Um passeio pelos quatro romances que o autor não renegou
por Daniel Lopes
Os quatro principais romances do mineiro Campos de Carvalho (1916-1998) continuam sendo reeditados em volumes bonitinhos pela José Olympio (desde 2008), e isso é e sempre será motivo de comemoração. É uma pena que o autor tenha renegado dois livros, Banda forra (1941) e Tribo (1954), vetando futuras edições – o primeiro é de ensaios de humor, o segundo, um romance.
Ler o Campos é ler sempre sobre os temas mais urgentes e sérios da condição humana, mas sorrindo. Gargalhando. Quase o tempo todo. O tempo todo em O púcaro búlgaro (1964). Neste, o mais escrachado dos quatro em constante reedição, um grupo de aventureiros de gabinete se engaja em planos e nada mais do que planos para descobrir se, afinal, a gloriosa nação da Bulgária existe mesmo ou se apenas não passa de uma ilusão, uma miragem, um delírio de exploradores. “Se a Bulgária existe”, sentencia o narrador em uma das primeiras páginas mais divertidas da literatura brasileira, “então a cidade de Sófia terá que fatalmente existir. Este o único ponto no qual parecem assentir os que negam e os que defendem intransigentemente a existência daquele amorável país, desde os tempos ante-diluvianos até os dias pré-diluvianos de hoje.”
O fato de os desbravadores serem desbravadores de gabinete, apenas, facilitou o translado do Púcaro para o teatro, em uma divertida peça que rodou várias cidades.
Se ocorrer do leitor se iniciar pelo universo de Campos de Carvalho pelo Púcaro búlgaro, ele poderá pensar, como foi meu caso há alguns anos, “Legal que um autor tenha atingido em seu último livro um nível desses”. Mas, como logo se descobre, Campos de Carvalho manteve mais que atingiu um nível no Púcaro. Três anos antes o autor havia publicado Vaca de nariz sutil e, oito anos antes, A lua vem da Ásia, igualmente hilários.
O narrador de A lua vem da Ásia é anônimo – ou melhor, tem quantos nomes quer, quando quer – e pensa estar em um hotel de luxo. Perdeu a noção do tempo e do espaço – não apenas não sabe em que cidade está, mas nem em que país (tem convicção, apenas, vejam só, de que se encontra em um hotel em plena zona de guerra). Porém, esteve antes por muitas paragens, pelo menos em sonho e pensamento.
No “hotel”, eis o tipo de “espetáculo” a que se permite:
(…) a noite não é tão triste assim, e eu bem posso, querendo, sentar-me à beira da cama, colocar as duas mãos na fronte como o faria qualquer sujeito de bom senso, e distrair-me assim com o espetáculo da parede sempre branca e sempre imóvel, a dois palmos do meu nariz.
São as limitações do mundo físico. Com a mente a conversa é outra. A sua, é um turbilhão. Parece que não aquieta nunca, nem mesmo quando ele está dormindo. Aliás, não se sabe muito bem quando está dormindo ou acordado. Pode ser que esteja “escrevendo” suas “memórias” enquanto dorme, quem garante que não? Mas uma coisa é certa: não entende como alguém consegue pegar fácil no sono, o que lhe parece uma verdadeira façanha:
Assombra-me (sempre me assombrou) ver a facilidade com que certas criaturas se recostam num travesseiro e caem logo num sono profundo, como se se houvessem suicidado inteiramente, sem problema nenhum a resolver no dia seguinte. (…) Em mim, o superlúcido, o sono foi sempre uma conquista muito difícil, e sua escalada através dos anos sempre me pareceu mais penosa e meritória do que a do Himalaia, ou mesmo a do monte Everest.
A maior graça do início do romance se dá – para além do relato de suas aventuras imaginárias (todas?) ao redor do planeta (entre elas, aulas de berimbau no Conservatório de Viena) – pela narração dos eventos diários como se realmente ocorressem num hotel, quando desde o começo o leitor pode ter consciência de que trata-se de um hospício (confesso que por um breve instante fiquei em dúvida entre hospício e prisão, afinal o narrador poderia estar delirando após levar muita pancada, mas os “maîtres-d’hôtel” vestidos todos de branco logo me decidiram) – “Não entendo, sinceramente, como um hotel de boa reputação como este permite que os seus hóspedes se imiscuam na conversa uns dos outros sem ao menos serem apresentados, criando situações por vezes difíceis e ruidosas, que podem muito bem um dia levar até o crime.”
