O mito do financiamento público de campanha

As relações de tutela e privilégios entre Estado e empresários não desapareceriam com o financiamento público, e ainda ficariam menos transparentes.


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Diante das manifestações ocorridas no dia 15 de março, umas das primeiras reações do governo foi a defesa do financiamento público de campanha. Esta também é uma das principais pautas da reforma política pretendida pelo PT e também é endossada pelos partidos de extrema-esquerda como PSOL, PSTU, PCO, PCB e PCdoB.

De acordo com os defensores de tal proposta, o cálculo é simples: como são as empresas privadas que fazem a maior parte do financiamento das campanhas eleitorais, estas “cobram” os políticos depois de eleitos, ou seja, exigem benesses e privilégios para continuarem financiando as campanhas, dando origem, assim, a um círculo perverso e vicioso. O slogan escolhido para descrever tal processo é “quem paga a banda escolhe a música”.

No entanto, a relação simbiótica entre empresas e Estado, entre poder econômico e poder político é mais complexa que isso e não se dá só em ambientes democráticos. Muito pelo contrário: em períodos sem democracia ou em que esta foi muito frágil, tal relação foi mais intensa ainda. Como exemplo, temos a República Velha, a Era Vargas e a ditadura militar. Em todos estes períodos, tivemos relações escusas e empresas privilegiadas pelo Estado, sem que houvesse a questão do financiamento de campanhas.

Tal relação nos remete ao patrimonialismo e ao capitalismo politicamente orientando. Em sociedades patrimonialistas, conforme definidas por Max Weber e, no Brasil, principalmente por Raymundo Faoro, o Estado é o pólo condutor da sociedade. Todas as relações gravitam em torno do poder estatal, que dirige a sociedade de cima para baixo e usa de seus poderes para tutelar e construir a sociedade. Em tais sociedades, as relações privadas entre os indivíduos são muito frágeis ou inexistentes, já que são sempre permeadas pela presença do Estado.

No âmbito político, a despeito de modernizações institucionais formais, as práticas patrimonialistas são mantidas no processo decisório e de alianças. Além disso, a contestação e o conflito político são demasiadamente indesejáveis para a solução de problemas. Quando há discordância em torno de algum ponto, quase sempre se recorre à cooptação, ou seja, a unir potenciais opositores, flexibilizando algumas questões, mas sem abdicar dos pontos centrais de um projeto de poder. Para o governo, é sempre mais cômodo fazer isso do que disputar, de fato, com a oposição. Para os potenciais opositores, é mais fácil entrar no governo e ter alguns privilégios e um certo poder do que articular para disputar o poder.

Tal traço da cultura política e social explica várias questões, que parecem indecifráveis para muita gente, como o fato do atual governo conseguir fazer alianças com ruralistas e com defensores da reforma agrária, com oligarquias e com movimentos de cunho progressista. Tais relações não se explicam somente por questões econômicas, muito menos por financiamentos de campanhas eleitorais, e sim pelo excesso de poder do Estado.

Quando temos um Estado altamente intervencionista, arbitrário, com uma burocracia intrincada e irracional, e um governo desenvolvimentista e gastador, o ambiente econômico carece de confiança. Sendo assim, obviamente as empresas irão buscar privilégios e favorecimentos junto a este Estado e, caso não façam, outras o farão. No entanto, a via é de mão-dupla, e a elite econômica não é mera refém da elite política. Há também pressões por parte de empresários para que o governo os “proteja”. Porém, em qualquer caso, o instrumento que define as possibilidades da manutenção das mesmas elites e das relações simbióticas é o Estado, não o poder econômico. Querendo ou não, é o Estado quem dispõe de poder coercitivo e não há diálogo simétrico entre alguém armado e alguém desarmado.

Dessa forma, as relações de tutela e privilégios entre Estado e empresários não desapareceriam com o financiamento público, e ainda teria um agravante: tais relações ficariam menos transparentes. No sistema atual, é possível saber qual empresa financiou determinado candidato e qual foi a quantia. Sem esse mecanismo, além da simbiose se manter, o chamado “caixa dois” seria institucionalizado e seria mais difícil saber quais interesses econômicos estariam por trás de determinado político ou partido.

Enquanto o Estado dispuser de tantos poderes para influenciar a economia, a elite empresarial terá como principal interesse se aproximar do poder estatal. Afinal, é mais fácil manter a posição econômica através do Estado do que concorrendo no mercado.

Enfim, novamente, diante de uma crise econômica e política, uma solução na base da “canetada” surge como salvação e, mais uma vez, o “poder econômico” é colocado como vilão e como propulsor da corrupção. Enquanto não quebrarmos o mito de que tudo se resolve por decretos, e continuarmos confundindo intenções com incentivos, o conchavo entre Estado e elite empresarial se manterá.

