Daniel Aarão Reis mostra como os militares estavam amarrados com a direita civil, e como os guerrilheiros percorreram um caminho diferente da oposição pacífica.
Se você soube onde procurar, o debate sobre os 50 anos do Golpe de 64 foi bem interessante. Houve bons suplementos especiais nos jornais, alguns bons lançamentos literários (incluindo relançamentos), bons ciclos de conferência (recomendo especialmente o do Cebrap), e mesmo debates interessantes na internet (chequem aqui mesmo no Amálgama). Se você não soube procurar, pode ter ficado só nos textos “ditadura, ditadura mesmo, foram só uns quinze minutos ali por 1970”. Mas, nesse caso, a culpa é sua.
Daniel Aarão Reis é reconhecido como um dos principais historiadores do regime de 64, e o livro aqui resenhado, que reúne os resultados de suas pesquisas anteriores na forma de uma narrativa razoavelmente acessível, levanta inúmeras discussões interessantes. Acho difícil que saia da bibliografia central sobre o tema no futuro previsível.
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Aarão Reis descreve o golpe em 3 movimentos: a ofensiva anti-legalidade que impediu a posse de Jango (o golpe de 61, que tem que fazer parte de qualquer narrativa honesta sobre 64), a reação pró-legalidade da esquerda, e, no fim do período, a ofensiva da esquerda, que fracassa.
A discussão é complexa, e talvez o autor pudesse ter discutido as possibilidades de compromisso tanto quanto os exemplos de conflito. Como bem disse Argelina Figueiredo no seminário do Cebrap, houve várias possibilidades de acordo ao longo dos primeiros anos do governo Jango, desperdiçadas por ambos os lados.
Acredito que o enraizamento do conflito no pós-renúncia também poderia ter sido mais enfatizado. Jango não conseguiu se desvencilhar dos elementos mais exaltados de sua coalizão, mas isso fica incompreensível se não levarmos em conta que foram esses elementos que garantiram sua posse. Não acho óbvio que Jango teria sido tão brizolista se o PSD o tivesse garantido depois da renúncia (que, acho que todos concordamos, é onde começa esse tragédia; o prólogo da tragédia é quando acharam que seria uma boa ideia eleger presidente e vice separadamente).
Uma das melhores ideias do livro está na interpretação de Aarão Reis sobre a falta de resistência ao golpe: segundo ele, na cultura nacional-estatista da época, a iniciativa deveria ter vindo do alto (no caso, de Jango); a saída pacífica de Jango desarmou a resistência (que poderia, na verdade, ter acontecido do mesmo jeito). Vale notar que boa parte dos militares também esperaram para ver que reação viria do alto antes de aderir ao golpe; e que, quando Geisel pagou pra ver contra a linha dura de Frota, verificou-se que a linha era mais maleável quando o adversário não estava desarmado e amarrado no pau-de-arara. Esse reflexo do estatismo na ação política parece plausível, e é um achado.
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Aarão Reis é conhecido por sua insistência em argumentar que a ditadura foi “civil-militar” (o nome é péssimo, mas a ideia é boa). Está certíssimo em insistir que o regime teve intenso apoio de setores importantes da sociedade brasileira, e não só dos bodes expiatórios de sempre. Tem toda razão em combater a ideia de que a ditadura foi algo imposto à sociedade brasileira, e não um fenômeno que nasceu dela e nela se entrelaçou. Esse trabalho de rediscussão da memória é uma parte importante do trabalho do historiador, e Aarão Reis o faz muito bem.
Mas talvez se ganhasse algo em ir além da discussão sobre memória e discutir como o foco nas relações civis/militares pode ser útil analiticamente. Afinal, grandes vínculos existiram, foram importantíssimos, mas jamais pacíficos.
Por exemplo, o trabalho de Lúcia Grindberg sobre a história da Arena, produzido com um referencial teórico muito próximo de Aarão Reis, mostra que a relação dos militares com a parte da “classe política” que os apoiava era menos tranquila do que se supõe. Os deputados da Arena sabiam que seu poder vinha do voto, e lutavam, ao mesmo tempo, pela manipulação das regras que os favorecessem e, também, para que o espaço da contestação eleitoral não fosse totalmente esvaziado (o que lhes tiraria qualquer utilidade, e, portanto, qualquer poder de barganha diante do regime).
