Na fronteira com a Rússia
Na Ucrânia, o conflito que emerge tem raízes notadamente culturais, embora as crises política e econômica e a corrupção tenham contribuído.
A dicotomia entre capitalismo x comunismo/socialismo ainda persiste na política interna e externa de alguns países latino-americanos e africanos. Desde a queda do Muro de Berlim, contudo, no hemisfério norte as ideologias não constituem mais um fator determinante na condução da diplomacia e das relações internacionais. A bipolarização do mundo por quase meio século e o simples alinhamento aos EUA ou à URSS, voluntário ou coercitivo, são passado.
Por essa razão, é bastante insensato afirmar que as hostilidades – entre EUA e Europa, de um lado, e Rússia, de outro, resultantes da invasão da Ucrânia – poderiam resultar numa espécie de retorno à Guerra Fria. Também não se explica onde os chineses se encaixariam nessa equação. Se a ascensão da China já exerceu peso considerável na derrocada da URSS, imagine-se hoje, que o país representa um ator internacional bem mais importante do que a Rússia sob o aspecto econômico, e quase a ela equiparável sob o aspecto militar.
O incontestável triunfo do livre-mercado sobre a economia planificada, apesar das diversas formas que o estatismo assumiu e continuará assumindo nas democracias liberais, permitiu o ressurgimento de conflitos frequentemente apaziguados pela realidade imposta no período de 1945 a 1991. A partir de então, a preferência pelo sistema político-econômico deixou de constituir elemento preponderante na eclosão de conflitos, dando lugar àquilo que realmente os desencadeia, ou seja, a cultura – ou melhor, as diferenças culturais.
Isso não significa que não veremos mais conflitos de natureza político-ideológica, mas a tendência é que eles, cada vez mais, deem lugar aos conflitos culturais e, num grau acima e que ainda não presenciamos de maneira violenta, civilizacionais. E é precisamente com esses dois que nos devemos se preocupar, pois eles são muito mais complexos, arraigados, dificilmente solucionáveis e, geralmente, tendem a ser infindáveis até a completa dominação ou eliminação do inimigo, apesar de interstícios de paz (que podem perdurar por séculos).
Na Ucrânia, o conflito que emerge tem raízes notadamente culturais, embora as crises política e econômica e a corrupção tenham contribuído para os dissensos entre a população com vínculos com a Rússia – no leste – e a população com vínculos a povos europeus – no oeste. O estopim da crise foi a desistência do então presidente, Viktor Yanukovich, de firmar um acordo com a União Europeia que criaria as bases para o ingresso do país no bloco.
O cerne da questão está nas diferenças culturais entre eslavos europeizados e russo-eslavos, principalmente de língua e de religião – russo-ortodoxos e uniatas (cristãos originalmente ortodoxos, mas formalmente ligados à Santa Sé). Acresça-se ao quadro o ódio quase centenário dos ucranianos nacionalistas contra os russos em virtude do Holodomor, genocídio perpetrado por Stalin no início da década de 1930 que deixou milhões de mortos e famintos. Os mapas superiores ajudam a entender como a Ucrânia é dividida pela língua e pela etnia (em evidência, a Crimeia, território invadido e ocupado pelos russos) e os inferiores sobre como essa divisão reflete na política e nas urnas.
Entretanto, apesar dessas diferenças de identidade cultural e nacional, elas não são insuperáveis e, por si só, dificilmente resultariam num conflito armado, sobretudo porque as duas etnias se concentram relativamente separadas nas porções ocidental e oriental do território ucraniano.
Ocorre que essas diferenças foram aprofundadas por uma decisão unilateral de Yanukovich, que, na prática, foi chantageado por Putin. De qualquer modo, hoje, a pergunta que se deve fazer é “Quem você é?”, e não mais “De que lado você está?”, como foi durante toda a Guerra Fria.
