O gaúcho Altair Martins retorna aos contos, gênero em que estreou
Quando a WS Editores lançou, em 1999, o volume de contos Como se moesse ferro, do então estudante de Letras Altair Martins, instalou-se uma espécie de frenesi na cena literária sul-riograndense. Muito se falou sobre “o poder inventivo da linguagem”, “a forte poesia do texto”, “a ousadia de se libertar da ditadura do enredo e do pano de fundo histórico, tão preponderantes na produção ficcional do estado”, e tais características, certamente, contribuíram para que o livro vencesse, em 2000, o Prêmio Açorianos de Literatura, o mais prestigiado da região sul. Teve início, assim, a trajetória de reconhecimento daquele que, hoje, é um dos mais renomados escritores do Rio Grande do Sul, trajetória coroada com a conquista do Prêmio São Paulo de Literatura, em 2009, pelo seu primeiro (e até agora único) romance A parede no escuro. (Talvez caiba aqui lembrar que, também em 2009, A parede no escuro disputou com meu romance Uma leve simetria a final do Prêmio Açorianos de Literatura e, logicamente, venceu, o que demonstra que, paralelamente à projeção nacional, Altair Martins segue prestigiado em sua própria terra.)
Porém, os elogios à prosa de Altair nunca foram unânimes, e uma pequena amostra de críticas (provincianamente colhidas apenas entre intelectuais e literatos gaúchos) pode dar ideia das divergências. Por um lado, Moacyr Scliar afirmou que, ao ler seus primeiros contos, não teve dúvidas de que estava diante de um “notável escritor”; Cíntia Moscovich já o celebrou como “uma das vozes mais originais no cenário nacional”; Charles Kiefer incluiu um dos contos de Altair (“Humano”, do Como se moesse ferro) entre os três melhores da literatura gaúcha em todos os tempos. Por outro lado, Marcelo Backes definiu os contos de Altair como “ramo torto do realismo mágico”, viciados de “verborragia até a medula” e repletos de “pelanca poética”; Juremir Machado da Silva classificou obras de Altair como “chatas” e de “uma mediocridade total”, frisando a presença de “frases tortas” e “momentos de poesia brega”. A polêmica, tal e qual o autor a que se refere, tem atualmente envergadura nacional, mas no Rio Grande do Sul, estado tão afeito a polarizações e embates, a controvérsia é especialmente acirrada.
Agora, com a publicação de Enquanto água, a boa notícia é que tanto os adoradores quanto os detestadores de Altair Martins terão, sem dúvida alguma, munição de sobra para reabastecerem seus pareceres e pontos de vista. Isso porque, nos contos presentes no livro, ressurgem as características de estilo que tanto dividiram opiniões: os experimentalismos linguísticos e formais, as exóticas figuras de linguagem, a comunhão entre o fantástico e o corriqueiro, a preocupação central com a apreensão psicológica e a elaboração de atmosferas, a intencional densidade narrativa que exige sempre uma revisita para que se faça, na experiência de leitura, a luz do entendimento. Em suma, o texto de Altair Martins segue encharcado de si mesmo, inconfundível. Nesse aspecto, tanto adoradores quanto detestadores hão de concordar: eis um autor que, deveras, possui sua própria voz.
Enquanto água divide-se em quatro partes – “Chuva na cara”, “Depois da chuva”, “Garoa” e “Água com gás” –, cada qual invocando sensações peculiares à experiência de contato com os elementos que lhes dão nome.
Na primeira parte estão os contos mais tempestuosos, mais agressivos da coletânea. “Da margem futura” capta, com enorme sensibilidade, o dilema de uma mulher simples, dividida entre um casamento duradouro (porém esfarrapado) e a promessa de uma nova (e melhor) vida junto a um inesperado amor, provando, logo nas primeiras páginas do livro, que nem só de malabarismos diccionais e adornos vocabulares se faz a literatura de Altair Martins: as personagens constroem-se com solidez e profundidade através de suas ações, de suas falas e de índices narrativos muito bem escolhidos pelo narrador.
