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Bento XVI, impunidade e silêncio

por Carlos Orsi (04/03/2013)

Otimistas veem uma lenta flexibilização da lei do silêncio.

- Bernard Law (mão no rosto) no Vaticano -

– Bernard Law (mão no rosto) no Vaticano –

Com a renúncia de Bento XVI, as mídias, tanto as tradicionais quanto as “novas”, viram-se inundadas por avaliações que preenchem todo o espectro entre o generoso e o ácido, passando por tentativas de uma leitura mais moderada sobre o significado e a herança do reinado de Joseph Ratzinger. No que parece um vício muito comum da comunicação contemporânea, porém, uma questão crucial — a dos abusos de menores por membros do clero — parece-me ter sido tratada, aqui no Brasil, tanto ad nauseam quanto não o bastante: ao menos, não com foco correto e profundidade suficiente.

Mas, sem foco e profundidade, é difícil, se não impossível, fazer uma avaliação correta do legado de Ratzinger, primeiro como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) e, depois, como sumo pontífice, diante do que se convencionou chamar de crise dos padres pedófilos.

O nome, em si, já trai o problema: a essência da crise não está na existência de padres pedófilos. Como muitos defensores da Igreja apontam, corretamente, criminosos sexuais há em toda parte: também existem músicos, escritores, professores, blogueiros, jornalistas e atletas pedófilos. O ponto nevrálgico do escândalo está na forma como a hierarquia católica reagiu, historicamente, à presença de predadores sexuais em seu seio: acobertando-os, protegendo-os das autoridades civis, transferindo-os de diocese em diocese, de país em país, garantindo que se mantivessem impunes e com novas vítimas insuspeitas sempre à mão.

O rastro de tragédias deixado por essa prática é tema de inúmeras reportagens de cortar o coração, e é por ele que a Igreja e os homens que compõem sua hierarquia devem satisfações — a suas consciências, às leis dos homens e, caso estejam certos em sua terrível metafísica, ao diabo a que dizem se opor.

Para existir, a rede de acobertamento de pedófilos dependia de duas condições, perversas e necessárias: uma era a certeza da impunidade dos bispos que se dispunham a proteger e esconder os padres criminosos; outra, o segredo – a certeza de que nem as vítimas, nem membros do clero iriam levar os casos de abuso à polícia.

Ambas as condições sustentaram-se por anos a fio, graças à cultura interna de segredo da Igreja e a uma certa interpretação do direito canônico. Responsável pela CDF, Joseph Ratzinger foi encarregado pelo então pontífice João Paulo II, em 2001, da investigação dos casos de abuso. É possível argumentar que, na maior parte dos mais de dez anos em que esteve envolvido diretamente na questão – primeiro como investigador, depois como papa – Bento XVI nada fez para alterar essas condições fundamentais.

Até hoje, por exemplo, nenhum dos bispos envolvidos no tráfico secreto de pedófilos foi punido. Pelo contrário: no auge do escândalo, ainda sob o reinado de João Paulo II, o cardeal Bernard Law, ex-arcebispo de Boston e figura-chave no acobertamento dos crimes sexuais naquela diocese, foi transferido para Roma, a uma distância confortável da polícia americana. Law votou no conclave que elegeu Bento XVI.

A questão do segredo, por sua vez, é analisada a fundo no livro O Papa é Culpado? (L&PM, 2011), do jurista britânico Geoffrey Robertson. Ele cita uma série de documentos da Igreja, incluindo uma carta pastoral da CDF, assinada pelo então cardeal Ratzinger e pelo atual secretário de Estado do Vaticano, Tarcisio Bertone, que exigem segredo absoluto no trâmite dos casos de abuso sexual contra menores cometido por padres.

Otimistas veem uma lenta flexibilização da lei do silêncio. Em 2010, o site do Vaticano publicou um texto que sugere – mas, crucialmente, não determina – a cooperação entre a autoridade eclesiástica e a autoridade civil, em casos de abuso sexual. Em 2012, o cardeal William Levada, então encarregado da CDF, fez um pronunciamento onde citou a importância de “comunicar crimes às autoridades competentes”.

Mas o passo crucial, um decreto com força de lei da Igreja, tornando compulsória a comunicação dos crimes cometidos por padres à polícia, não foi e, ao que parece, não será dado. Da mesma forma, a punição exemplar dos bispos responsáveis pelo acobertamento e pela impunidade dos padres pedófilos continua a ser um ideal distante. Bento XVI falhou nesses dois campos.

Reportagem do New York Times publicada na última terça-feira faz um retrato desanimador dessa última questão: “Pelo menos uma dúzia de cardeais manchados pela acusação de terem falhado em remover padres acusados de abusar sexualmente de menores estavam entre os que iam se reunir em Roma para se prepararem para o conclave que escolherá o sucessor de Bento XVI. Não havia sinal nenhum de que a promessa da Igreja de confrontar o escândalo de abusos sexuais levaria a alguma pressão direta sobre aqueles cardeais, para que se ausentassem do conclave”.

A mesma reportagem diz, mais adiante: “Não é que esses cardeais tenham se comportado de modo diferente dos demais (…) só que vêm de pontos do mapa do mundo católico onde antigos segredos vieram a público, porque as vítimas se organizaram, os governos investigaram, advogados processaram e a mídia prestou atenção”.

Em outras palavras, os dois pilares da crise — a cultura de segredo e a impunidade dos hierarquicamente responsáveis — só periclitam quando há forte pressão externa: das vítimas, da mídia, da polícia. E entre os homens que deveriam assumir como obrigação moral a tarefa de desmontá-los, a partir de dentro, estão seus maiores beneficiários.

Carlos Orsi

Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.

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