O narrador demonstra ser indivíduo de considerável integridade moral. Relembra da vez em que deu um murro num sargento que lhe maltratara no exército – “continuei ileso e cada vez mais cioso de minha ignorância em matéria de balística e de carnificinas heroicas, como de resto espero viver até o fim dos meus dias”. Mais adiante, enquanto pensa em fugir do prédio: “(…) jamais eu me perdoaria morrer no cativeiro como um rato qualquer, sem a coragem ao menos de enfrentar de peito aberto a horda de bárbaros que aqui nos retém por motivos certamente idiotas mas com toda certeza desumanos”.
A esta altura, o narrador já “descobriu” que o hotel é na verdade um campo de concentração, “com tortura e tudo”, e, evidentemente, a graça fica de lado, até porque a tortura, ao contrário da zona de guerra, é real – e sem motivo aparente, rotineira, absurda. O “soro da juventude” que as funcionárias do “hotel” vinham-lhe aplicar todas as noites agora se transmuta no “soro da verdade” trazido por verdadeiras algozes. “(…) os nossos carrascos decidiram que não somos homens até o dia em que finalmente resolvamos voltar ao aprisco das ideias feitas e ao cadinho de seus sentimentos desumanizados e postiços” – lemos esta e outras passagens e fazemos a pergunta clássica: quem são os loucos, os internados ou os que internam?
A lua vem da Ásia foi a obra com que, segundo o escritor, sua literatura começou de fato. Ele data de 1956 – portanto, uma década após o fim da Segunda Guerra – e o campo de concentração do livro, por mais imaginário que fosse, fatalmente seria menos cruel que os campos da história recente, os nazistas e os soviéticos, os últimos ainda em pleno vapor enquanto Campos de Carvalho publicava. E, por que não?, em 56 estamos há apenas dois anos do suicídio de Vargas, que em sua primeira encarnação comandou uma ditadura. Nas páginas dessa estória que os iludidos classificaram de surreal, o termo “cidadão do mundo” ganha um significado amargo, pois é por não ser bem vindo em lugar nenhum que o narrador vive mudando de país.
O livro é do período entre-ditaduras no Brasil. Assim, o narrador de Campos de Carvalho foi ao mesmo tempo memorialista (que “intentona pseudobolchevista” é mesmo aquela que presencia ou revive?) e profeta (o que dizer dessas linhas? – “já imaginou o romance sensacional que poderemos escrever um dia sobre esta experiência bélica a que estamos sendo submetidos em pleno tempo de paz, se é que se pode chamar de paz a este estado de angústia permanente e de ódios gratuitos que marca todos os nossos passos … ”).
Há enfim a fuga do “campo de concentração”. E, agora que o mundo fora do hospício passa a ter papel mais decisivo na trama, o questionamento sobre quem são mesmo os loucos martela cada vez mais forte na cabeça do leitor.
O personagem fujão se deixa jogar de um lado para o outro em meio aos mais absurdos acontecimentos, entre os quais a proto-revolução que empolga as massas e logo em seguida fracassa, empolgando as massas na defesa do campo oposto. Não obstante os capítulos ordenadamente “letrados” dessa segunda parte (indo de A a Z), em oposição à nomeação e numeração anárquica da primeira parte, o narrador continua num mundo estilhaçado, confuso. Ao invadir um apartamento, identifica um quadro de Picasso na parede, mas depois reconhece que era na verdade “um espelho sem brilho e quase surrealista, no qual eu me vira refletido sem poder reconhecer-me”.
O livro passa a ter um teor mais filosófico. É uma filosofia, no entanto, tomada de bílis, de invectivas contra todos, de um irremediável pessimismo:
Se não consigo ser otimista é porque igualmente não consigo ser menos calvo, ou menos baixo de estatura, ou ainda menos feio do que pareço diante do espelho. O resto é psicologia de ginásio e receita de milagreiros que nem sequer sabem do que é feita a alma do homem, confundindo-a com o ar dos seus pulmões ou dos seus intestinos, invisível aos raios X.
Há um espacinho para fé sem religião – “o verdadeiro misticismo não depende de pequeninas bolas de osso enfiadas num pedaço de barbante”.
O narrador continua sem noção do tempo ou espaço, mas não há dúvida quanto à sua preferência. Ao pegar um relógio de ouro no bolso de um enforcado que encontrou ainda balançando num galho de árvore, decide que seria melhor ter encontrado uma bússola, para que enfim pudesse ter um Norte (tanto literal quanto metafórico).
Em suas últimas páginas, o romance toma um tom poético. Poucas vezes li algo que, em tão poucas páginas, mudasse tanto de tom, sem contudo perder em intensidade – pelo contrário, ganha. A trilha comédia-tragédia-filosofia-poesia vai se completando, o que não quer dizer que em cada etapa as outras estejam completamente ausentes. Isso não existe.
