Seu objetivo não é esclarecer, nem mesmo gerar um debate produtivo, mas armar os crentes, levantar a torcida, reforçar a fé dos fiéis.
O amigo editor Daniel Lopes me informa de que o teólogo e polemista americano William Lane Craig virá ao Brasil. Uma rápida consulta ao Oráculo de Google me revela a verdade desse momentoso anúncio: Craig fará um “tour” cristão-ecumênico, falando, entre outros lugares, no Mosteiro de São Bento, em São Paulo, e na Igreja Batista de Itucuruçá, no Rio, agora em março.
Fora do círculo ativo – porém restrito – da apologia cristã, Craig é talvez mais conhecido por ter sido esnobado por Richard Dawkins que, desafiado pelo teólogo para um debate sobre a existência de Deus, recusou-se a se prestar ao serviço.
Fãs de Craig saudaram a recusa como um ato de “covardia” do biólogo britânico, mas Dawkins justificou sua atitude, primeiro, fazendo troça das credenciais de Craig como filósofo e, depois, dizendo que o apologista cristão era também um “apologista do genocídio”, uma vez que ele já escreveu dizendo que as crianças massacradas impiedosamente por ordem de Yahweh, de acordo com a narrativa do Velho Testamento, deveriam se dar por felizes, porque foram salvas e levadas para o Céu. A consequência lógica dessa premissa – que os inocentes estão melhor mortos, porque Deus os acolhe no Paraíso – é a de que um holocausto nuclear seria um ato de caridade. Só a religião, mesmo, é um estultificante suficientemente forte para fazer alguém abraçar placidamente uma ideia assim.
No meio acadêmico, Craig é, ao lado do também americano Alvin Plantinga, o principal defensor contemporâneo da ideia de que o teísmo tradicional de matriz cristã – com um Deus pessoal criador do Universo, infinitamente bom e amoroso, que sacrificou Seu Filho para nos salvar, de acordo com o que diz a Bíblia – é não apenas uma crença religiosa, um compromisso ético-estético ou uma mitologia, mas uma postura filosófica respeitável, defensável à luz da razão e largamente confirmada por fatos históricos.
Claro que qualquer pessoa minimamente familiarizada com o “estado da arte” em termos de história, arqueologia, mitologia, religião comparada e filosofia sabe que esses caras vivem em algum tipo de Universo paralelo, mas como pessoas assim são uma minoria, nada disso os atrapalha.
Dos dois, Craig é o menos sofisticado. Plantinga tece alguns argumentos interessantes sobre a natureza do conhecimento humano – sobre como cada um de nós dá a si mesmo permissão para acreditar que isso ou aquilo é verdade – a fim de defender a ideia de que “autorizar-se” a acreditar em Deus e na missão salvífica de Jesus não é pior do que acreditar na evidência dos próprios olhos. O argumento soçobra, é verdade, mas é intenso e original, além de oferecer alguns insights instigantes a respeito do sempre fascinante campo da epistemologia.
Craig, ao contrário, se limita a reeditar argumentos refutados há séculos por David Hume, a ignorar toda a matemática de Euler a Cantor e a oferecer versões profundamente distorcidas do que realmente dizem a Teoria da Relatividade e a Mecânica Quântica. Ele e seus áulicos quedam-se embevecidos diante do que chamam de Argumento Kalam para a Existência de Deus. O argumento é o seguinte:
Tudo o que passa a existir tem uma causa para sua existência.
O Universo passou a existir.
Logo, o Universo tem uma causa para sua existência.
Se o leitor não vê nada de realmente original e impressionante nessas três linhas, parabéns. O suposto fascínio do argumento é como a velha pegadinha em que uma pessoa para de repente na rua e começa a olhar para cima. Logo haverá dezenas de outras pessoas olhando para o céu vazio, mesmo sem que exista nada de realmente interessante por lá.
As duas premissas são ambas igualmente problemáticas. O caráter aleatório da Mecânica Quântica, por exemplo, somado à reversibilidade dos fenômenos subatômicos, lança sérias dúvidas sobre a natureza fundamental do conceito de “causa” – é bem provável que aquilo que nossas mentes processam como sendo “causalidade” não passe de uma propriedade emergente do cosmo, e não um requisito metafísico básico. Assim sendo, a primeira premissa, plausível à luz do que se entendia como ciência física na Idade Média, se desintegra na atmosfera contemporânea.
Além disso, como David Hume já nos alertava no longínquo século XVIII, talvez não seja apropriado tratar “Universo” como uma “coisa”. Sendo a soma de tudo o que existe, o Universo talvez seja melhor descrito como um conjunto de coisas. Supondo que cada elemento interno do Universo – pessoas, planetas, átomos – tenha uma causa e uma explicação apropriadas (em termos, digamos, de biologia, física, teoria quântica de campo, etc.), que sentido há em questionar a causa do Universo?
É só fazendo uma leitura especialmente seletiva e enviesada da filosofia, de Hume a Wittgenstein, e da física, de Galileu a Hawking, que Craig consegue defender suas premissas.
