Os narradores de Bernardo Ajzenberg são frustrados na realidade e, por isso, misturaram a ela fantasias que alimentam transtornos.
O número dois não está apenas no título ou na quantidade de textos que compõem o livro Duas novelas, do escritor, jornalista e tradutor Bernardo Ajzenberg. A dupla, o dois, é componente importante das duas novelas reunidas neste volume. Ou melhor, a relação entre sociedades e os dramas que elas escondem é o tema central. Não poderia ter assunto mais maçante, menos interessante, que o mundo dos negócios. Mas não são rotinas de escritórios e reuniões que Ajzenberg traz para essas novelas, e sim delírios pessoais, que formam histórias sedutoras, transitando nos limites entre confiança, verdades e mentiras, realidades e invenções de uma mente mergulhada na ficção.
A primeira novela, “Goldstein & Camargo” – também a mais extensa, ocupando quase todo o livro –, apresenta ao leitor a vida da sociedade de dois advogados levados pelo seu professor e mentor a criarem um escritório e trabalharem juntos. Narrado em primeira pessoa por Paulo Viena Camargo, a história começa a partir do momento em que o escritório decide defender na justiça um amigo de infância de Márcio Goldstein. Pasquali é assassino confesso de sua mulher; para Goldstein, o episódio não passa de um caso de autodefesa, mas para Camargo o delírio mental do réu é o real motivo desse ato de desespero. Em anos de sociedade, Camargo e Goldstein nunca foram além do campo profissional, e esse caso acaba aproximando o narrador da vida de seu sócio, revelando traumas e desejos escondidos por trás da aparência organizada de Goldstein.
Bernardo Ajzenberg leva seu narrador a contar essa história através dos apontamentos do próprio sócio, encontrando em seu computador uma espécie de diário digital em que utiliza seu almejado talento literário para falar de Pasquali, sua infância e as memórias trágicas que traz dela. Porém, a veracidade do que Goldstein coloca nesse diário é contestado pela sua família, levando Camargo a descobrir que não é apenas Pasquali que possui um problema de ordem mental. E o leitor é tragado para dentro dessa confusão de fatos, do que realmente aconteceu na vida de Goldstein e do que é invenção de sua mente perturbada. Aos poucos, Ajzenberg liga os pontos do vai e vem da narrativa no tempo e esclarece o que é realidade e o que é ficção dentro da trama, mas no fim o mistério se mostra facilmente visível, não custa leitura ou interpretação para se colocar imediatamente ao lado do narrador no embate que trava com seu sócio.
Na segunda novela, “Efeito suspensório”, novamente Ajzenberg escolhe a primeira pessoa. Dessa vez o narrador é Líbero Serra, um homem com ânsia de entrar para o mundo do teatro, envolvido com uma atriz e que tem de suas memórias igualmente misturadas no tempo a lembrança de uma sociedade cujo produto não chega a se concretizar. Jonas é um empresário ousado, que lança a ideia de um restaurante-teatro, dando a Líbero a oportunidade de largar o emprego em uma fundação comandada por um amigo e exercer finalmente seu papel de diretor. A relação entre ele e Jonas parece por demais íntima, fazendo o leitor acreditar que as reuniões acabarão por levá-los a algo além do profissional, mas o autor mostra uma reviravolta na vida pessoal de Líbero que envolve outras pessoas.
Se em “Goldstein & Camargo” o narrador se mostra plenamente consciente e correto no julgamento das pessoas que o rodeiam, aqui o narrador coloca na sua fala toda a perturbação que sua mente carrega. Líbero é um personagem marcado pela traição, amargurado com o rumo que sua vida toma, anunciando a cada frase uma exaltação de espírito que desemboca em violência. Um homem sem controle das próprias ações, que busca um falso domínio sobre outras pessoas, mas é obedecido apenas por sua cadela.
Bernardo Ajzenberg traz em Duas novelas narrativas criadas pelo fluxo de consciência de dois homens comuns, com quem esbarramos diariamente nas grandes cidades, preocupados com suas carreiras, escondendo de todos os dramas pessoais que lhes tiram o sono e atormentam a alma. Goldstein era o escritor frustrado que se dedicou à advocacia, Líbero o economista que sonhava com a vida artística no teatro. Dois personagens inquietos com forte ligação com a ficção, frustrados na realidade e que, por isso, misturaram a ela fantasias que alimentam transtornos.
::: Duas novelas ::: Bernardo Ajzenberg :::
::: Rocco, 2011, 232 páginas :::
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