Paulo Nunes tece com rigor uma espécie de biografia poetizada do homem e seus abismos.
Dançando no escuro
Tenho duas imagens que para mim expressam ou talvez marquem a condição do homem na modernidade: a primeira vem do livro Alice no país das maravilhas, de Lewis Carrol, quando Alice cai no buraco atrás do coelho apressado e durante a queda vai refletindo sobre a sua própria vida, lembranças, memórias de sua família, e, por fim, dorme ou pelo tédio ou pela inércia de nada poder fazer a não ser cair, cair sempre, como se não houvesse chão.
A segunda imagem é a de Nietzsche, ao recorrer à metáfora do abismo: a de um homem que caiu e que, durante a queda, sabendo que não há o que fazer, não se desespera, mas dança enquanto cai. O que as duas imagens têm em comum, além da queda, é o comportamento de ambos enquanto caem: algo precisa ser feito, porque a queda é inevitável.
O livro de estreia de Paulo Nunes, O corpo no escuro, evidencia, de certo modo, essa condição. A obra está divido em duas partes: a primeira, intitulada “Obvni”, é um conjunto de poemas de cunho existencial, que versam sobre o corpo e suas relações com a vida contemporânea. Ainda me furtando de Nietzsche, creio que a galeria de imagens do livro de Paulo tece a trajetória de um corpo no escuro, mas um corpo que cai, ou seja, não é uma obra sobre o medo ou a hesitação diante do precipício, não se trata do homem que evita o abismo, mas daquele que reflete a própria queda.
No poema “Confissão e prólogo”, temos a complexa forma de pensar o abismo, em que o eu lírico propõe uma volta à inocência: “Na minha mera e já quase velha opinião/ os poetas sábios, demasiadamente sábios/ desaprenderam a inocência e o espanto,/ e por isso, de fato, sabem tão pouco”. Os versos não deixam de ser uma crítica a essa naturalização da queda, naturalização da nossa condição humana, em que o excesso de “sabedoria” não permite mais a experiência do espanto.
O poema que abre o livro, “Canto primeiro”, nos mergulha nesse “poço sem luz”, ainda não um poço para a queda, mas o poço como útero, um poço que rege o nascimento dos homens “emergido do sangue” – “um mostro se arrasta/ até que se ergue/ em homem e continua”. Ou seja, o poeta parido para o mundo e posteriormente para o precipício inexorável.
Pensando a caverna
A proposta de Paulo me parece bastante corajosa ao tecer com rigor uma espécie de biografia poetizada do homem e seus abismos. Em meio a esta condição os poemas são atravessados pelos gestos banais de um mundo que se ergue e se constrói a partir de situações cotidianas, como em “Arqueologia”: “nos gestos banais/ que riscam fósforos/ tomam água, sentem/ pôr atenção e pá”; e ainda “as palavras se abrem/ o mundo se revela/ e dentro, intacto/ o homem que o escava”.
Talvez essa seja a grande vitória e o arrebatamento do livro: tecer a experiência humana diante do prosaico, do cotidiano em quem é preciso “vigiar a escuridão”, vigiar o nada e esta eterna ausência do chão. O que impressiona é que o gesto mais trivial é elevado a uma grande potência estética, como o movimento de subir uma escada “no próximo degrau/ nem deus nem a certeza/ porém, antes do último.”
O corpo no escuro, além de ser nossa grande metáfora enquanto seres inseridos numa atmosfera contemporânea, revela também um homem filosófico, um homem que pensa e pergunta enquanto cai: “O que é o coração, o que é o relógio, o que é lógico?”. E talvez o regresso ao espanto e a essa capacidade de se abismar com a as coisas, proposto pelo poeta, seja este mesmo: questionar e perceber que existir é sempre absurdo, que a lógica é o absurdo e cada um carrega absurdos dentro de si.
O livro ganha densidade na medida em que pensar a escuridão (e não sair dela como propunha Platão) deixa de ser uma condição e passa a ser uma escolha, como no poema que dá título ao livro: “sem olhos, sem espelho/ é corpo e assim resiste/ porque se quiser, pode/ estender um braço/ e acender luz”. Mas a luz não é acesa e o chão não chega.