A segunda – o Universo passou a existir – é sustentada por meio de uma série de ataques ingênuos ao conceito de infinito. Infinitos reais não podem existir porque conduzem a paradoxos, diz ele, fazendo pouco caso do trabalho do matemático alemão Georg Cantor, que desenvolveu uma sólida teoria dos números transfinitos, usada com sucesso pelos matemáticos há quase cem anos. Como a matemática é a disciplina onde, por excelência, contradições não têm lugar (exceto como provas cabais de que alguma coisa está errada), alguém nessa história não sabe do que está falando. Pista: não é Cantor.
Na verdade, coisas que Craig chama de “paradoxos”, como o Hotel de Hilbert, não passam de características contraintuitivas das infinidades. Vejamos o caso do hotel: imagine uma hospedaria que tenha um número infinito de quartos, e que esteja lotada com um número infinito de hóspedes. O que o gerente faz quando chega um novo hóspede? Simples: transfere o hóspede do quarto 1 para o 2; do 2 para o 3; do 3 para o 4, e assim por diante. O quarto 1 estará livre e o novo hóspede poderá ocupá-lo.
O Hotel de Hilbert não é um paradoxo: ele não produz uma contradição, mas apenas ilustra o fato de que conjuntos infinitos têm propriedades diferentes dos finitos. Para visualizar isso, imagine a sequência dos números naturais – 1, 2, 3, 4… – escrita numa tira infinita de papel. Agora, imagine outra tira igual, emparelhada com a primeira. Empurre a segunda tira um pouco para a direita, de modo que seu número “1” agora esteja encostado ao “2” da primeira. A despeito disso, a cada número de uma das tiras continua, sem falhas, a corresponder um, e apenas um, número da outra (mas agora o emparelhamento é 1-2, 2-3, 3-4, etc., e não mais 1-1, 2-2, 3-3…). É a isso que o suposto “paradoxo” se resume. Ao invocá-lo, enfim, para tentar “provar” que infinitos são impossíveis, Craig apenas revela uma importante limitação intelectual: a de considerar “impossíveis” coisas que sua imaginação é incapaz de alcançar.
Em outra linha de ataque, ele diz que o Universo não pode se prolongar infinitamente para o passado porque, nesse caso, um tempo infinito teria de ter transcorrido entre a origem dos tempos e o presente. Como um tempo infinito não acaba nunca, ainda não teríamos chegado ao presente. Mas o presente está aqui. Logo, o passado não pode ser infinito.
O raciocínio tem uma plausibilidade superficial mas, como no caso do Hotel de Hilbert, revela uma falha crassa da imaginação: se o passado é infinito, isso significa que não houve uma origem dos tempos. Um passado infinito não implica uma origem infinitamente distante, mas a ausência de uma origem. Uma vez compreendido este ponto, não é muito difícil perceber que qualquer intervalo de tempo concebível será, necessariamente, finito. Intervalos de tempo funcionam como intervalos entre os números reais: embora o conjunto dos números seja infinito, o intervalo – a diferença – entre dois números é sempre uma quantidade finita e bem definida.
Craig também às vezes invoca os Teoremas de Hawking-Penrose para tentar provar que o Universo teve de ter uma origem. Esses teoremas, demonstrados pelo físico Stephen Hawking e pelo matemático Roger Penrose há algumas décadas, provam que, se o Universo for dominado pela Teoria da Relatividade Geral, então este Universo (entendido como o espaço-tempo onde os eventos ocorrem) teve início num ponto de densidade infinita, a chamada singularidade, onde as leis da física deixam de ter significado e que é, tradicionalmente, um dos esconderijos favoritos de Deus, ao menos entre os apologistas de mentalidade mais científica.
O problema aí é que o Universo não é dominado (apenas) pela Relatividade Geral. Há que se levar a Mecânica Quântica em consideração. Pelo menos desde 1988, quando da publicação de Uma Breve História do Tempo, Hawking renega a ideia de uma singularidade na origem dos tempos, e até mesmo de uma origem dos tempos. O teorema continua tão válido quanto um silogismo do tipo “Todos os marcianos são bípedes/Org é num marciano/Org é bípede”. Mas, da mesma forma que o silogismo, não se aplica ao mundo como ele é.
Claro que, mesmo se o argumento Kalam tivesse algum peso, ainda seria preciso estabelecer que a tal “causa do Universo” é o Deus da Bíblia, mas tremo só em imaginar o tipo de contorcionismo mental, as doses cavalares de desonestidade intelectual e de cara-de-pau necessários para chegar a isso.
William Lane Craig é menos um filósofo e muito mais um spin doctor teísta. No mundo das relações públicas, spin doctors são profissionais que criam desculpas superficialmente plausíveis para explicar o inexplicável – por que o mensalão nunca existiu, por exemplo. E, assim como os spin doctors da política, Craig é bem-sucedido porque prega para o coro. As pessoas que o ouvem e o aplaudem são as pessoas que já saíram de casa predispostas a ouvi-lo e aplaudi-lo. Seu objetivo não é esclarecer, nem mesmo gerar um debate produtivo, mas armar os crentes, levantar a torcida, reforçar a fé dos fiéis.
Mas, enfim, apologia cristã sempre foi isso: como bem notou Nietzsche, o homem de fé não quer saber a verdade – a menos que ela seja o que ele já esperava de antemão. Se não for, buscam-se desculpas. William Lane Craig é um mercador de desculpas. Esfarrapadas.
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