PESQUISA

AUTORES

  • Bete Barros
  • Carlos Eduardo Duarte
  • Daniel Torres
  • Éder Souza
  • Emmanuel Santiago
  • Fabrício de Moraes
  • Gustavo Melo Czekster
  • Lucas Petry Bender
  • Lucas Baqueiro
  • Lucas Franceschi
  • Lúcio Carvalho
  • Marcelo Sarsur
  • Paulo Roberto Silva
  • Rodrigo de Lemos
  • Sérgio Tavares
  • Sérgio Tavares
  • Wagner Schadeck

A extrema-direita está influenciando as ações russas na Crimeia

por Amálgama (18/03/2014)

As autoridades russas acreditam que a Ucrânia não é mais um estado

Timothy Snyder, na New Republic / 17 de março

– Nacionalistas russos em Donetsk –

Autoridades russas alegam que sua invasão da Ucrânia é justificada pela ameaça fascista representada pelas novas autoridades em Kiev. O governo ucraniano está sendo liderado por um tecnocrata conservador chamado Arseniy Yatseniuk. A revolução ucraniana envolveu gente de todas as camadas da sociedade e de todas as orientações políticas. A extrema-direita estava sobre-representada entre o povo que lutou contra a tropa de choque nas últimas semanas do regime, quando o governo ucraniano apelou para o sequestro, a tortura e tiros para matar. Membros do partido direitista Svoboda têm um punhado de pastas no novo governo, embora muito mais sejam comandadas por partidos políticos convencionais e pessoas com pontos de vista diferentes. Nesta primavera, eleições devem mostrar a popularidade limitada da extrema-direita dentro da sociedade ucraniana. Em pesquisas de opinião sobre as eleições presidenciais programadas para 25 de maio, os líderes da extrema-direita ucraniana recebem o apoio de 2 a 3 por cento dos cidadãos ucranianos. Nenhum dos candidatos líderes nas pesquisas nem remotamente lembra um nacionalista. Se as eleições ocorrerem, o vencedor provavelmente será um magnata do chocolate ou um ex-campeão de boxe peso-pesado, nenhum dos quais sequer remotamente nacionalista.

Claro, toda a ideia da intervenção russa é fazer com que essas eleições nunca ocorram. É muito estranho que um regime autoritário abertamente de direita, como o de Vladimir Putin, trate a presença de políticos direitistas em uma democracia vizinha como razão para invasão militar. A própria política de Putin está à direita dos ucranianos que ele critica. A tentativa russa de controlar a Ucrânia é baseada na ideologia eurasiana, que rejeita explicitamente a democracia liberal. O fundador do movimento eurasiano é um legítimo fascista, Alexander Dugin, que clama por uma revolução de valores de Portugal à Sibéria. O homem responsável pela política em relação à Ucrânia, Sergei Glayzev, chegou a dirigir um partido nacionalista de extrema-direita que foi banido por causa de sua campanha eleitoral fascista. Putin colocou-se na frente de uma campanha mundial contra a homossexualidade. Isso é politicamente útil, já que a oposição na Rússia agora é colocada na conta de um lobby gay internacional incapaz de entender a inerente espiritualidade da tradicional civilização russa.

A invasão e ocupação russa da Crimeia foram levadas a cabo em um espírito que lembrou a muitos, inclusive observadores russos, aquelas do final dos anos 1930. O argumento usado foi que o estado russo tinha o direito de proteger compatriotas russos. Argumentando-se dessa forma, coloca-se a etnicidade, conforme imaginada e proposta por Moscou, como um critério mais importante do que fronteiras internacionais e o direito internacional. De fato, as autoridades russas têm sido bastante claras de que essa é sua doutrina: a Ucrânia não é mais um estado, porque assim eles dizem, e tudo que importa no mundo das relações internacionais é etnicidade e história conforme vistas desde Moscou. O único “direito” que os indivíduos possuem, nessa lógica, é o de serem definidos como membros de um Volk pelo Kremlin, e então serem ou não invadidos, conforme for o caso. Que os russos na Ucrânia na verdade possuam mais liberdades que os russos na Rússia é irrelevante, já que, nesse esquema, as pessoas não são indivíduos, mas simples argumentos numéricos para invasão territorial. Esse tipo de negação de estados e de leis, em favor de etnicidade e invasão, não é uma evidência de que a Rússia se opõe ao fascismo.