As águas e o tempo
O segundo conjunto de textos, intitulado “Tempo das águas”, abre com o poema “Prece”. Aqui o eu lírico parece se despir da metafísica ao se referir ao oxigênio como um Deus. Um Deus invisível, mas não metafísico. O poeta, portanto, opta pela matéria, por uma versão mais mundana sobre Deus, um gás, concreto, sensível a pele, aos pulmões e que sustenta a vida: “Vinde, pois, pai oxigênio, cremos em vós,/ respeitamos-vos mais que ao fogo que alimentais/ e que a vida às árvores a que vergando, dais vida”.
A água metaforiza o fluxo da vida, o devir e o fim das coisas. “Com as mãos ou com os olhos, tudo/ que se toca também pulsa e mente/ até que o brilho se apague e chore/ no escuro, até que se cale e durma”. A água ainda aparece no livro como a matéria que nos faz pensar na fluidez do tempo e nas experiências que o mergulho do corpo em movimento nos apresenta. Como não pensar em Heráclito?
Em “Psicanálise da chuva”, temos a chuva como ela é: entranhada entre toda a gente. Uma chuva que “cai simplesmente./ sem muito significado/ nós é que, quando queremos./ lhe damos nome e apelido”. A atitude do eu lírico parece novamente ser de retirar o peso da carga poética que palavras como “chuva” carregam. Talvez para fugir de fazeres comuns da criação, para daí colocar a poeticidade, não só no objeto, mas sim em quem a vê. Uma atitude de quem observa porque “a chuva está querendo, com atenção./ se aqui dentro a nossa pele está seca/ ouvindo árias…/ lá fora, fria molhada,/ ela vai enlouquecendo”.
Mas é na segunda parte deste mesmo poema que enxergamos uma imagem lúcida quanto a essa espécie de chuva anti-poética: “A goteira não é lágrima/ Nem voz, aviso divino/ para o homem que se esconde/ sob um telhado sem teto/ (…) vem a água e som simplesmente,/ sem apelido ou carinho:/ cai e cumpre, rígida, a lei/ próximo ao café que esfria.”
Os velhos temas de um homem no escuro
Nesta segunda parte do livro, três temas passam a ser recorrentes: a morte, o silêncio e a passagem do tempo. No poema “O circulo habitado”, a velhice aparece como uma espécie de ampulheta natural do tempo em que “ninguém chega atrasado”; o texto termina com uma visão de circularidade da vida: “E a morte mais rejuvenesce,/ pois ao morrerem os velhos/ voltam a principiantes”. O grande número de poemas que se referem à noite e à madrugada sugere que o exercício de pensar e as divagações sobre a existência se passam numa atmosfera em que o tédio e o silêncio da madruga são combustíveis para refletir sobre a escuridão do abismo. “O velho tema” da morte torna-se necessário quando as questões sobre a finitude passam a fazer parte de um pensamento reflexivo da existência.
A vertigem da morte dos outros e as suas consequências está expressa no poema “Depois”, onde o eu lírico expõe o corpo que também é constituído pelos corpos que jazem: “Os mortos levamos no peito/ embora os pés pisem mais leves/ sobre a terra e os diamantes”. No jogo com o tempo, o poeta toma a vida como um breve intervalo entre o “passado negado” e o “futuro esquecido”, ou mesmo confere aos poetas uma quase eternidade, já que é através da voz poética que as futuras gerações saberão e questionarão o passado, como no poema “Estrela enterrada”:
No futuro não acreditarão
no que no passado ainda não criam
Dirão: eram poetas e inventaram
armas, barcos, canções – depois os deuses.
e seguirão, propondo guerra e paz
ao mesmo tempo. E por sabê-los frágeis,
braços firmes ao leme; sobre as ondas
cabelos ao vento e, belos , olhos.
Mas creiam, não são nossos movimentos.
os deuses dançam com os nossos corpos.
O livro de Paulo é muito mais que a uma queda biografada ou um testemunho poético sobre o devir metaforizado pelas águas. É também um livro sobre a lucidez e sobre os afetos. Sobre a retomada da habilidade de experimentar o assombro e redescobrir o que há de poético nas coisas que circundam o nosso cotidiano.
Jeferson Tenório
Carioca radicado em Porto Alegre, é mestre em Letras pela UFRGS. Autor do romance O beijo na parede.
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