Moria de Tolkien.  Emerenc pode ser encarada como uma espécie de guardiã nesse ritual. A porta está ali, podemos enxergá-la, tocá-la. No entanto, para adentrar, é preciso coragem. Lembrando o Padre Antonio Vieira, a porta terrível não é a de que se sai, mas a por onde se entra.

Magda não entendeu Emerenc, jamais entenderia. A velha empregada dedicava à vida a algo que era maior do que ela própria, que a transcendia. A escritora aspirava a essa transcendência, mas sem fazer todas as apostas necessárias. Magda falhou, como confessa no último capítulo:

A chave gira na fechadura. Mas me esforço em vão.

Guilherme Stumpf

Bacharel em Direito pela UFRGS. Colaborador do site PersonaCinema.

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