"Excessos foram cometidos dos dois lados", diz a platitude corrente
Nas últimas semanas, entrevistei uma série de professores da Unicamp sobre a ditadura de 64-85 e seu legado. Foram horas de conversa com historiadores, cientistas sociais, críticos de arte e de literatura. O resultado aparece na edição de 1º de abril (pois é) do Jornal da Unicamp, e, se me permitem dizer, representa uma das coisas mais relevantes que já fiz em quase 25 anos de jornalismo.
As avaliações que coletei foram bem nuançadas, com alguns méritos reconhecidos (expansão do ensino público, modernização da economia), alguns bichos-papões redimensionados (a censura pegava mais no pé da música brega que da música de protesto, o regime foi amicíssimo do cinema nacional). Tudo isso, coisa que dá para discutir ad eternum. Mas o que sempre ficou claro, em todas as conversas, em todos os balanços, foi um dado só, constante: essa porra foi uma ditadura.
Não há méritos, não há conquistas, que relativizem isso. E esta talvez seja a faceta mais difícil de capturar e transmitir: o que é uma ditadura. Para nós, que vivemos numa democracia, e onde o discurso dito sofisticado se apropria da palavra como metáfora, quase até castrá-la (“ditadura do mercado”, “ditadura da beleza”, “ditadura do agronegócio”, “ditadura gay”, etc., etc.), a consciência do estar-em-ditadura não existe.
Como quem nunca viu uma vítima de pólio pode acabar acreditando que vacina é frescura, quem só tem a experiência da liberdade pode acabar achando que esse negócio é supervalorizado. Não é. “Melhor ter pão que liberdade”. Mas sem liberdade, como você vai saber se o seu vizinho tem mesmo pão? Quem o seu vizinho vai avisar quando o pão dele acabar? Quem você vai avisar?
Ditadura — qualquer ditadura, seja de esquerda, de direita, alienígena, genocida, complacente, “ditabranda”, etc. — pressupõe o exercício do poder sem freios, sem peias, sem necessidade de prestação de contas. Numa ditadura, não só Amarildo teria desaparecido, como as pessoas teriam medo de falar nele: medo de se exaltar perto de um vizinho dedo-duro. Medo de desaparecer, também, na calada da noite.
Existe algo, uma experiência da opressão, o medo que paira no ar, a sensação de que toda autoridade é arbitrária, de que direitos fundamentais na verdade são privilégios que podem ser revogados a qualquer momento, dependendo do humor do guarda da esquina: de que não há recurso, ouvido ou apelação — existe algo que não aparece nos dados do PIB, nas estatísticas de saúde pública, nos números da educação. Mesmo se a ditadura tivesse sido o sucesso tecnocrático que seus ideólogos esperavam (e não foi: é sempre bom lembrar que entregou à sociedade civil um país na lona, destruído e desmoralizado), não teria valido a pena. Porque era uma ditadura.
E há a questão das Comissões da Verdade. Que os opressores de ontem dizem ser “unilaterais”. Curioso. Todo mundo sabe quem sequestrou o embaixador X ou assaltou o banco Y. Todo mundo sabe, também, que muitas dessas pessoas foram punidas — nos porões, com tortura, com exílio, com a morte. Agora, quem matou Herzog? Quem assassinou Rubens Paiva? Ninguém sabe. Quem foi punido? Há uma assimetria, uma “unilateralidade” nessa situação, sim. Só que não é a que se propaga por aí.
Depois da mentira de que liberdade e democracia são luxos negociáveis, a maior de todas é a de que havia alguma simetria na luta entre os agentes da repressão e os guerrilheiros de esquerda. “Excessos foram cometidos dos dois lados”, diz a platitude corrente.
Mesmo que aceitando, por um só instante e para fins de argumento, que todas as vítimas da ditadura eram assaltantes, sequestradores e terroristas (e não também intelectuais, políticos, artistas, gente comum que só estava no lugar errado e na hora errada), existe uma diferença brutal entre criminosos cometendo crimes, de um lado, e agentes públicos valendo-se do aparelho do Estado para impor o terror, torturar e punir extrajudicialmente, do outro. Bandidos desrespeitam direitos humanos, e é por isso que são bandidos. Um Estado que se iguala a eles torna-se algo muito pior.
Voltando às entrevistas para o Jornal da Unicamp, outro ponto que a maioria dos professores que ouvi fez questão de deixar claro foi que se tratou não de uma “ditadura militar”, mas de uma ditadura civil-militar. Como um deles me disse, os militares não “roubaram” o país da sociedade civil, mas sim, uniram-se a parte dessa sociedade: juntos, esses dois grupos apossaram-se do Brasil, com os resultados trágicos conhecidos. Esses civis — entre eles, alguns que são peças-chave da base do governo do PT e, a acreditar nas foto-ops que circulam por aí, amigos do peito do ex-presidente Lula — não foram “apoiadores” da ditadura militar, como damas constrangidas arrastadas para um baile pelos maridos rabugentos. Foram, isso sim, parte integral dela.
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.