Pesquisas de opinião durante os protestos dos últimos meses revelaram que cerca de metade da população é favorável ao estreitamento das relações com a Europa, e um terço é contrário. Então não existe predominância clara e inequívoca por qualquer dos lados. No curto-prazo, não há perspectiva de qualquer solução.
Nos EUA e no Brasil as reações à invasão da Crimeia têm sido curiosas, pois se mistura preferência ideológica com cultura. Comecemos pela esquerda. Nos EUA, a maioria dos democratas obviamente apoia a reação precavida de Barack Obama diante da invasão do território ucraniano. No Brasil, contudo, não são raras as manifestações de apoio e idolatria a Vladimir Putin, visto por muitos como o “sujeito que finalmente resolveu enfrentar o imperialismo dos EUA e de seus asseclas”, como se os norte-americanos tivessem exercido influência relevante na decisão dos ucranianos de fazer parte da Europa.
Essa reação dos brasileiros é esquisita e traz à tona uma contradição patente. Ora, Moscou nada mais fez do que agir da mesmíssima forma como Washington é acusado de agir: invadiu um Estado soberano, violou o direito internacional, atropelou o Conselho de Segurança da ONU (que sequer foi instado a se manifestar sobre o imbróglio) e ainda recorreu ao pretexto da intervenção humanitária – retórica muito empregada por Washington sob o governo de Bill Clinton – supostamente para proteger do novo governo de Kiev a maioria russa que habita a Crimeia.
Putin ainda alega que Yanukovich foi vítima de um golpe-de-Estado e, portanto, não reconhece o governo provisório. Claro que é mais uma inverdade, já que o ex-presidente foi deposto pelo Parlamento após meses de protestos populares (algo inerente a qualquer democracia) e após violenta repressão que resultou em cerca de uma centena de mortes. Tudo para fazer valer os interesses russos naquele país.
Portanto, os métodos de Moscou assemelham-se bastante aos métodos de Washington nas últimas duas décadas, de modo que reverenciar o primeiro e criticar o segundo significa incorrer em contradição inexpugnável.
Do outro lado, há a direita norte-americana, sempre ávida por uma oportunidade para criticar Barack Obama. Lá, é compreensível que os republicanos, os conservadores e o Tea Party usem o conflito gerado por Putin com a invasão do território ucraniano para criticar o mandatário democrata.
O proeminente senador texano Ted Cruz, por exemplo, publicou artigo na Foreign Policy – um dos principais periódicos sobre diplomacia e relações internacionais – expondo os supostos erros da política externa de Obama. John McCain, candidato republicano à presidência em 2008, seguiu o mesmo caminho. Desenterram até uma antiga declaração de Sarah Palin, em que ela previra a invasão da Ucrânia pela Rússia. Apesar de serem ataques infundados (e já explico o porquê), faz parte do jogo político-partidário.
Entretanto, surpreende que articulistas, jornalistas e comentaristas da imprensa brasileira, considerados ou autointitulados “de direita”, usem esse fato para denegrir a imagem de Obama e a atual política externa da Casa Branca. Embora eu não mantenha nenhum apreço pelo presidente dos EUA, tampouco concorde com suas ideias políticas, criticá-lo em razão de sua inoperância (o melhor termo é prudência) no conflito russo-ucraniano, a nós brasileiros não faz nenhum sentido.
Em primeiro lugar, deve-se perguntar: esperavam o quê, exatamente? A mobilização de tropas e forças para o leste europeu? Isso seria uma atitude hostil completamente fora da realidade. Aqui, vale um adendo: não sei quanto a vocês, mas a mim agrada que os EUA tenham uma posição menos belicosa em relação ao resto do mundo. Ron Paul, principal figura libertária da política norte-americana e membro do Partido Republicano, há décadas defende menos interferência em outros países. Ele já percebeu o óbvio: mais interferência resulta em mais ódio. De qualquer forma, Paul é uma exceção e suas ideias destoam tanto daquelas dos republicanos como dos democratas.