Tal como sua filosofia, a poesia do narrador é sombria. De fato, são nesses dois âmbitos que tomamos conhecimento do que sem dúvida é um indício da causa de sua loucura: a incapacidade de se situar adequadamente (quer dizer, de uma maneira que garanta pelo menos a sanidade mental) em um mundo com tanto sofrimento, hipocrisia e nonsense. “O meu riso”, confessa, nos remetendo ao início do relato, “que a muitos parecia louco, era em verdade apenas um pranto disfarçado”. Sua resposta a essa “dura e feia realidade de todos os dias, inclusive feriados e dias santos” é mais um exemplo de sua integridade e não-conformismo:
Se não posso mudar o mundo, tampouco permitirei que o mundo me mude a mim, arrancando-me esse câncer de mistérios e heresias que é toda a minha riqueza e que faz com que minha voz não seja apenas o grunhido de um porco, nem meu olhar apenas o olhar de um peixe dentro do aquário. Aos mil professores que tentaram deseducar-me respondo-lhes com um piparote no cocuruto, exatamente como fiz ao médico que não soube descobrir a causa do meu pranto, e a toda a sua ciência oficial e cheirando a naftalina eu oponho a onisciência do meu instinto indomável e sem máscara, mesmo porque não existe (que eu saiba) nenhuma máscara de mil faces.
A exemplo de A lua vem da Ásia, a ambientação inicial de Vaca de nariz sutil é sufocante.
O protagonista vive num quarto de pensão, em companhia de um surdo-mudo. Quando vão dormir, é assim. O surdo-mudo “chega, despe-se, ajeita o travesseiro como se fosse morrer, e morre efetivamente”; e o narrador dorme “exatamente como uma pedra”. Ao referir-se em outro ponto aos restantes moradores da pensão, nota que “é como se eu morasse no subsolo e eles lá no teto”.
Se lembrarmos que os dois outros personagens centrais são um zelador de cemitério e sua filha que não solta uma palavra, estará claro que a vida como morte e os vivos como mortos-vivos são os temas desse romance de 1961. Tal como o infeliz heroi de A lua vem da Ásia, aqui também o protagonista encontra uma dificuldade danada de pegar no sono. Quando pega, pega mesmo, pois fica como pedra, mas como é difícil pegar…
A bílis do narrador de A lua vem da Ásia ganha uma adição no daqui, enquanto são relatadas ocorrências de sua vida pregressa e andanças do tempo presente, nas quais vê defuntos por toda parte, quero dizer, vê todos como defuntos, tanto populares como autoridades – “Deveria ser obrigação do governo enterrar à força tais carcaças, é o mesmo que deixar de pé as ruínas de uma guerra”.
De defunto e de guerra ele entende, pois esteve na Segunda Grande ou outra qualquer de menos brilho. É hoje um veterano aposentado e paga a pensão “com a pensão que o Estado me paga pelo meu estado”. Perdeu grandemente a capacidade de ver os encantos da vida, se é que nasce-se com essa capacidade como se nasce com uma cabeça e dois olhos, e se é que há em toda vida encantos a serem vistos. Enfim. Sobraram-lhe, além do ódio, o escárnio e a ironia. (E um lirismo de ocasião, que vai esperar o próximo parágrafo.) Numa quermesse:
Os fogos de artifício não impressionam a quem já os viu sem nenhum artifício, com tanto cogumelo atômico não é possível achar mais graça nestas pirotecnias, ou bem somos infantes como eles querem ou como gostaríamos de ser: decidam-se de uma vez.
Sua arma é uma lábia que joga com as palavras – “Desfilassem eles, os donos da festa, com as suas bandeirolas e os seus distintivos, tão distintos que nem com distintivos já conseguem distinguir-se uns dos outros”; “Seu nome é mesmo Valquíria? Era. Aquilo me dava uma ideia de cavalgada; cavalguei”. Sim, o lirismo. Quando conhece esta Valquíria filha do zelador do cemitério, moça entre 15 e 20 anos, o narrador derrama-se. Ela mora lá, com o pai ex-professor de latim (opa!), e de lá não sai nunca. Na edição de 1995 com a obra reunida de Campos de Carvalho, Carlos Felipe Moisés aponta sagazmente na introdução o paradoxo de que, nesta ficção que tem como leitmotif a morte, é no cemitério que se encontra a possibilidade de vida, devido a Valquíria.