Todos os sinais de Rubem indicavam a ideia, uma vida que ela jamais pudera ter conhecido: entrava na fruteira com a filha no colo, e ele fazia-se todo mesuras, agradando a menina para acompanhar os quadris da mãe. Mais velho, de mãos quadradas e judiadas, usando camisa de botões e com o rosto sempre bem barbeado, mostrava uma dignidade em ser simples mas cuidadoso ao embalar a verdura e o legume poucos. Sem precisar perguntar a ninguém, Rubem sabia de tudo na casa dela: um marido de rosto vermelho como um rabanete, cortado pela bebida, e uma mulher de pouco sono.
“Presença” reitera a capacidade de imersão psíquica (ou psicótica, nesse caso) do autor, através da história de um homem instável que, após a morte da ex-mulher, decide se mudar para uma praia a fim de viver com as duas filhas, um tanto distanciadas pelas circunstâncias. A mudança, no entanto, desperta nele os fantasmas da alma, e a narrativa em primeira pessoa flui crível e coerente em sua loucura, em um discurso ao mesmo tempo alucinado e frio, até o desfecho dramático. “Os remos” também orbita em torno do sentimento de luto e seus ecos, e toda a dor, todo o desespero, todo o vazio, são solidificados através da interação da personagem-protagonista com os objetos de sua casa em um competente (e, mais do que isso, comovente) exercício de prosopopeia.
Depois que chorasse, batesse na água, perguntasse uma série de coisas às paredes do tanque, da peça e do mundo; depois que se apertasse nas mãos e nas pernas; depois que xingasse o marido, a filha e a torneira; depois que achasse ridícula a vontade quase feiticeira de enfiar a cabeça entre as pernas e desparir-se dos dias; depois de tudo isso, poderia voltar para casa e guardar as roupas. E talvez olhasse o relógio e sua sensibilidade pontual e decidisse que, depois de tomar um banho, faria café, sem assustar o açucareiro ou os talheres com lembranças que não lhes pertenciam, e ligaria para o jornal para anunciar a venda de um caiaque de dois lugares, sem remos.
Em “O vão do lado esquerdo da ponte”, conto alicerçado sobre a noção de “acidentes de percurso” (tanto literais quanto metafóricos, espelhando-se), surge uma espécie de quarteto amoroso na história de um homem casado que, tendo se envolvido com duas irmãs problemáticas, vê-se, anos depois, ao reencontrar uma delas, enredado em uma dúvida que lhe será decisiva na escolha entre duas possibilidades: prender-se ou libertar-se do que passou. “Homens de verdade” é, talvez, o melhor conto do livro e, sintomaticamente ou não, é o mais despojado de experimentações e tentativas de transubstanciação da linguagem. Isso se deve, em grande parte, à escolha feita para o narrador em primeira pessoa: um recém-adolescente, um desses moleques que andam em bandos e se metem em encrencas — mas, dessa vez, a “encrenca” é muito mais do que isso, configurando-se em verdadeira tragédia. Os fatos concertam-se ao redor da figura de Rui, menino forte mas de mente infantil, uma personagem excluída, da linhagem de Quasímodo, um tanto grotesca aos olhos das demais, mas que encerra em si bondade e pureza quase ausentes no meio circundante. Rui é abusado pelos colegas que se querem provar “homens de verdade” (em cenas descritas de modo cru, mas que, antes de chocarem, muito mais entristecem e até enternecem).
O Marcos perguntava, quase gritando, se o Rui não era homem de verdade. E o Rui entendeu que era preciso fazer aquilo para ser um homem de verdade e voltou a ficar de quatro. Então o Marcos agarrou ele pela bandeira, abriu as pernas dele com um chute, e depois o Rui começou a soprar velinha, de olho fechado, e quando abria os olhos era para olhar pra gente. Do pouco que se conversou mais tarde, apesar de tantas impressões diferentes, duas coisas ficaram claras: a primeira era que o Rui tinha feito aquilo tudo como um cachorro que segue o dono; a segunda era que o Marcos não fazia por um prazer quase selvagem de idade, mas por uma espécie de raiva que só dava pra explicar por um fato difícil do Marcos aceitar: a natureza tinha posto num mesmo corpo a força de uns três de nós e uma cabeça de criança.
Ao final, o seu gesto de autoimolação esfacela a aparente ordem das coisas ao demonstrar quem era o único homem que de fato ali havia, assim devolvendo aos seus algozes todo o sentimento de humilhação sofrido.