Vários dos líderes golpistas civis romperam com o regime, nem todos com o oportunismo de Lacerda. Da mesma forma, o setor empresarial, que apoiou a ditadura apaixonadamente, eventualmente se assustou com o estatismo econômico de Geisel (e de vários outros militares). Aarão Reis mostra como a Rede Globo, afinada desde sempre com o regime no campo político, era seriamente contestada pelos conservadores pelo papel das novelas na discussão comportamental. Essas tensões entre civis e militares dentro do campo da ditadura merece ser mais explorado na explicação de seu desenvolvimento (e de seu fim), mais ou menos como Gaspari faz com as tensões entre militares, ou a análise de classes tradicional faz com as tensões dentro da sociedade civil.
A propósito, é um grande mérito de Aarão Reis escapar de um risco grande embutido no seu raciocínio: o de associar liberalismo político aos civis e autoritarismo aos militares. Lacerda foi bem mais golpista que Castelo, e o linha dura Frota, que tinha em Geisel um adversário, tinha sua própria bancada no Congresso.
Permanece, enfim, o fato de que Aarão Reis produziu uma mudança de foco bem-vinda nos estudos da ditadura, embora precise arrumar um nome melhor para sua descoberta. Proponho “Ditadura de 64”, mas, enfim, quem sou eu.
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Aarão Reis faz bem em notar que as organizações guerrilheiras não buscavam a democracia, buscavam o socialismo; isso é importante, inclusive, para evitar a idealização dos guerrilheiros, e sua reconstrução na memória como resistentes da democracia. Mas talvez devêssemos diferenciar 3 questões: (a) o que buscavam as organizações guerrilheiras (respondido, o socialismo); (b) a guerrilha teria acontecido mesmo sem a ditadura?; e (c) por que tanta gente, e, em especial, tantos jovens, entraram em organizações guerrilheiras.
Quanto a (b), é impossível saber com certeza, mas é provável que a resposta dependa de qual organização guerrilheira se está falando (não havia “a guerrilha”, havia a ALN, a VPR, etc.). Houve um esforço guerrilheiro extremamente fraco antes de 64, mas acho difícil imaginar que pudesse ter dado em alguma coisa. Não vejo como os dissidentes do PCB teriam aderido à luta armada se Jango não tivesse caído. Se o PCB não tivesse parecido vacilante na resposta ao golpe, por outro lado, menos gente teria se transferido a outras organizações. Não é de todo implausível que os brizolistas, ou os sargentos cassados, tentassem um golpe, mas é difícil imaginar que tentariam a luta armada clandestina contra Jango. Os candidatos a guerrilheiros mais plausíveis nesse cenário alternativo seriam a turma ligada a Pequim (em especial o PCdoB) e alguma forma de guerrilha castrista. Não vejo qualquer motivo para esperar que nenhuma das duas fosse muito longe, a não ser que as Ligas Camponesas se radicalizassem, o que foi tentado e fracassou.
Quanto a (c), não me parece absolutamente óbvio que os jovens que aderiram à guerrilha o tivessem feito se houvesse alternativas de política institucional. Em 31 de março, Alfredo Sirkis estava na porta do palácio defendendo Lacerda de uma eventual reação janguista; alguns anos depois, sequestrava o embaixador suíço. A via institucional para a futura elite política da esquerda foi desmoralizada antes, pelo outro lado. É verdade que os jovens guerrilheiros não buscavam a democracia, mas não foram eles que tiraram essa alternativa do leque de escolhas. Aarão Reis certamente concorda com isso, mas é importante dizê-lo.
Ou seja, tanto quanto é possível especular, é razoável dizer que, se não houvesse golpe, talvez tivesse havido guerrilhas, mas a maior parte dos brasileiros que efetivamente se tornaram guerrilheiros após 64 não o teriam feito. A propósito, democracias já derrotaram guerrilhas; raramente foi bonito, mas também foi raro que tenham torturado e matado como as ditaduras.
