O incômodo som ao redor
O filme de Kléber Mendonça anuncia um cenário que aparentemente fora apaziguado pelas conquistas sociais dos últimos anos.
As últimas semanas têm sido interessantes para o cinema nacional.
Em janeiro, o filme De pernas pro ar – 2 alcançou a marca de 1,5 milhão de espectadores desde sua estreia, o que aconteceu no final de dezembro de 2012. Co-produzido pela Globo Filmes e dirigido por Roberto Santucci, a película ajudou a confirmar a força de um cinema de gênero no País, algo há muito teorizado por especialistas e críticos cinematográficos. Enquanto o filme estrelado por Ingrid Guimarães conquistava corações e mentes, outra obra, sem tanto alarde para o grande público, alcançou estatuto de assunto preferido pela intelligentsia local: O som ao redor, de Kléber Mendonça, é o filme que, entre outras coisas, conseguiu mobilizar os cadernos de cultura, a crítica especializada e, para além dos circuitos alternativos, conseguiu polemizar até mesmo com a Globo Filmes. Em entrevista, Mendonça atirou contra o império, acusando a major de ser nociva para o cinema nacional. Pouco a pouco, o filme ocupou não apenas o espaço que lhe era de direito, como também arranhou a versão oficial de que a Globo Filmes é uma indústria que, com seus vícios privados, traz apenas benefícios públicos. Como em seu filme, Mendonça produz o incômodo onde deveria existir apenas apaziguamento.
Explica-se: o aclamado O som ao redor produz um efeito capaz de abalar as estruturas e as certezas de quem imagina que já viu tudo e entende as possíveis interpretações do Brasil. Em artigo para a Folha de S.Paulo, a pesquisadora Lúcia Nagib observa que o filme retoma o debate da questão da identidade nacional, abordando seus temas centrais, como a desigualdade, a violência reprimida que retorna em tom de vingança, com espaço, ainda, para a presença de um autêntico senhor de engenho, espécie de personificação do homem cordial. A um só tempo, o filme causa estupor e conquista o público, porque o diretor consegue estabelecer um clima de desconforto e temor ao longo de toda a sua extensão.
Como resultado, a obra consegue articular pontas soltas de um momento cultural diferenciado do Brasil. Sim, existe inclusão social; sim, a desigualdade é menor do que já foi, conforme apontam os indicadores sociais; e, sim, a população tem mais acesso aos bens de consumo (com informação de revista semanal e acesso a TV de plasma). Todavia, existe uma fissura que não foi resolvida, e o pacto que outrora parecia selado agora está prestes a quebrar graças à maioria silenciosa que já não aceita mais seu papel de subalterna. No filme, isso é levado à cena pelo instinto de vingança e pela ideia de que o tempo de colocar panos quentes nos acontecimentos do passado pode ter efetivamente chegado ao fim.
Curiosamente, o filme de Kléber Mendonça dialoga com outros dois trabalhos, cada qual à sua maneira, distópicos acerca do Brasil. Em 2000, no ano da comemoração dos 500 anos de Descobrimento, o cineasta Sérgio Bianchi lançou o seu manifesto político e estético: Cronicamente inviável foi O som ao redor daquele ano, exatamente porque o filme conseguia atacar o país de maneira não condescendente. Em outras palavras, naquele momento, boa parte dos intelectuais enxergava que a solução para o país residia na apologia de uma identidade multiétnica e, portanto, que havia aprendido conviver com as diferenças. O filme de Bianchi não apenas desmonta essa tese, como faz uma crítica que, ácida, corrói a tudo e a todos, evidenciando o ressentimento e o preconceito existentes nas diversas classes sociais.
O filme de Bianchi, de alguma forma, foi incorporado como um grito contra o consenso cultural do governo FHC, quando os intelectuais haviam se locupletado com a elite financeira em troca dos benefícios para os institutos culturais e a favor da política assistencialista promovida pelas ONGs, algo que seria exacerbado no governo Lula. O próprio Bianchi voltaria ao tema em 2005 com Quanto vale ou é por quilo?, elaborando um outro filme incômodo, que, dado o seu capital político ensurdecedor, foi devidamente silenciado — tudo isso porque o diretor apontou o dedo contra a perversidade das ONGs, estabelecendo uma relação direta com o período do Brasil Colônia, quando os escravos tinham papel decisivo não apenas como mão-de-obra, mas essencialmente como moeda de troca para a manutenção do regime. As ONGs, de acordo com esse paralelo, seriam meios de forjar uma nova forma de dominação, novamente mantendo o status quo.
Já em 2003 o diretor Roberto Moreira levou às telas o filme Contra todos. A obra apresenta um microcosmo que não é conhecido sequer pela classe mais intelectualizada que frequenta os espaços culturais alternativos, uma vez que o filme tem como cenário a periferia de São Paulo – a localização mais próxima da cidade que os espectadores travam contato é o centro velho de São Paulo, com seus hotéis abaixo de qualquer suspeita e de altíssima rotatividade. No filme de Moreira, a violência, o abuso de drogas, a falta de afeto e o desamor são cobertos pela suposta religiosidade: ali, o principal núcleo familiar, de alguma maneira, passa a ser envolvido pelos cultos evangélicos (aspecto-chave para quem deseja entender a mudança no Brasil nos últimos anos), detalhe que tão somente ajuda a tensionar os laços já desgastados daquele ambiente. O resultado não poderia ser mais nefasto: a presença do mal se perpetua, e os culpados são absolvidos exatamente porque eles se cobrem com as máscaras que faziam parte daquele teatro.
O som ao redor, nesse aspecto, não inaugura nada em termos de crítica astuta e de alto nível ao status quo da sociedade brasileira, posto que, mesmo indiretamente, dialoga com as obras mencionadas. O elemento central, e assustador, é que se trata de uma obra que anuncia um cenário que aparentemente fora apaziguado pelas conquistas sociais dos últimos anos. Isto é, tendo em vista o alcance e o sucesso das políticas sociais de 2002 para cá, era claro que a paz perpétua estava, enfim, estabelecida (afinal, os morros do Rio de Janeiro não foram ocupados pelas UPPs?). Ocorre que a película mostra que a fissura nesse tecido social é muito mais perigosa do que se imaginava. Do ponto de vista político, a fita envia uma mensagem clara de que somente a troca de classe econômica não bastará para aplacar o ressentimento e o desejo de vingança de quem já esteve – e, de certa maneira, ainda está – no andar de baixo.
É nesse sentido que a fala de Kléber Mendonça deve ser percebida, pois, quando o diretor pernambucano assinala que a Globo Filmes faz mal à cultura brasileira, adestrando o público, o que está sublinhado é que a major ajuda a forjar um consenso que efetivamente não existe. Dito de outro modo, a despeito do sucesso, entre outros, de filmes como De pernas pro ar – 2, esse clima de acomodação pacífica só existe na ficção criada pela TV Globo. E é inegável que o público tem adotado de forma preferencial esse modo de perceber a realidade. Todavia, está longe de ser um consenso. O barulho provocado por O som ao redor anuncia isso como um berro nas manchetes sensacionalistas.
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http://www.animalsapiens.blogs.sapo.pt Paulo