Na pensão em que mora com o surdo-mudo, todos os inquilinos são de uma discrição, mas apenas nas horas de refeição, todos à mesa bem compostos e de fala mansa. Ocorre que nosso narrador passa algumas noites a espiar-lhes a intimidade por entre fechaduras e sabe de cada um coisas impressionantes. Revela: “Já copulei com todas, e não foi uma nem duas vezes, e com alguns dos senhores também, desculpem-me a ousadia”. Em adição, nas praças, observa o entra-e-sai de amantes e cornos nas casas, tendo-lhes manjado os horários até – “Não tenho nada a ver com isso, o que faço é apenas constatar”. Do mesmo ponto, mostra-se um veterano de pouco respeito pelos símbolos da Pátria (não obstante ser, ou terem feito dele, um heroi de guerra), ao mirar
O busto do protomártir resistindo às intempéries, só lhe caiu mesmo um pedaço da orelha, a esquerda; isso para quem já foi até esquartejado não tem a menor importância, dá até uma certa cor local; o escultor nunca esteve mesmo à altura, seu gênero são positivamente as estátuas eqüestres, com cavalo ou sem cavalo. Às vezes os vagabundos se encostam ao pedestal e põem-se a resmungar, como se se tratasse de um novo complô nas barbas da polícia: o busto a essa hora há de sentir-se bem à vontade, eu já lhe descobri mesmo um fulgor estranho nos olhos e no nariz, e não havia sequer sombra de sol. O guarda que ajudou outrora a enforcá-lo hoje zela pela sua integridade, coisa que nem a mim, nem ao guarda, nem ao próprio interessa explicar – para isso existem os mestres-escolas, e ganham.
Deflora as filhas das mais diversas e respeitadas autoridades. Um acinte à ordem e aos bons valores sociais. Delas, autoridades, o narrador não aguenta o falso moralismo. Vai a julgamento – metafórica e literalmente falando. Se emputece com os personagens do teatro no tribunal:
O escrivão, esse é um infeliz, poderiam até metê-lo atrás das grades que já não daria pela diferença, continuaria fungando um pouco mais ou um pouco menos, que nisso se resume a sua filosofia. O cabo, bem, esse nem sequer sabe do quê é cabo, há de ser cabo de alguma coisa e isso lhe basta: o cabo da autoridade, dito assim até que não soa mal, seria pior se fosse o rabo. O delegado é que é um capulazinho, estudou que estudou para acabar acabando nisso, acha todo mundo com cara de criminoso e se esquece de se olhar no espelho – ou tem medo, o que também pode ser: com aquela sua voz não assusta nem um passarinho, quem me disse foi a própria filha segurando-me o meu. O outro é o Cristo, e é quem menos manda lá dentro: entronizaram-no com latim e tudo e lá ficou entronizado: se desse um pio iria parar direto na cadeia, talvez já o tenham posto ali como ameaça: no meu caso pelo menos foi de uma discrição absoluta, houve um instante mesmo em que me pareceu estar assobiando.
A chuva imóvel destoa dos outros três livros de Campos de Carvalho que andam ganhando reimpressão. O narrador é um infeliz, mas não almeja a ironia ou os tiros certeiros enquanto cai. Tem talento para a autoimolação. Funcionário de pequeno porte, nutre paixão por uma moça (sua irmã) e tem ódio do patrão (marido da irmã). Em um parágrafo e outro me lembrou o Luís da Silva que Graciliano Ramos criou para Angústia, mas não adianta perder tempo comparando os dois livros; a praia de Campos de Carvalho era os delírios do real, a seriedade da fantasia e o humor de ambos. Para mim, A chuva imóvel é uma nuvem que felizmente passou rápido pela obra do autor. Em carta de novembro de 1963, ano em que o livro havia saído, ele revela a Carlos Moisés: “Estou no momento escrevendo outra novela a pedido do Ênio [Silveira], para sair no primeiro semestre de 1964. Será dentro da linha de A lua vem da Ásia, o que não significa venha a ser necessariamente um retrocesso na minha carreira. Apenas depois de A chuva imóvel eu me devia a mim mesmo um livro mais ameno e, digamos assim, mais humorístico.” O livro em questão seria O púcaro búlgaro e, longe de marcar um retrocesso, marca um regresso ao melhor Campos de Carvalho. Infelizmente, de 1964 até sua morte, em 1998, não publicaria mais nenhuma ficção. Em 1972 colaborou com o Pasquim, e seus textos para lá foram reunidos no igualmente recomendado Cartas de viagem e outras crônicas (José Olympio, 2006) – ah sim, a crônica também era da praia de Campos.
::: A lua vem da Ásia ::: José Olympio, 192 páginas :::
::: Vaca de nariz sutil ::: JO, 112 páginas :::
::: A chuva imóvel ::: JO, 128 páginas :::
::: O púcaro búlgaro ::: JO, 112 páginas :::
::: esses títulos estão na Obra Reunida de Campos de Carvalho, JO, 1997, 384 páginas :::
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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