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Cinquenta anos não são cinco

por Vinícius Justo (26/03/2014)

O Brasil corre o risco de eternizar o golpe de 64 enquanto utilizá-lo como metáfora

1964

No dia 31 de março de 2014, ou no dia 1º de abril de 2014, o golpe militar que desalojou o presidente João Goulart do Planalto e inaugurou o período de nossa história conhecido como “ditadura militar” ou “regime militar” completará 50 anos. Os 45 anos da promulgação do Ato Institucional nº 5, em dezembro do ano passado, tiveram menos alarde, não obstante ser viável considerar que se tratou de um momento mais crucial, por instaurar de vez o regime de exceção construído ao longo do governo do General Castello Branco e fortalecido por seu sucessor, General Costa e Silva. Talvez o problema esteja na ênfase que os números redondos recebem. No entanto, lanço aqui a provocação-chave do texto: é preciso superar o golpe.

Não sei quantos eventuais leitores restarão após a frase acima. Poucos ou muitos, o que importa é entender a proposição, que pode estar redondamente enganada, mas não é insincera nem tenta neutralizar a ditadura, localizando-a em um passado remoto. Tampouco pretende ser a única visão possível sobre o processo histórico e a forma de lidar com ele. Pode ser resumida em outra sentença, menos provocativa, mas talvez mais dura: o Brasil corre o risco de eternizar o golpe de 1964 enquanto utilizá-lo como figura de linguagem, metáfora; é preciso compreendê-lo como fato histórico, assim como todo o período da ditadura, se quisermos construir um país melhor. E isso não será fácil.

1.

O golpe de 64 foi, acima de tudo, um trauma histórico – mas um trauma anunciado. Representou a interrupção definitiva do “regime de 46”, assim chamado por se basear na Constituição promulgada logo após as primeiras eleições posteriores ao Estado Novo de Vargas. Era a mais democrática carta magna brasileira até então, mas isso não quer dizer muito. Além disso, no ano seguinte ao seu estabelecimento, teve os ideais democráticos solapados pela cassação do Partido Comunista Brasileiro e de seus deputados eleitos. Por menos simpatia que tenha a Luís Carlos Prestes e seus comandados, não posso deixar de considerar o ato uma arbitrariedade antidemocrática, mesmo considerando os laços do Partidão com Moscou (exagerados pela oposição anticomunista, claro).

Ou seja, não havia motivos para esperar um regime democrático sólido naquelas condições – e foi o que aconteceu. Os governos de Dutra, Vargas, Jânio e Jango, cada um a seu modo, enfrentaram turbulências que levaram a um esgarçamento gradual das garantias constitucionais. No caso do primeiro, a repressão violenta a greves foi uma das marcas da administração. O segundo teve sua guarda pessoal envolvida numa tentativa de assassinato de um líder da oposição. O terceiro atuou como um doidivanas até seu último ato, a renúncia mais bizarra já vista no Ocidente. O último, por suas ligações com pessoas de ideologias de esquerda, algumas do próprio Partidão, nunca teve tranquilidade em seus dias de governo. Pode-se dizer que Juscelino lidou bem com as crises ocorridas em seu governo (e mesmo antes dele) e conseguiu entregar o governo sem que a situação da democracia tenha se deteriorado mais. Mas o tecido institucional já estava bastante rasgado.

Meu primeiro argumento será base para todos os outros: não tínhamos uma democracia sólida. O golpe não aconteceu apenas em 1964. Antes houve o desastrado pedido de estado de sítio feito por Jango. Antes houve o parlamentarismo para evitar sua posse plena, já um desrespeito gritante das leis vigentes. Muitos fatores históricos propiciaram o momento de radicalização imediatamente anterior ao golpe, e este foi apenas a culminação de uma possibilidade inscrita, grosso modo, desde o estabelecimento da ordem constitucional de 1946. Não se pode esquecer que o Exército, em grande medida, foi o fiador da transição do Estado Novo para o novo governo, ao retirar Getúlio do cargo preventivamente para evitar o risco de continuísmo. Não eram poucos os militares em 1964 que pensavam estar, finalmente, realizando algo que deveria ter sido feito há muito tempo, desde os anos 30 – e não se pode esquecer também que o voluntarismo do General Lott foi decisivo para a continuidade democrática após a eleição de Juscelino. Diante desse cenário, a tomada do poder pelos militares não era algo inexorável (nada na História é inevitável), mas uma probabilidade altíssima.

