As tradicionais teorias estéticas estariam arruinadas caso o sentido da visão fosse recortado da trama gnosiológica.
Costuma-se considerar válido que, na ciência, todo manejo se acha apenas a serviço da pura observação, da descoberta e abertura investigadoras das “coisas elas mesmas”. Tomado no sentido amplo, o “ver” regula todos os “dispositivos”, conservando a primazia. (Heidegger, Ser e Tempo)
Na análise acima, de um dos mais famosos alemães da filosofia, se confirma que na Gnosiologia, mais conhecida como Teoria do Conhecimento, cânone imortal da tradição filosófica, a visão domina a apreensão do mundo. O ver e o ouvir, sem forçar a barra, preponderam sobre o lamber e o cheirar. Pega mal falar nesses termos quando o assunto é a imaculada filosofia, reconheço. Entretanto, não se encontra habitualmente um filosofar sobre o paladar e o olfato. Não de maneira estritamente filosófica. Acompanhe o pai da ciência:
Todos os homens, por natureza, tendem ao saber. Sinal disso é o amor pelas sensações. De fato, eles amam as sensações por si mesmas, independentemente da sua utilidade e amam, acima de todas, a sensação da visão. Com efeito, não só em vista da ação, mas mesmo sem ter nenhuma intenção de agir, nós preferimos o ver, em certo sentido, a todas as outras sensações. E o motivo está no fato de que a visão nos proporciona mais conhecimento do que todas as outras sensações e nos torna manifestas numerosas diferenças entre as coisas. (Aristóteles. Metafísica, A, 980ª – 25)
As tradicionais teorias estéticas estariam arruinadas caso o sentido da visão fosse recortado da trama gnosiológica. Existem motivos (além dos óbvios) para que a visão (o olho) sustente tamanha primazia? Não seriam justamente o olfato e o paladar os sentidos mais animalizados do homem? E não seria a animalidade uma das categorias com as quais o homem sempre manteve seus mais decisivos conflitos morais? Razão e instinto, tradicionalmente, não se repelem? Michel Onfray nos dá uma boa dica:
Pois a desconsideração ou o esquecimento do nariz na história da filosofia merece um estudo por si só! Seria inútil procurar reflexões, mesmo que modestas, ou análises dignas desse nome concernentes aos cheiros, aos perfumes, aos aromas nas obras de filosofia dedicadas ao julgamento do paladar, à estética, à análise dos sentimentos, emoções ou percepções artísticas. Tudo para o olho! E uma complacência igualmente para com a orelha, pois esses dois órgãos colocam o mundo à distância, ao contrário do paladar, do tato e do olfato, que supõem a carne e o corpo em sua totalidade. (Contra-História da Filosofia, Vol. I)
Você já se deu conta de que a imagem dos grandes filósofos sempre foi trabalhada de maneira ideal, de modo que se tornem ídolos forjados conceitualmente? Parece-nos que não há carne, sensações comuns, coceiras, que não vomitam, que não ficam bêbados ou defecam. Há pensadores, Karl Marx é um exemplo clássico, que sustentam um séquito que não suporta seu deus, no caso comunista, sendo maculado. Filósofos são homens e como tal, imperfeitos. Mas a nossa imanente idolatria não nos faz enxergar o óbvio. Sobre isso, o pensador romeno Emil Cioran, completamente feito de carne e osso, sustenta uma posição pouco carinhosa.
Afastei-me da filosofia no momento em que se tornou impossível para mim descobrir em Kant alguma fraqueza humana, algum acento de verdadeira tristeza: em Kant e em todos os filósofos. Comparada à música, à mística e à poesia, a atividade filosófica provém de uma seiva diminuída e de uma profundidade suspeita, que guardam prestígios somente para os tímidos e os tíbios. Aliás, a filosofia – inquietude pessoal, refúgio nas ideias anêmicas – é o recurso de todos que se esquivam à exuberância corruptora da vida. (Breviário de Decomposição)
Se um dia você afirmou que a filosofia na sua vida “nem fede, nem cheira”, sua alegação não esteve de todo errada.
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