por Daniel Lopes – Foi um entardecer muito quente de primavera, aquele em que satanás foi visto pela primeira vez na incrédula Moscou dos anos 1930. O diabo, apresentando-se como um artista estrangeiro de sobrenome Woland, e seus comparsas vão aos poucos entrando em contato com cidadãos moscovitas, espalhando infortúnio por onde passam naquela imensa cidade. […]
por Daniel Lopes – Foi um entardecer muito quente de primavera, aquele em que satanás foi visto pela primeira vez na incrédula Moscou dos anos 1930. O diabo, apresentando-se como um artista estrangeiro de sobrenome Woland, e seus comparsas vão aos poucos entrando em contato com cidadãos moscovitas, espalhando infortúnio por onde passam naquela imensa cidade.
Mikhail Bulgákov (1891-1940) pretendeu com O mestre e Margarida, que nunca chegou a ter uma versão definitiva diretamente de seu punho, compor uma sátira do totalitarismo soviético. Para tanto, lançou mão de elementos fantásticos. Não pela primeira vez na carreira, note-se. Desde os anos 1920 era fã de H. G. Wells, e Ovos fatais e Coração de cachorro, ambos aparecidos nessa mesma década, são em certa medida estórias de ficção científica. Como parte do enredo de Ovos fatais, a propaganda comunista investe contra o personagem Persikov, um professor e cientista. Com isso, Bulgákov foi rotulado de “contra-revolucionário” e nunca mais teve sossego. Muito embora uma pequena parcela de sua produção teatral fosse favorável aos anos de ascensão de Stálin, o autor era continuamente perseguido. Durante os anos 30, chegou a trocar cartas e falar ao telefone com o ditador, tentando um passe verde para fora do país, o que lhe permitiria reencontrar a família expatriada. A saída lhe foi negada.
As grandes autoridades políticas e policiais, no entanto, não aparecem em O mestre e Margarida. Parece que com elas nem mesmo o demônio tem peito para se meter. Ao invés, desfilam pelas páginas a intelligentsia soviética, os editores, jornalistas, literatos e teatrólogos. A camada responsável por pensar o sistema e torná-lo digerível. Em troca, é bem verdade, de uma boquinha financeira e gastronômica – um dos points de Moscou é um prédio confortável e com uma cozinha de cardápio variado, com o qual a maior parte da população poderia apenas sonhar, pois infelizmente a entrada nesse prédio estava restrita a escritores credenciados pelo governo, ou seja, aos únicos escritores que poderiam viver de escrever na União Soviética.
Na comitiva de satanás, encontramos uma feiticeira nua; Korôviev e Azazello, seus ajudantes; e Behemoth, um gato preto de tamanho incomum, que anda nas patas traseiras e fala. Sim, Behemoth fala e fala muito, é o brincalhão da turma, o arruaceiro. Ele se diverte ao fazer de trouxas respeitáveis cidadãos moscovitas. Como era de se esperar de entidades sobrenaturais, leem pensamentos e materializam-se repentinamente em qualquer lugar. O maior escândalo, eles causam no Teatro de Variedades. Os diretores da casa e os presentes esperam que Woland, na condição de especialista em magia negra, faça truques mirabolantes, e contam como indispensável para manter o espírito altivo e racional da nobre plateia que, após as mágicas, os segredos dos números sejam revelados. O demônio e seus ajudantes fazem chover dinheiro e em seguida fazem surgir do nada roupas francesas de luxo, despertando a vaidade enrustida dos presentes, que vão à loucura. Mas depois, ao invés de revelar segredos, os prestidigitadores somem de cena. Nos dias seguintes, a cidade é tomada de boatos e de mais eventos estranhos. Quem entra em contato com os seres infernais e depois sai contando o que viu, é tomado por louco e prontamente encaminhado para o hospício do doutor Stravinsky.
Paralelo a essa trama principal, é recontada a história de Pilatos e da crucificação de Jesus, através de sonhos de personagens e de narrativas para os mesmos vindas do próprio Woland. É também sobre Pilatos o romance escrito pelo “mestre” do título, amante da bela Margarida. Dos diversos personagens que pararam no hospício, o mestre é o único que foi voluntariamente. Viu que não tinha mais condições psíquicas para continuar no meio da sociedade após se ver intelectualmente perseguido por aqueles que, não contentes em negar a publicação de seu livro, passaram a acusá-lo de fazer “apologia de Jesus Cristo” e de ser “um militante do velho credo”. Impossível não pensar que Bulgákov tenha refletido nesse personagem uma fatia da própria paranóia.
O mestre e Margarida tem uma história de 10 anos. Ou de 60 anos, se contarmos outros eventos. Bulgákov começou a escrevê-lo ainda em 1928, vindo a queimar o que estava pronto em 1930. Do ano seguinte até 1936, conseguiu reescrevê-lo, e um ano depois a terceira versão estava pronta. E então, os outros eventos. Quando morreu em 1940, trabalhava em uma nova versão, concluída pela sua (terceira) esposa, Yelena Shilovskaya. Em 1967 o romance foi publicado na Rússia, mas em versão mutilada por censores. Em 1973 a versão integral ganhou as páginas de uma publicação soviética, mas apenas em 1989 (bem nesse ano!) apareceu a versão hoje considerada canônica.
É um dos livros indispensáveis do século passado. Sua edição brasileira, com tradução diretamente do russo por Zoia Prestes, estará com certeza entre os dez lançamentos literários mais importantes de 2010.
::: O mestre e Margarida ::: Mikhail Bulgákov ::: Alfaguara, 2010, 456 páginas :::
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Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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