Por fim, é interessante notar que o trabalho de Aarão Reis segue direções opostas na discussão da esquerda e da direita: ao mesmo tempo em que mostra como os militares estavam amarrados com a direita civil, mostra o quanto os guerrilheiros percorriam um caminho diferente da oposição pacífica. Essa diferença certamente se explica pelos vieses opostos na reconstrução da memória dos dois lados.
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Um dos debates mais interessantes do livro é sobre as tentativas de implantação de um Estado de Direito Autoritário, primeiro com Castelo, depois com o pós-Geisel. Ao situar a ditadura no período 64-79, Aarão acaba mostrando como o Estado de Direito convive mal com o autoritarismo: a primeira tentativa de Estado de Direito Autoritário colapsa imediatamente em ditadura, na medida em que Castelo cede cada vez mais, as esperanças dos que viam em 64 um “golpe democrático” se esvanecem rapidamente, e fica claro que, cada vez que as regras permitirem uma vitória da oposição, as regras vão mudar.
A segunda vida do Estado de Direito Autoritário rapidamente colapsa em Democracia, pois, assim que as regras deixam de mudar conforme o arbítrio do governo, a transição democrática adquire sua dinâmica própria (que tem também seus percalços, mas já em outro patamar).
Enfim, podemos ter ditadores, podemos ter juízes, mas não é fácil ter os dois ao mesmo tempo.
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Achei plausível a argumentação em favor de situar o fim da ditadura em 79, em especial porque Aarão Reis não ignora nem os riscos de retrocesso do período Figueiredo (Riocentro), nem as acomodações do governo Sarney. A propósito, as poucas páginas sobre o duelo Covas vs. Centrão na Constituinte são um esforço de síntese muito bom. Seria demais pedir que Aarão Reis discutisse as alternativas econômicas diante da crise do nacional-estatismo, por isso não o farei.
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Por fim, e já reconhecendo o direito do Aarão Reis me responder “escreva seu próprio livro, mané”, senti falta de duas coisas.
Em primeiro lugar, um pouco mais de discussão sobre a relação entre política e economia. Aarão Reis está certíssimo em reconhecer em Geisel a apoteose do nacional-estatismo que seduzia direita e esquerda durante a maior parte do século XX brasileiro (e cujas realizações, enquanto funcionou, foram notáveis). É óbvio que a crise desse modelo no final dos anos setenta e no começo dos oitenta acelerou a crise do regime. Mas ditaduras já sobreviveram a crises piores (vejam a Coreia do Norte após o fim da URSS), e sinto falta de uma análise sobre como essa crise se traduziu na ação das diferentes forças políticas, em especial dentro do campo conservador.
E, em segundo lugar, gostaria de ver uma análise de como as identidades políticas foram formadas a partir dos escombros da ditadura. Aproveito para dar meu pitaco sobre a questão levantada aqui no Amálgama pelo sempre alerta Vinícius Melo Justo: por que, afinal, insistimos em pensar em termos de 64?
Por vários motivos (nem todos bons), mas acredito que um deles é que os dois principais partidos brasileiros têm sua origem remota no racha esquerdista entre os que aderiram ao MDB e os que foram para a luta armada ou para o agitação sindical; e que a direita política brasileira, como a esquerda russa, não conseguem se livrar da herança de terem sido partidos oficiais de regimes autoritários.
Essa herança é bem maior do que o estigma de “filhote da ditadura”: é também a incapacidade de fazer trabalho de base, de participar do debate livre com capacidade de convencimento, e, enfim, de selecionar como membros quem esteja interessado nessas tarefas, e não em participar do fisiologismo que ter sido partido oficial possibilitava. Não por acaso, políticos de direita formados nesse ambiente tiveram poucas dificuldades em se aliar a um governo de esquerda, uma vez estabelecido o preço certo.
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PS: Se quiserem saber o que acho sobre a crise do nacional-estatismo e o que deve ser feito a esse respeito, escrevi um artigo sobre isso na revista piauí.
PSTU: A Época publicou uma entrevista legal com o Aarão Reis.
PSTUdoB: Já que neste dias estamos discutindo se moças (ou democracias) bem comportadas são menos assediadas, achei que cabia lembrar do título dessa resenha: “A Arena não é a filha da UDN que caiu na zona“.
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