Feliciano na CDHM vai contra o que tem o potencial de ser um dos maiores avanços civilizatórios dos últimos tempos
Acredito que a tomada da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara pelo PSC foi um golpe nas melhores esperanças de boa parte do povo brasileiro. Acredito, também, que revela uma doença sistêmica do nosso Parlamento, doença que tem, entre outros sintomas, a presença de criminosos condenados em cargos importantes de outras comissões, como a de Constituição e Justiça, fundamentais para o funcionamento do Congresso.
Também acredito que o pastor Marco Feliciano deveria ser removido – ou constrangido a deixar – o comando da comissão. E não, como se diz por aí, porque ele teria cometido “crimes de opinião”. Minha (aham) opinião pessoal é de que não existe tal coisa: manter e expressar certas crenças pode ser um erro, uma imbecilidade ou uma irresponsabilidade, mas jamais um crime. Agir com base numa opinião imbecil talvez seja algo criminoso, mas essa é outra história.
Marco Feliciano – não só ele, mas toda a ala evangélico-teocrática do PSC – deve deixar a CDHM porque sua presença, ali, milita contra o que tem o potencial de ser um dos maiores avanços civilizatórios deste início de século: a transformação do conceito brasileiro de tolerância.
A palavra “tolerância”, em português, tem um significado amplo demais, o que é um problema (para quem quer dar o devido nome às coisas) ou uma vantagem (para quem prefere a disputa retórica ao debate sério). Pode significar tanto condescendência quanto respeito e aceitação.
O inglês, nesse caso, é mais específico: os anglófonos têm sufferance, que significa algo como paciência e condescendência diante do insulto e da dor – o tipo de “tolerância” que você tem quando seu cunhado bêbado começa a urinar no copo de cerveja – e tolerance, cuja principal acepção é a de uma atitude justa, objetiva e aberta diante da diferença. E isso é o que a expressão “tolerância de raça, cor, credo e orientação sexual” deveria querer dizer.
Mas, muitíssimas vezes, não é o que diz. Quando um conservador afirma que o brasileiro é tolerante com (digamos) os gays, as mulheres, os negros, o que ele geralmente quer dizer é que há sufferance: que nós brasileiros heterossexuais, portadores de cromossomo Y e de pele não muito escura condescendemos em ter paciência com esses tipos esquisitos. Evitamos prender, dar porrada ou xingar na rua. Quase sempre.
Claro, mero sufferance ainda é melhor do que linchamento e cinto de castidade, mas quando as mulheres e os negros reivindicam pagamento igual por trabalho igual, ou os gays, o direito ao casamento civil e à adoção de crianças, o que se reivindica, no fundo, é a transformação disso em tolerance, tolerância, uma atitude verdadeiramente justa e respeitosa diante da diferença.
É em torno dessa transformação que o Brasil – e boa parte do planeta – trava uma guerra de culturas.
Visões de mundo baseadas numa suposta “ordem natural das coisas” tendem a pressupor que as diferenças só devem ser toleradas, ou suffered, enquanto os diferentes se mantiverem nos lugares devidamente alocados pelo esquema “natural”, sejam os gays em celibato e castidade, sejam as mulheres cuidando da casa e atuando como “ajudantes” do marido. Já visões mais céticas quanto ao tamanho do papel da natureza na determinação das relações sociais, que pressupõem que o lugar de cada um no mundo é (ou deveria ser) construído pelo próprio indivíduo, tendem a rumar para uma visão mais ampla de tolerance.
O cristianismo, com sua ideia subjacente de um certo “plano de deus” e do pecado original nascido da primeira tentativa de desafiar tal plano, é quase sempre, e mesmo em suas versões mais liberais, uma doutrina de sufferance. E até esse módico de paciência e condescência não é garantido: há passagens do Velho Testamento que determinam a execução imediata de desviantes, principalmente religiosos.
Um sistema ideológico baseado em sufferance é incompatível com o conceito de direitos humanos e de minorias, ao menos numa sociedade que se pretende pluralista: numa sociedade assim, o que se espera é que o Estado não se limite a aturar a existência de grupos minoritários e divergentes – desde que não façam marola – mas que garanta cidadania plena a todos.
Por tudo isso, o domínio do PSC sobre a CDHM é tão esdrúxulo quanto um colégio de cardeais composto por ateus. Ter Marco Feliciano à frente da comissão é como ter Richard Dawkins eleito papa.
É preciso, portanto, criticar, denunciar, escarnecer, contestar, lutar. É preciso expor os interesses políticos que permitiram que o PSC chegasse aonde chegou: da coligação fisiológica com o PT na eleição parlamentar (cujo principal símbolo, na época, foi o político do partido que, no fim, mais inofensivo se mostrou, o palhaço Tiririca) à omissão dos grandes partidos – PT, PMDB, PSDB – na hora de montar a atual CDHM.
Mas tenho de confessar que toda vez que vejo manifestantes inviabilizando a realização de reuniões da CDHM, sinto um calafrio. Imagino a situação oposta: a comissão dominada por defensores dos direitos dos homossexuais ou do direito da mulher a abortar, impedida de se reunir por um panelaço das Senhoras Católicas de Santana. E seguranças da Casa dando chaves de braço nas velhinhas.
Em uma coisa, Marco Feliciano está certo: o mandato que tem é legal. Foi devidamente eleito pelo povo de São Paulo (bem, por parte dele), e encabeça a comissão pela vontade soberana do colegiado. Sua legitimidade pode ser discutida, e suas ações podem e devem ser contestadas – nas ruas, na imprensa, nas redes sociais, no judiciário, se preciso for – mas, no fim, ele tem o direito legal de estar onde está. E inviabilizar o exercício desse direito por meio de tumultos e palavras de ordem não é uma estratégia digna de democratas.
Aqui seria a hora de citar o aforismo de Nietszche que adverte sobre os riscos de lutar contra monstros e de olhar no abismo, mas fico com um exemplo mais concreto: não nos esqueçamos de que foi a ideia de que uma “boa causa” justifica o sacrifício de princípios no curto prazo que levou à aliança política e à doença sistêmica que puseram Marco Feliciano onde está, para começo de conversa. Meios importam: quando menos esperamos, eles se transformam nos fins.
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.