Não teria sido mais fácil para o "império" deixar Kadafi esmagar os rebeldes?
por Daniel Lopes
Ter lido o livro do finado Revel a respeito da Obsessão anti-americana bem quando iniciava-se a onda de revoltas árabe foi uma experiência para a vida toda. Fiquei sabendo que o velho Jean-François realmente entendia das coisas.
Vocês já devem ter visto por aí nas últimas semanas, na internet não alienada: não importa o que os Estados Unidos façam, estão sempre errados.
O caso da intervenção na Líbia é um mimo. Como podem os EUA e seus aliados declararem guerra a um ditador de quem eram amigos até bem pouco tempo? Não é hipocrisia além da conta?
Pois é, eles se toleravam. Há poucos anos, Kadafi se encontrava com Condolezza Rice, Berlusconi, Vladimir Putin, Lula e com o socialista espanhol Zapatero. No entanto, o resultado da reaproximação dos EUA foi o fim do programa nuclear líbio. Isso foi ruim? Uma alternativa era o governo de Rice invadir a Líbia como havia invadido o Iraque. Os “anti-imperialistas” teriam aprovado a invasão? Pelo menos não poderiam ter acusado o Ocidente de “incoerência”. Outra alternativa: manter a Líbia no limbo e deixá-la desenvolver armas nucleares. Os “anti-imperialistas” teriam batido palmas? Pacifistas a gente sabe que eles são, pelo menos de tempos em tempos. Que maravilhosas estariam sendo as chances da democracia na Líbia com um Kadafi munido de bomba nuclear e despreocupado com a reação estrangeira a sua brutalidade.
Ora, se os líbios não arrumaram nos anos 70 ninguém melhor para comandar a “libertação” de seu país, nos anos 2000, se líderes ocidentais quisessem desarmar a Líbia sem invadi-la, não poderiam ter negociado a não ser com Kadafi. Ou alguém acha que Zapatero não teria preferido lidar com um libertador genuíno como Nelson Mandela?
Zapatero é outro que andava conversando com Kadafi e agora participa da intervenção, mas não se lê textos sobre sua hipocrisia. O alvo é o “império”. Ainda assim, vale perguntar por que Zapatero defendeu a ação da OTAN. Há uma semana, Kadafi estava às portas de Benghazi, centro dos rebeldes líbios, pronto para entrar na cidade e derramar sangue, promessa expressa em cadeia nacional de rádio e tevê. E os revoltosos estavam pedindo intervenção ocidental. Terá sido para salvar as chances da democracia na Líbia e um bom punhado de vidas que o primeiro-ministro socialista advogou a intervenção? Creio que sim. Os “anti-imperialistas”, se forem coerentes, não podem ser da mesma opinião. Eles têm que dizer que a Espanha de Zapatero é apenas um instrumento do “neo-colonialismo americano”, ou qualquer besteira do tipo. Porque se Zapatero agiu como agiu para salvar vidas e fazer com que a democracia continue brilhando no horizonte dos líbios, por que EUA, França e Inglaterra não terão agido pelo menos em parte pelo mesmo motivo?
Mas não, essa é uma hipótese que sequer passa pela cabeça dos críticos. Também não passa por suas cabeças o fato de Obama estar intervindo na Líbia a contragosto. Jamais! Os Estados Unidos não são um império? Não disseram no centro acadêmico que imperialismo é o maior de todos os males? Obama não é o atual mandatário do império, tendo herdado o trono do pai? Suas multinacionais não espalham o subdesenvolvimento por todo canto do planeta em que abrem filiais? Então como pode uma ação com participação de suas tropas ser movida a outra coisa que não a sede de colonizar e lucrar?
A intervenção tem muito de interesseira, claro. É do interesse geopolítico dos EUA e seus aliados estarem do lado das nascentes democracias árabes – aqueles que criticaram Obama por não ter sido mais firme com Mubarak não argumentaram que o presidente estava colocando os EUA no “lado errado da história”? Mas como já ensinou o moralista Adam Smith, muito de útil nasce de ações interesseiras de indivíduos e nações. Se a intervenção fosse apenas um ato “neo-colonialista”, não teria sido mais fácil (e barato) deixar Kadafi esmagar os rebeldes e continuar a fazer negócios com ele? Afinal de contas, Kadafi disse que os rebeldes são na verdade membros da Al-Qaeda, não teria sido difícil para os líderes ocidentais engolirem a desculpa e darem de ombros.
Não é que o país de Obama não faça besteiras e não cometa crimes. Quando não estão perdendo tempo com a Líbia, alguns desses mesmo críticos apontam algo correto: o apoio dos EUA à ditadura saudita. Se bem que alguns não se contentam com a denúncia desse fato e dizem que, além disso, o fundamentalismo da sociedade saudita se deve à presença dos EUA no país, que se acabasse amanhã veria a tolerância aflorar. Uma interpretação divorciada da realidade. A Arábia Saudita foi fundada a partir de uma aliança no século 18 entre o iniciador da dinastia Al Saud e a corrente islâmica fundamentalista de Muhammad ibn Abd-al-Wahhab. A exploração de petróleo no reino começou praticamente em meados do século passado, e não só os EUA, mas o mundo todo fez e faz negócios com essa ditadura árabe, porque nossa economia é movida a petróleo. “Até o roubo”, disse o escritor venezuelano Carlos Rangel citando Schumpeter, “por mais moralmente odioso que seja, coloca o problema da origem da força do ladrão e da debilidade de sua vítima” – Rangel lembrou isso enquanto analisava um “roubo” menos concreto que o do petróleo saudita pelos EUA: o das riquezas latino-americanas pelos EUA, mito com raízes na histórica frustração de políticos e intelectuais latino-americanos diante do nosso fracasso e do sucesso daqueles colonos pés-rapados mais ao norte do continente.
Verdade que teria sido bem melhor se as reservas sauditas tivessem brotado na Noruega. Ainda assim, é duvidoso que o reino wahhabista tivesse se tornado coisa melhor para o mundo se completamente livre do peso estadunidense.
Mais do que o apoio aos sauditas, é reprovável o apoio já de algum tempo virtualmente incondicional dos EUA a Israel, exatamente por ser um apoio mais sincero. Reprovável, não porque Israel seja internamente uma tragédia do tamanho da Arábia Saudita, mas porque o apoio, por ser incondicional, não faz muita distinção entre políticos israelenses responsáveis e políticos irresponsáveis, que há décadas cometem crimes contra os palestinos e outros povos que eventualmente encontrem pelo caminho, como os libaneses. Esses crimes, por sua vez, há décadas servem como pauta de discurso para ditadores árabes, que em um pulo passam de eventos históricos trágicos para um delirante “complô sionista” anti-árabe, fantasma cuja contenção vira programa de governo de autocratas cretinos. Atualmente, na mídia estatal líbia, a Liga Árabe, que deu seu aval à zona de exclusão aérea, é referida como “Liga Judaica”. Tais acusações absurdas costumam ser levadas a sério no mundo árabe.
Então voltamos à Líbia. Não bastasse a tática financeiramente absurda dos “neo-colonialistas” de gastarem dinheiro com uma operação militar que pode durar meses, ao invés de simplesmente continuarem a fazer negócios com Kadafi, ainda cometem o erro de objetivamente apoiar um movimento rebelde baseado no leste da Líbia, região árabe que proporcionalmente mais enviou jovens para combater soldados do Ocidente no Iraque. Definitivamente, o imperialismo capitalista está ficando gagá.
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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