Em “Dois afogados”, um dos contos em que a busca por novidade formal é mais evidente, o autor mistura diálogo e imagens de sinais de trânsito para narrar o momento em que um pai confronta o homem que molestou sua filha. “Incêndio no rio profundo” apresenta as agruras de um diabético agonizante e do jovem afilhado que precisa cuidar dele. Aqui, além do final surpreendente e certeiro, um ponto alto são as pungentes e vívidas descrições do sofrimento físico provocado por essa morbidade (Altair, por certo, aproveitou aí muito de sua própria experiência com a doença, e o fez com maestria, porque é escritor de talento, e não basta viver e sentir para saber transmitir em palavras).
Tiago trouxe quase dois litros numa leiteira amassada. O velho bebeu sem tirar a boca, respirando alto. Tiago estava encharcado e assustava-se sem compreender como alguém que bebia tanta água poderia morrer de sede. Nessa noite o velho não dormiu. Sacudia a cabeça de um lado a outro da cama, balbuciando que cãibras lhe comiam as carnes. As mãos se apertavam de dor, e ele dizia que dentro da cabeça bolas de bocha se chocavam com o fundo dos olhos.
Em “Unha e carne”, Altair retoma o tão caro tema da infidelidade conjugal, presente, de modo direto, em três outros textos do livro (“Da margem futura”, “O vão do lado esquerdo da ponte” e “A última mulher adúltera”). O conto apresenta a perspectiva da mulher que descobre que o marido possui uma amante grávida em outra cidade e, após ceder à curiosidade (ou será tentação?) de conhecê-la, precisa decidir entre perdoar ou romper. Altair Martins consegue, a partir de um enredo tão banal, elaborar uma narrativa tensa e, mais do que isso, cheia de suspense, o que demonstra que o escritor por trás dos textos de Enquanto água não é tão somente um esteta ou um beletrista oco: ele é, quando assim deseja, quando assim urge sua pulsão criativa, um hábil contador de histórias.
A seguir, em “Depois da chuva”, o leitor encontrará um único conto, intitulado “O núcleo das estrelas”, que serve como elemento de transição dentro da unidade conceitual proposta para o livro e que nos brinda com boas doses de um humor que poderia ser definido como über-britânico. Nesse conto em terceira pessoa, o protagonista, um acadêmico, doutor em semiótica, chamado um tanto ironicamente de “narrador”, tem um dia comum de sua vida narrado através de um emaranhado de referências eruditas explícitas (Peirce, Kristeva, Langmuir, Martin Buber, Perec, Bakhtin, Chagall, Maquiavel, entre outros), em ritmo de tese universitária. Aplicando as fragmentadas e parciais visões de tantos pensadores e artistas sobre os fatos de seu próprio dia-a-dia e entretecendo tais concepções, o narrador, quase sem querer, a partir da compartimentalização do saber, logra milagrosamente borrar os contornos das coisas, esfumaçando fronteiras físicas e simbólicas e atingindo, por fim, um profundo sentimento de unidade com o mundo, uma comunhão panteísta, um momento de revelação e êxtase, quase uma contemplação mística que, em princípio, paradoxalmente, prescindiria de qualquer arcabouço racional. Nessa união de opostos, Altair consegue o que é muito difícil: descrever e aprisionar em palavras uma dessas pequenas epifanias que todo ser humano por vezes tem e que, assim como os sonhos, são tão fugidias à captura da consciência.
E já não sente nojo da mulher, porque é como se ou ela não existisse ou coexistisse, e as coisas do mundo cristão se pudessem cumprir na ideia de homem e mulher como um só. E sorri o narrador, entregando-se sem nojo, porque também já não sente nojo de si mesmo e pode gozar-se-masturbando numa massa comum que a tudo engole, sem fronteiras entre um indivíduo e outro. (…) Compreende/é-compreendido que há muito o que entender naquela expansão do homem tão oposta ao humanismo, por exemplo se se trata de uma expansão do sujeito ou um recuo do mundo. A última hipótese leva ao afogamento do indivíduo, no teor de Lacan, mas o narrador já não consegue se concentrar nem na tese nem na antítese (…).