A Crimeia é uma península ao norte do mar Negro, possui um território de 26 mil km² e população de 2 milhões de habitantes, ambos mais ou menos parecidos com Sergipe, territorialmente o menor estado brasileiro. A população é predominantemente russa, pois a região foi cedida à Ucrânia na década de 1950 por Nikita Khrushchev. Além disso, a Rússia já mantinha bases militares naquele território. Portanto, a mera ocupação da Crimeia não altera de forma significativa a geopolítica da região.
Em segundo lugar, até agora os EUA foram o país que mais criticou a ocupação e anunciou a tomada de medidas que estão ao seu alcance: cancelamento de acordos de cooperação militar, suspensão de novas negociações comerciais e ajuda de 1 bilhão de dólares oferecida a Kiev.
Em terceiro lugar, é Obama quem está pressionando os líderes europeus para impor sanções multilaterais à Rússia. Evidentemente a UE tem muito mais interesse no desenlace dessa questão e na manutenção da paz na região do que os EUA. O problema principal é que Putin controla 35% da energia consumida pelos europeus. Alemanha e Reino Unido (aliado histórico dos EUA) já acenaram que, nessas circunstâncias, não subirão no ringue. O preço a se pagar é muito alto e, no máximo, tentarão ajudar Kiev sem confrontar a Rússia diretamente.
Sob a perspectiva dos países ocidentais, não se trata de uma alteração substancial no quadro geopolítico regional. E as opções de retaliação dos EUA e principalmente da Europa são muito limitadas. Putin sabe muito bem disso. Daí por que ele tomou a Crimeia, embora não precisasse. A invasão e a violação da soberania ucraniana foram desnecessárias no momento, já que a Rússia tinha e ainda tem outras inúmeras formas de exercer influência e fazer valer seus interesses naquele país. Então, por que criar uma perigosa crise internacional? Por duas razões.
A primeira é que Putin provavelmente pretende desestabilizar o já frágil governo interino de Kiev, pressionando-o com uma guerra iminente e tentando aumentar o poder de líderes a ele aliados, aberta ou veladamente. Pouco importa. A estratégia é conhecida: gerar uma crise constitucional, de legitimidade e enfraquecer o poder central, dividindo-o e descentralizando-o para outros núcleos, principalmente no centro-leste ucraniano, de maioria russa. Ela pode surtir efeito, mas certamente também resultará no aprofundamento do nacionalismo ucraniano e no ódio contra a Rússia, preço que Putin demonstra disposição em pagar.
A segunda razão é que, ao que tudo indica, Putin pretende dar um sinal ao Ocidente. Esqueçam a URSS e o século XX. Suas pretensões, valores e ideias estão lá na Rússia Czarista e Imperial: conservadorismo, governo autocrático, preservação das tradições e costumes ortodoxos, etc. O presidente russo não é adepto de valores ocidentais como direitos humanos, instituições democráticas, rígida separação de poderes, relativismo moral e outras invenções europeias e norte-americanas. Pelo contrário: ele as vê como uma ameaça à existência da cultura russo-ortodoxa e quer deixar isso claro ao resto do mundo.
De fato, a disseminação de valores ocidentais em culturas não-ocidentais é uma incógnita: a democracia liberal e todos seus pressupostos funcionaram relativamente bem na Europa e nos EUA. Mas não há um país grande e populoso onde esse sistema de valores prevaleceu em conjunto com uma cultura não-ocidental. Nós mesmos da América Latina temos enfrentado dificuldades para aceitá-lo. Países islâmicos, muito mais. Os efeitos da ocidentalização dessas culturas são desconhecidos.
E, para Putin, o alinhamento da Ucrânia à Europa representa um perigo à civilização que ele quer preservar. Seu temor ainda é agravado por um desastre demográfico: nos últimos 20 anos, a população russa vem caindo vertiginosamente. Portanto, o conflito instaurado vai muito além das preferências e ideologias políticas, nas quais não há respostas. E, sem o aval de Putin, inexiste possibilidade de solucioná-lo pacificamente.