As resenhas de Coetzee são todas ótimas, honestas e cheias de insights
por Daniel Lopes
Mesmo o leitor que nunca leu qualquer das duas coletâneas com os textos críticos de Coetzee, sabe apenas a partir de sua ficção da importância que ele dá à questão do fazer literatura (basta citar Foe, uma joia dos anos 80 onde figura o escritor “Daniel Foe”), da mesma forma que mesmo quem nunca leu Giving offense (1996) sabe que outra preocupação central do autor sul-africano é a liberdade, política e intelectual.
Stranger shores, de 2002, foi sua primeira coletânea de crítica, e permanece inédita no Brasil. Mecanismos internos (Inner workings), de 2007, acaba de chegar até nós na tradução como de costume primorosa de Sergio Flaksman. De seus 21 textos, a maioria publicada originalmente na New York Review of Books, um aborda autor de língua italiana; outro trata de um autor de língua espanhola; outro, um húngaro; 9 outros, autores de língua alemã, a mesma quantidade dedicada a escritores de língua inglesa. O alemão é quase uma primeira língua para Coetzee, e seu conhecimento dessas outras é acima de básico, o que o permite, além de tudo, avaliar questões de tradução. Um ensaio, a propósito, lida especificamente da relação indireta de um autor (Paul Celan) com seus tradutores. Outro ensaio aborda a relação entre um escritor (Faulkner) e seus biógrafos.
Os outros ensaios de Mecanismos internos se ocupam em dar uma visão panorâmica de determinado escritor ou detém-se em livros específicos, tendo nascido como resenhas para a NYRB. Os do primeiro grupo não são grande coisa. Ainda que encontremos aqui e acolá cativantes passagens sobre detalhes pitorescos — como as caligrafias a caneta e a lápis de Robert Walser, e o que elas nos dizem sobre sua personalidade –, elas aparecem no que são nada muito mais do que a biografia básica de um homem de letras.
Já as resenhas, são todas ótimas, honestas e cheias de insights. Alguns fãs do Coetzee ficcionista e observadores de crítica literária criticam o Coetzee resenhista como esquemático demais. Bobagem. Em meio, hoje em dia, a tantos textos que não se decidem entre a teorização vertiginosa e a resenha e acabam perdendo o leitor em cipoais que não dizem nada sobre o livro que deveria estar sendo comentado, as resenhas de Coetzee, com seus incríveis resumos de enredo, são puro oxigênio. Você não precisa ser um escritor de ponta para demonstrar generosidade na busca da compreensão de colegas de profissão e perceber que leitores são seres dignos de respeito, mas ajuda.
Texto exemplar nesse sentido é um de 2003 sobre o romance O engate (2001), da também sul-africana Nadine Gordimer, que polemizou com Coetzee nos anos 80, alegando que durante o apartheid ele não demonstrou suficiente ativismo político junto aos grupos oposicionistas. A partir de arguta descrição do enredo de O engate, Coetzee nos explica como, a partir deste livro, o sentimento de justiça ganhou um caráter espiritual na obra da autora. Ou como os elementos chave da estória deixam Memória de minhas putas tristes (2004) um livro mais rico se lido como complemento de um anterior de García Márquez, O amor nos tempos do cólera (1985).
Apenas um alerta a potenciais leitores de Mecanismos internos ou Stranger shores. Se você é daqueles que não toleram sequer um spoilerzinho que seja, então talvez seja melhor ler os comentários de Coetzee após ler os livros que ele aborda. É até possível que se sinta tentado a voltar aos livros resenhados para os ler com novos olhos.
::: Mecanismos internos: Ensaios sobre literatura (2000-2005) :::
::: J. M. Coetzee (trad. Sergio Flaksman) ::: Cia. das Letras, 2011, 360 páginas :::
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Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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