2.

Pensando dessa forma, a deposição de João Goulart é muito mais um fim do que um começo. Ou melhor: um ponto médio, no qual se estabelece a verdadeira vocação do Estado brasileiro de então: a discricionariedade do uso da violência, o maciço anticomunismo e oligarquismo da classe política, o desenvolvimentismo econômico triunfalista. Todos são características exacerbadas pelo regime militar, mas presentes em praticamente todos os governos que lhe antecederam. A diferença principal foi a ausência de respaldo popular real aferido por eleições – ou seja, a ilegitimidade tornada norma. Em uma dimensão alternativa, na qual as eleições de 1965 tivessem sido realizadas, esse caráter em certa medida continuísta do golpe militar poderia estar mais claro.

A radicalização ideológica, nesse sentido, foi uma ficção conveniente para os vários lados da disputa. A maior parte da esquerda mais radical tornava a vida de Jango um inferno dobrado e não via nele um grande líder – no máximo, um mal menor que poderia vir a ser controlado e redirecionado pela força das massas. O medo do comunismo foi instrumental para os participantes mais cínicos da conspiração contra Goulart, mas diversos relatos já indicaram o quanto os próprios “comunistas” incentivavam as ficções sobre seu verdadeiro tamanho. Sem falar na desavergonhada defesa da “restauração dos princípios democráticos” feita com base em cassações, prisões e pancadas, quando no fim das contas o regime militar nos deixou como legado uma nação muito menos “capitalista” do que desejava boa parte de seus apoiadores. O pior de dois mundos, na maior parte dos casos, engendrado por uma polarização totalmente desequilibrada.

Insistir no golpe como um momento da maior importância para o país tem seus méritos – a falta de memória sobre nossa história é um problema gravíssimo para nossas ambições como nação. Entretanto, é preciso retirar seu papel de centralidade para o rumo político da atualidade. Tanto para os entusiastas da ditadura quanto para os que mais a execram, essa postura tende a buscar reviver aquela polarização desequilibrada e, em larga medida, efetivamente incapaz de representar a situação do Brasil de então. É claro o interesse do primeiro grupo em recauchutar, sem receio nenhum de anacronismo ou inexatidão, as mesmas palavras de ordem dos anos 60 (contra o comunismo, contra a corrupção, a favor da família e da propriedade): para estes, é o pouco que resta após a vitória da democracia, sem contar o fracasso da ditadura nos mais variados aspectos governamentais, negado mas inegável. O segundo grupo não deveria continuar a tratar o golpe acima de seu significado, pois temos hoje novos desafios – a não ser que essa atitude lhe seja, de algum modo, necessária.

3.

Alguma concentração no passado, como dito acima, não é de todo ruim. Mas há problemas difíceis quando uma pessoa se atém a essa ênfase, especialmente ao não reparar com o devido cuidado no enorme avanço, quase milagroso, obtido pelo Brasil nas últimas décadas. Antes de falar de outra efeméride deste ano que me parece muito mais apropriada para avaliar o legado do período ditatorial, precisarei gastar algumas linhas para abordar a viuvez do golpe.

São dois os tipos de viúvas do golpe. O primeiro, já tratado acima, é o saudosista do regime. Baseando-se na ilusão de um tempo melhor, anseia pelo retorno dos militares, ou ao menos obter algumas semelhanças com aquela época – “ROTA na rua” e outras singelezas. Este pode ser um velhote que viveu os anos de chumbo e gostava da “segurança” e da “decência” alardeadas pela ditadura ou um jovem incapaz de compreender a própria ideia de democracia, direito das minorias, o que seja. Estes não são meu alvo, pouco posso fazer por eles. Se as torturas, os assassinatos, os exílios e os desmandos não os sensibilizam, minhas palavras não serão mais eloquentes. O segundo tipo é mais problemático, pois terá bons argumentos ao seu lado: aqueles assombrados pela tendência a explicar nossas mazelas a partir da ditadura, levando a toda sorte de mistificações.

