O antiamericanismo é uma forma simples de dividir o mundo entre “nós” e “eles”
Após o 11 de setembro, quando os Estados Unidos lançaram uma expedição punitiva ao Afeganistão, uma organização trotskista internacional do Ocidente encaminhou um e-mail à liderança de um partido de esquerda paquistanês recomendando fortemente que eles se aliassem ao Talibã, para formar uma Frente Única Anti-imperialista contra os Estados Unidos. A resposta foi que qualquer aliança com o fundamentalismo seria impossível, uma vez que a maioria dos militantes deste partido era de mulheres.
O diálogo acima mostra o abismo que há entre modelos mentais teóricos e a realidade do movimento de massas. E o periogo que se corre ao ignorá-la.
Nos últimos dias, o mundo foi tomado por movimentos de massas na Ucrânia, Venezuela e Tailândia. As esquerdas brasileiras ignoram o último caso, condenaram o segundo e demoraram a se posicionar sobre o primeiro. Neste, após um longo silêncio, surgiu uma condenação, baseada na crítica à suposta intervenção norte-americana na Ucrânia.
Tanto a situação venezuelana quanto a ucraniana são complexas demais para se resumirem a uma mera intervenção norte-americana. Olhemos o caso ucraniano. Dizer que tudo se resume a isto significa simplesmente ignorar a longa histórica de resistência nacionalista ucraniana contra o Império Russo e o regime soviético. Significa também ignorar a longa História de pressões da Europa do Leste, submetida entre os imperialismos russo e alemão há mais de mil anos. Por fim, significa ignorar que metade da Ucrânia não é Ucrânia, mas a parte da Polônia invadida pela União Soviética após o acordo Ribbentrop-Molotov, e que nunca foi devolvida aos poloneses.
Mesmo na Venezuela, acreditar que a mobilização de massa naquele país é fruto do golpismo insuflado pelos Estados Unidos é desconhecer as condições objetivas – praticamente um pecado para o marxista – que geram a indignação da parcela da população e as move às ruas contra o governo.
A versão mais sofisticada deste antiamericanismo acrítico é uma análise do cientista político Moniz Bandeira que circula na internet. Bandeira afirma que os Estados Unidos formam agentes provocadores que se infiltram nas manifestações de massa e as direcionaram contra regimes que se opõem à sua hegemonia. Esta tática estaria por trás da Primavera Árabe, das oposições síria, ucraniana e venezuelana, e mesmo dos black blocs brasileiros (!).
Só a menção aos black blocs deveria servir de comprovação quanto à fragilidade desta teoria. Mas isso não tem impedido formadores de opinião no campo da esquerda de acusarem as manifestações ucranianas e venezuelanas de fascistas. No caso da Ucrânia, sequer há o mesmo grau de crítica direcionado às pretensões ostensivamente imperialistas do governo Putin. Uma charge do cartunista Latuff, publicada em pleno Carnaval, coloca o urso russo como defensor da Ucrânia contra os Estados Unidos e a União Europeia.
O Imperialismo Russo, que Latuff chama de amigo, é claro e ostensivo. O “Imperialismo Americano”, reconhecido historicamente e condenado por todos, tem sido um mito útil para proteger governantes autoritários e corruptos em todo o mundo. Ao apoiar um e criticar o outro, a esquerda corre o risco de se opor ao movimento de massas. E, neste caso, já lembrava Trotski, em Aonde Vai a França:
Essa gente não vê outra coisa que as sombras parlamentares. Ignora a evolução real das massas e se volta para o partido radical, que sobrevive, embora este já lhe tenha dado as costas faz tempo. Pensa que em uma época de grande crise social, uma aliança de classes mobilizadas pode ser substituída por um bloco com uma corja parlamentar comprometida e condenada ao desaparecimento. Uma verdadeira aliança do proletariado e das classes médias não é uma questão de estatística parlamentar, mas de dinâmica revolucionária. É preciso criar essa aliança, forjá-la na luta.
Ao invés de se pendurar nos governos que usam a retórica do anti-imperialismo, as esquerdas poderiam disputar a direção do movimento de massas para intensificar a mudança social nestes países. Se estudassem História, saberiam que é assim que se fazem as verdadeiras revoluções. E que, ao escolher o lado de um governo contra o povo, sempre corre-se o risco de se vender a alma.
Paulo Roberto Silva
Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.
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