A única forma de evitar tal relação perversa e viciosa é a limitação dos poderes do Estado, mas, mesmo diante dos problemas que estamos enfrentando, grande parte dos que se opõem não só ao atual governo, mas a um determinado modelo de poder, não perceberam isso ainda.

Amálgama




Caio Vioto

Mestrando em História pela Universidade Estadual Paulista.


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MAIS RECENTES


  • Hugo Silva

    Olá, Caio.

    Antes de mais nada, belo texto. Entretanto, fiquei com uma dúvida: o que você quis dizer com institucionalização do “caixa dois”?

    Abraços!

  • http://brasilfranciscano.blogspot.com.br Eugenio Hansen Ofs

    Paz e bem!

    1 De fato o Financiamento Público de Campanha (FPC)
    não acaba com a corrupção.

    2 Nem impede a existência de caixa 2.

    3 Contudo, limita a força dos grandissíssimos grupos econômicos.
    3.1 Se um candidato pelo FPC dispõe de R$5 000 000,00
    não poderá gastar na campanha R$15 000 000,00.
    3.2 Hoje existem mecanismos que permitem à Procuradoria Eleitoral
    fazer um bom controle dos gastos de campanha —
    não nego que se possa gastar mais, mas não será muito mais não.
    3.3 E este tipo de limitação faria toda a diferença.

    4 Isto não quer dizer que
    não poderiamos ter um Congresso
    com maioria de direita,
    mas que seria um Congresso
    com um perfil bem menos dependente
    dos grupos econômicos.
    4.1 Um colega de escola
    três anos atrás
    pensou em se candidatar pelo DEM,
    desistiu quando viu o quanto cu$taria.
    4.2 Com FPC ele teria se candidatado —
    eu acho que não se elegeria,
    mas teria ido à luta
    e buscado convencer as pessoas de suas idéias.

  • Caio Vioto

    Hugo, a institucionalização do caixa dois significa que isso seria uma prática muito mais corriqueira do que é hoje se houvesse o financiamento público de campanha. Hoje, mesmo com o financiamento privado, qualquer campanha de vereador tem caixa dois. Com o financiamento público, as empresas e os políticos iriam fazer suas articulações em dinheiro exclusivamente por meio do caixa dois.

  • Caio Vioto

    Eugênio, a dependência dos grupos econômicos não depende exclusiva e simplesmente de financiamentos diretos. Prova disso é que em períodos sem democracia tivemos essa simbiose entre Estado e empresas. E, além disso, não é só o poder econômico que influencia o poder político. O contrário também acontece. A relação é de mão-dupla. Essa é uma característica do patrimonialismo. Não é o poder econômico das empresas que faz com que elas queiram influenciar o Estado. É o excesso de poder do Estado que atraem as empresas a “investir” mais em política do que em concorrer no mercado. A relação de causalidade é exatamente inversa. Sobre a questão da dificuldade em se candidatar (e eu já passei por isso também), isso é mais uma questão da estrutura coronelista e da desorganização dos partidos, do que dos custos financeiros.

  • Carlos Moreira

    Claro que o patrimonialismo não desapareceria. Mas a questão do financiamento
    privado, não é essa. Os problemas são três, principalmente:

    1- Resultam na desigualdade dos direitos políticos dos cidadãos.

    2- Dificultam a prova da corrupção, já que o dinheiro entra limpo no caixa do partido.

    3- Empresas não têm (ou não deveriam ter) direitos e interesses políticos.

    O financiamento público é uma das possíveis soluções. Pode se pensar em outras: manter a identidade do doador for sigilosa para o partido e para o político, por exemplo, seria bem mais simples e pode resolver o problema com menos dilemas teóricos.

    Se a gente for deixar de aperfeiçoar procedimentos porque “não resolve a questão do
    patrimonialismo”, não vamos conseguir fazer nada.

  • Caio Vioto

    O financiamento privado empresarial não prejudica em nada a igualdade de direitos políticos. Todos continuam com o direito de votar e ser votados, formar partidos, etc. Mas a democracia de massas passa pela questão da captação de recursos e isso é incontornável. O próprio Weber aborda isso em “A política como vocação”. As empresas fazem parte da sociedade e têm interesses políticos sim, e de forma legítima, principalmente quando governos podem prejudica-las através de vários mecanismos: taxação, burocracia, instabilidade monetária, etc. O sigilo só pioraria as coisas, pois as relações ficariam menos transparentes. A questão é: as relações simbióticas entre empresas e Estado não se dão somente em função do financiamento de campanha. Isso é matematizar a questão. O problema não é o “poder econômico” das empresas que influencia a política, mas o excesso de poder do Estado de poder maximizar o poder econômicos de seus favorecidos em detrimento do mercado e de todos os consumidores e produtores.