Não se trata de negar a persistência de inúmeros problemas existentes em forma mais grave durante o regime militar. Mas se tornou, ao longo dos anos, bastante instrumental o apelo à ditadura como uma espécie de imagem, uma figura capaz de conjurar mais argumentos do que os próprios fatos – algo como uma versão brasileira da lei de Godwin. Todas as dimensões históricas perdem em clareza quando esse processo ocorre; basta pensar nas frequentes reclamações sobre “censura”, mesmo quando não há nenhuma censura em curso.

A História é importante, compreendê-la é vital, mas libertar-se das distorções causadas pelo anacronismo é igualmente necessário. Não devemos combater o golpe de 64: esse trauma foi infligido à nação e esta não irá recuperar seus anos perdidos – nem saberemos como teriam sido esses anos. Tal como nas fases do luto, é chegado o momento da aceitação; todos os crimes cometidos, todos os projetos abortados e todas as pessoas que perderam a vida, a integridade ou mesmo a sanidade merecem nossos pêsames, mas também a garantia de que faremos melhor nessa nova oportunidade democrática. Para isso, tratemos a História como História e não como ilustração presciente. Evitemos a tentação de interpretar e entender nossos desafios contemporâneos a partir de uma gramática destinada à lata de lixo. Cinquenta anos não são cinco; podemos nos preparar para virar a página do regime ditatorial, vencido pela mobilização da sociedade. E é disto que deveríamos falar.

4.

No dia 25 de abril de 1984, aos dez anos de aniversário da Revolução dos Cravos de Portugal, foi votada a “emenda Dante de Oliveira”, conhecida como “emenda das Diretas”. A intenção era realizar as próximas eleições presidenciais pelo voto direto em vez do colegiado. A parte mais relevante da sociedade civil de então se mobilizou pela aprovação da emenda, organizou passeatas gigantes e obteve ressonância nacional. Não obstante o desejo popular, a emenda não foi aprovada devido a uma articulação do setor contrário no Congresso. Mais de uma centena de parlamentares faltou à sessão, outros 65 votaram contra; faltaram 22 votos dos 320 necessários para aprovar as eleições diretas.

Foi a primeira grande derrota do período democrático, mas também pode ser a marca de seu início. Ali o povo brasileiro pôde perceber que os problemas do país não seriam resolvidos apenas com a troca de regime, embora esta fosse uma condição necessária para proceder às mudanças: a democracia também tem suas mazelas e dificuldades, mas estas são de outra ordem na comparação com as ditaduras. Observar o país hoje é ver o resultado de uma transformação que teve seus retrocessos e problemas, mas inequivocamente deixou instituições melhores do que o legado da ditadura militar e dos governos que a precederam.

Grandes exemplos desse avanço podem ser encontrados em momentos bastante diversos, como o impeachment razoavelmente tranquilo de Collor, o processo de desenvolvimento e implantação do Plano Real, a alternância de poder em praticamente todas as instâncias governamentais sem rompimentos institucionais graves, a inclusão social promovida por vários governos, em especial a partir do Bolsa Família, além de muitas outras reformas. Se o ritmo das mudanças parece frustrante na maior parte do tempo, é preciso ter em mente que o melhoramento da democracia não é um processo simples. Nenhum país nasceu democrático, passando por diversos desafios até atingir uma situação mais inclusiva.

Uma boa lição que o golpe pode nos oferecer é que o descrédito da democracia e de suas instituições fatalmente leva ao autoritarismo, ainda que de forma gradual. Mas esta lição é o básico para aqueles que almejam participar no esforço de construção de um país melhor. Creio que a lição das Diretas é mais importante, pois diz respeito especialmente às dificuldades de um regime democrático: a organização em torno do fomento à democracia nem sempre será vitoriosa, por mais meritórias que sejam suas demandas, mas no longo prazo a sociedade se beneficiará do esforço daqueles interessados em transformar o rule of law e o respeito aos direitos constitucionais no princípio maior de nosso país. Em outras palavras: são duas derrotas históricas da democracia. Na primeira, a democracia perdeu e fatalmente perderia; na segunda, quem perdeu foram os democratas, vitoriosos no longo prazo. Do golpe, fica a esperança de não precisarmos enfrentar novamente tanto esforço, de todos os lados, para erodir os princípios democráticos; das Diretas, o desejo de aprofundar estes princípios até seu enraizamento completo em nossa sociedade. Não é pouco.

Vinícius Justo

Mestre em Teoria Literária pela USP.