A Crimeia sob domínio ucraniano tem sido uma província autônoma habitada, além de russos e ucranianos, pela minoria tártara. Os tártaros da Crimeia foram deportados em sua totalidade pela NKVD soviética – cada homem, mulher e criança – em maio de 1944. Aqueles que vivem na Crimeia hoje são os deportados que sobreviveram e seus filhos e netos, gente que fez o caminho de volta, saindo de um exílio assassino no Uzbequistão soviético e reestabelecendo-se no que se tornaria uma Ucrânia independente. Seu retorno para casa foi um dos preciosos casos de integração multicultural na Europa pós-soviética. Como resultado, os tártaros da Crimeia foram bastante pró-ucranianos, no sentido de preferir a lei ucraniana a qualquer outra alternativa. A invasão russa de seu país imediatamente introduziu uma nova sensação de ameaça, lembrando a muitos tártaros a experiência de limpeza étnica. De repente, suas casas foram marcadas. O corpo mutilado de um homem tártaro foi descoberto dias atrás. Mulheres e crianças tártaras já estavam sendo enviadas para a Ucrânia continental antes do “referendo”. O que se seguirá agora provavelmente será pior.

O que ocorreu domingo na Crimeia foi uma farsa eleitoral. Referendos não podem ser realizados sob ocupação militar. Referendos não podem ter duas opções que possuem essencialmente o mesmo significado. Referendos não podem ocorrer quando toda a propaganda é gerada pelo estado. Referendos não podem ser realizados quando estações de tevê locais são fechadas e jornalistas surrados e intimidados. Mas, mesmo sob essas condições, a alegação de que 75 por cento da população participou e mais de 96% votou pela anexação à Rússia é insustentável. Sabemos, por anos de pesquisas, que uma maioria dos habitantes da Crimeia não apoia uma incorporação pela Rússia. Uma ampla pesquisa mostrou 33 por cento de apoio a essa ideia em 2011, índice que caiu para 23% em 2013. Os tártaros da Crimeia boicotaram o “referendo”, o mesmo que fizeram muitos ucranianos, já que o processo foi declarado ilegal e inconstitucional pelo governo ucraniano. A frequência eleitoral registrada na cidade de Sebastopol foi de 123 por cento.

Apesar de tudo, apareceram algumas pessoas para elogiar o “referendo”. Moscou enviou um convite para partidos da extrema-direita europeia, e achou políticos dispostos a servirem como “observadores”. Enrique Ravello pertenceu à neonazista CEDADE e hoje pertence à extremista de direita Plataforma per Catalunya. Luc Michel pertencia à neonazista Fédération d’action nationaliste et européenne, e agora apoia uma mescla de fascismo e bolchevismo que também é popular entre os eurasianos russos. Béla Kovács é um membro do partido de extrema-direita húngaro Jobbik e tesoureiro da Aliança de Movimentos Nacionais Europeus. Tal Aliança classifica a intervenção russa na Ucrânia como uma resposta à conspiração global neoconservadora, retratada como a última tentativa de dominação mundial judaica.

Enquanto invadia e ocupava a Crimeia, a Rússia, de acordo com os relatos de várias testemunhas, enviou alguns de seus próprios cidadãos para criar distúrbios em cidades do leste ucraniano como Carcóvia e Donetsk. Nos dois locais, no que pareceu como cenário planejado, alguém retirou a bandeira ucraniana de um edifício público e a substituiu por uma bandeira russa. Em Carcóvia, a pessoa que fez isso é um cidadão russo que se permitiu ser fotografado em uniformes nazistas. Talvez seja apenas uma escolha pessoal de moda. Em Donetsk, o trocador de bandeiras foi Pavel Gubarov, um nacionalista russo (e cidadão ucraniano) que se autodeclarou comandante do povo. Após ser preso por autoridades ucranianas, ele foi apresentado como um herói e mártir na televisão russa. Em Donetsk, Gubarov era conhecido como um neonazista e membro da organização fascista Unidade Nacional Russa.

Se ainda existe alguém na esquerda que leva Putin a sério quando ele classifica a ocupação russa da Ucrânia como antifascista, agora pode ser um bom momento para reconsiderar.

* Timothy Snyder é professor de História em Yale e autor de
Terras de sangue: A Europa entre Hitler e Stalin
. [tradução: Daniel Lopes]

Amálgama

Revista digital de atualidade e cultura.

Avatar
Colabore com um Pix para:
[email protected]