O romance se passa durante um prêmio literário formado por autores e críticos de qualidade assombrosa
Apesar de há algum tempo querer ler a série de romances (fortemente autobiográficos) que tem Patrick Melrose como protagonista, e pela qual Edward St. Aubyn é mais conhecido, Lost for words acabou sendo seu primeiro livro que consegui ler.
Pelo que diz a crítica, os cinco livros de Melrose, apesar de conterem momentos divertidos, são criações mais tradicionais. Assim sendo, Lost for words é de fato algo diferenciado na obra do inglês Aubyn.
Aqui temos uma sátira. Acompanhamos os cinco jurados do mais importante prêmio literário do país, o Elysian Prize, e o que de pior pode acontecer no universo da politicagem cultural. Acompanhamos também alguns dos escritores com obras favoritas no Elysian – e Katherine Burns, cuja editora, ao invés de cadastrar seu romance para concorrer ao prêmio, erroneamente cadastrou um livro de culinária.
Malcolm Craig é o chefe da comissão de jurados. Ele tem seu livro predileto, uma nulidade literária, e tenta convencer outros jurados a o elegerem vencedor. No processo, Craig entra em atrito com Vanessa Shaw, que é a voz da consciência literária na comissão, uma acadêmica ultrapassada que acredita que o mais importante em um romance é a qualidade estética.
Não para os demais jurados. Uma, Penny Feathers, tem como um de seus favoritos o livro de um escritor neozelandês, devido à mensagem “patriótica e educacional” que ele transmite – “realmente aprende-se algo a partir de um livro assim tão bem pesquisado”. Passar otimismo para os leitores: isso, para Feathers, é o que é mais importante numa obra de ficção.
Outra jurada, Jo Cross, apaixona-se por um romance canadense que aborda a recente crise financeira global e a degradação do meio ambiente. Para Cross, o mais importante em uma obra de arte é passar no “teste da relevância”, por relevante entendendo-se linha direta com problemas sociais.
Hilariantemente, a certa altura um livro favorito de Cross – que se passa na África do Sul à beira da independência e é recheado de fortes cenas de violência, aprovado portanto no teste da relevância – simplesmente horroriza a Feathers, pois “a vida já era deprimente o bastante sem uma estória como aquela, quem nem ao menos tinha o mérito de ser factualmente correta”.
Feathers é também escritora. Para superar seu atual bloqueio criativo, ela adquire um software (Gold Ghost Plus na versão mais atual) que dá sugestões de frases após simplesmente digitarmos a palavra-chave da sentença. As frases sugeridas são jargões atrozes, mas o importante, lembre, é escrever – qualquer coisa, de qualquer jeito – e encontrar alguém para publicar.
Esse assassinato em sequência de frases se sobressai em Lost for words porque o próprio Edward St. Aubyn é reconhecido por ser autor de frases luminosas, reconhecimento que este seu novo romance reforça. Sam Black, autor finalista do Elysian, tenta se relacionar com a colecionadora de amantes Katherine Burns. Quando ela está traindo o atual parceiro, mas não com Black, Aubyn escreve que “her openness to infidelity filled him with an optimism that her choice of infidelity discouraged”.
Sam Black faz o papel, no ambiente externo ao círculo do prêmio, da consciência literária representada por Vanessa Shaw no interior do grupo politiqueiro dos críticos. A arte está em crise, ele reflete, desvalorizada, refém do politicamente correto:
(…) a palavra “elitista” poderia ser pronunciada com o mesmo confiante desprezo de “covarde” numa corte marcial. Era como se um preconceito não pudesse ser banido sem levar algum outro tópico, antes discutido livremente, ou mesmo admirado, para um vergonhoso exílio. Talvez em gerações futuras seria aprovada uma lei permitindo a adultos em consentimento mútuo praticarem arte abertamente; um Departamento de Relações do Intelecto poderia ser estabelecido para encorajar a tolerância em relação àquelas pessoas que, sem terem culpa, tinham interesse em ideias.
Como retrato de um ambiente intelectual que toma a arte pela arte como morta e venera critérios pouco respeitáveis, não poderia faltar em Lost for words um personagem portador da bagagem cultural pós-moderna francesa, com seu Lacan, Foucault e anticapitalismo básico. Tal é Diddier Leroux, um francês que tem o defeito de, “uma vez começando a interpretar algo, o problema era como parar”.
O que Leroux interpreta, em seu exílio londrino durante o qual se torna amante de Katherine Burns? Tudo. E mais um pouco. Você reconhecerá a verborragia: “(…) esta superposição de duas categorias impossíveis: amante/ex-amante (…) cria o espaço do paradoxo puro, como a emergência efêmera de uma partícula vinda do vácuo quântico – o vácuo que não é um vácuo!”.
Leroux é amigo da autora do livro de culinária que foi acidentalmente inscrito no Elysian e tomado como um romance de qualidade – “uma obra-prima lúdica, pós-moderna e multimídia”, na opinião de um jurado. A própria autora, coitada, não quer aceitar que seu volume de receitas seja uma ficção, mas Leroux lhe diz que “evidentemente, estamos na presença do texto-enquanto-têxtil, enquanto fábrica-ação que tece um véu dissimulador por sobre seu assunto aparente, expressando o excesso de linguagem figurativa acima de qualquer significado atribuído ou, de uma forma mais geral, a força excessiva do significante acima de qualquer significado que tente contê-lo”.
Enquanto Lost for words pode ser algo diferenciado no conjunto da obra de Edward St. Aubyn, o livro segue uma forte tradição britânica de romance cômico. Pelo curto tamanho e tipo de humor, o romance lembra um Evelyn Waugh de The loved one (1948), por exemplo, ou um Kingsley Amis de One fat Englishman (1963). Nos trechos mais mordazes sobre relacionamentos amorosos, Aubyn lembra uma contemporânea, Lucy Ellmann. Quero dizer com isso que o livro é imperdível.
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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