Na terceira parte, “Garoa”, estão reunidos os três textos mais breves do volume, aqueles que são também os mais sutis e menos próximos da definição clássica de conto, por causa da ausência de um conflito imantador. “O resumo do mundo” é uma releitura de “O Aleph”, de Jorge Luís Borges, e parte de uma premissa instigante: a descoberta dos diários do navegador português Diogo Cão, famoso por ter sido o primeiro europeu e explorar o rio Congo e por introduzir o uso de marcos de pedra, em lugar das cruzes de madeira, para assinalar a presença portuguesa nas zonas descobertas, e que também já serviu de personagem para a prosa de António Lobo Antunes e poemas de Fernando Pessoa e Camões. Nos fictícios diários estariam reveladas diversas proezas do navegador, nunca antes sabidas, além de um fato extraordinário: a Lagoa do Caldeirão, situada na cratera vulcânica no alto do Monte Gordo, na Ilha do Corvo (a menor dos Açores), funcionaria como o Aleph borgeano, ou seja, um ponto capaz de conter todos os pontos do mundo, em todos os tempos.
“Superágua” tem seu argumento baseado em estudos reais, conduzidos por químicos russos nas décadas de 50 e 60, que detectaram a existência da substância H2O4, o chamado superóxido de hidrogênio, sintetizado a -196°C, a partir de hidrogênio atômico e ozônio (aquele mesmo da famosa camada que envolve a Terra), e que se decompõe espontaneamente em oxigênio e peróxido de hidrogênio (a boa e velha “água oxigenada”) quando a temperatura atinge -115°C. Neste pequeno conto, que flerta com a ficção científica, Altair imagina uma situação em que essa substância teria sido encontrada em forma estável, nas profundezas gélidas do lago Baikal, e especula sobre as suas maravilhosas propriedades físico-químicas, compondo, assim, a descrição de uma água mais que água, uma água surpreendente, numa metáfora das coisas assombrosas que podem se fundir a partir de elementos triviais.
“Quase oceano quase vômito” aproxima-se de um poema em prosa, mas não um poema derramado em lirismo, pois eis que há muita contundência e sujeira nessa imagem do rio que se decide pela revolta contra o jugo humano e que, insurgindo-se, cospe de volta sobre as pessoas tudo que nele tentaram esconder ou aniquilar.
A última parte, intitulada “Água com gás”, tem exatamente o sabor cotidiano e um tanto ácido da bebida; todavia, em um bem arquitetado contrapeso aos cenários e às situações rotineiras em que se iniciam as narrativas aqui agregadas, é também nesta seção que o veio de realismo mágico na criação de Altair Martins se faz mais evidente, mais borbulhante, invadindo as tramas para conduzi-las aos desenlaces. Em “O mar, no living”, ocorre a interpenetração da esfera do fantástico com a esfera do ordinário quando uma simbólica inundação de mar vem conferir a concretude necessária aos conflitos familiares que se insinuam em gestos e meias-palavras durante uma prosaica festa de aniversário.
Assim que a cabeça do avô emerge, feito ferro e coral, já ele é visto por todos e então caminha de volta à poltrona, de onde vê o mar atravessar o vidro, cumprir todo o estágio de retorno da onda e devolver-se ao colo do oceano, agora vermelho no horizonte da tarde e transpassado de calma pela torre da draga vindoura. Correndo sobre seu corpo, os caranguejos minúsculos cor de ferrugem procuram toca, assustados com o anúncio da primeira fatia de bolo.
“Enquanto água”, texto que empresta título ao livro, é o mais críptico de todos, mas não se trata de um hermetismo ad hoc, isto é, uma opacidade gratuita que se autossustenta tão somente pelo gosto de complicar: antes disso, constitui uma narrativa desafiadora, que permite múltiplas interpretações ao mesclar signos quase arquetípicos e duais tais como nascimento/morte, masculino/feminino, água/sede, respiração/apneia, peixes/felinos, humano/animal. O primeiro parágrafo do conto, como se fosse um prelúdio operístico, já expõe os motivos a serem desenvolvidos:
A primeira coisa a dizer é que o personagem se lembrava da dor de respirar pela primeira vez. Revivia nitidamente, após ter nascido, o segundo rasgo, o ar, a sensação madrasta. E, porque lembrava, confundiam-lhe antevisões insistentes, desde a infância, de que nascia de novo, e essa é a segunda coisa a ser dita: imaginava alguém a lhe enfiar as duas mãos na garganta, forçando por virá-lo do avesso. Forçando e, na sequência, conseguindo. Vinha-lhe depois a sensação de estar respirando fogo e, no fim, experimentando uma asfixia grotesca de quem morre de sede, nascia.
“Cobranças” é, sem dúvida alguma, outro ponto altissonante do livro. Nesse conto, um homem enfatiotado surge na propriedade de um fazendeiro, e, por causa de sua fala truncada, é difícil entender o que ele deseja em suas insistentes visitas. O fazendeiro, protagonista-narrador, deduz se tratar de alguma cobrança, muito embora não consiga imaginar qual. O epílogo, poderoso, ambíguo, destilando fantasmagoria e/ou alucinação, torna quase obrigatória uma imediata releitura.
A questão da identidade é referencial em “Patologia de construção”, história de um homem comum, que mora em um prédio de apartamentos e, de repente, se vê às voltas com uma série de infiltrações, de início discretas, mas que vão se tornando mais constantes e avassaladoras, a ponto de objetos, pessoas e, por fim, a vida que há em outros apartamentos se infiltrarem no habitáculo e na ilusória individualidade do protagonista, diluindo-o em uma existência amorfa que, a rigor, nada mais é do que a forma mediana de ser no mundo que ele já vinha desde sempre cultivando mas fazia questão de negar através dos cuidados esmerados com a manutenção das paredes que fisicamente (mas não ontologicamente) o separavam de todos os seus vizinhos. Nesse texto alegórico, utilizando-se, novamente, de uma ironia mais do que refinada, Altair Martins critica a despersonificação do homem contemporâneo e especula sobre as causas dessa ruína das idiossincrasias à medida que o protagonista do conto investiga as possíveis origens da “patologia de construção”, isto é, dos sinais de deterioração das edificações:
Chego ao ponto-chave que busquei descobrir: que os principais vilões nas patologias de construção eram os vícios de concretagem, ou seja, defeitos originados no próprio processo construtivo (erro de projeto ou de execução) ou adquiridos ao longo do tempo (desgastes naturais, manutenção ineficiente, agressões). Nesse último caso, especialista nenhum afirma, mas minha tese é de que a responsabilidade é do síndico.
“A última mulher adúltera”, texto com ares de roman à clef que se passa, provavelmente, em um futuro próximo e alternativo com ares distópicos, conta a história daquela que seria a última mulher adúltera do mundo, uma porto-alegrense, residente no bairro da Cidade Baixa, casada com um funcionário de um conhecido jornal. Tendo sido descoberto pela “Inteligência” que as incômodas tempestades de verão seriam causadas pelas mulheres adúlteras (como se fossem as tormentas uma punição bíblica pelas iniquidades, o que compõe uma tensão interessante com o tempo pós-contemporâneo da narrativa), tornava-se imprescindível acabar com a última delas. O conto é a narrativa dessa kafkiana operação de sequestro e eliminação, trazendo à tona reflexões sobre os mecanismos de exercício de poder e suas arbitrariedades (impossível não virem à mente, durante a leitura, todos os fatos históricos e a imagética sombria dos “porões” das ditaduras). “Toda a novidade do mundo” encerra o livro trazendo de novo à cena a ancestral metáfora do dilúvio (presente também em contos como “Quase oceano quase vômito” e “O mar, no living”), dessa vez para contar a readaptação à vida que um casal tem de empreender depois de ter criado os filhos e ter se mudado “para uma praia distante de qualquer civilização”.
Enquanto água, a exemplo de quase toda compilação de narrativas breves, apresenta momentos de maior e menor brilhantismo (e dizer isso é quase um clichê, além de uma obviedade); porém, no conjunto, não há sequer um conto que possa ser tido como mediano, são todos de excelente qualidade, pois, sem dúvida, Altair Martins domina a linguagem, domina a forma, domina a criação de personagens, domina a construção de cenários e ambientes, domina a arte de contar histórias, e, quando faltam alguns desses ingredientes em um certo texto, os demais ingredientes comparecem com pleno vigor para compensar. Apenas para coroar os elogios, vale a pena destacar a beleza do livro-objeto: uma edição bem cuidada, elegante, com despojadas ilustrações de Rodrigo Pecci, adequadíssimas, pois não rivalizam com o texto — antes, harmonizam-se e quase mimetizam-se com os mesmos.
::: Enquanto água ::: Altair Martins :::
::: Record, 2011, 160 páginas :::
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Rafael Bán Jacobsen
Físico da UFRGS e escritor. Seu romance Uma leve simetria (2009) foi finalista do Prêmio Açorianos.
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