A partir de um personagem de si, Raimundo Carrero remonta os dias subsequentes ao AVC
Há poucos meses, o mundo foi tomado de assalto por um artigo, publicado no New York Times, no qual o médico e escritor Oliver Sacks fala abertamente de seu ocaso. Portador de um câncer terminal no fígado, ele lança um olhar sobre os poucos dias que tem pela frente. A surpresa, porém, está no tom. O que apontaria para uma carta de despedida, encharcada em tintas melancólicas, acaba por se revelar uma ode à vida. Sacks não percebe a aproximação da morte como um processo de anulação, mas a chance suprema de agradecer pela existência e pelo privilégio de contar com tempo para ser produtivo e aprofundar suas amizades. “Não posso negar que estou com medo. Mas meu sentimento predominante é de gratidão. Eu amei e fui amado; doei muito e retribuí; li e viajei e refleti e escrevi. Eu tive uma boa relação com o mundo, a relação especial de escritores e leitores”, declara.
Na literatura, existe uma longa lista de títulos que comportam relatos de vencedores e de perdedores, no jogo de xadrez com a morte. Aos últimos, cabem os livros sobre o luto, a exemplo dos recentes Altos voos e quedas livres, de Julian Barnes, e O brilho do bronze, de Boris Fausto, além do inigualável Carta a D., de André Gorz. Ao passo que os primeiros são, na maioria das vezes, testemunhos de experiências-limites editados para refulgir o tema superação. São os bestsellers do ciclista que venceu o câncer, do alpinista que prendeu o braço numa rocha, do sobrevivente do naufrágio, da menina que escapou de um atentado motivado por obscurantismo religioso, e a prateleira é extensa.
O senhor agora vai mudar de corpo, romance recente de Raimundo Carrero, repousa num meio-termo. Não contém a extravagância da superação nem o drama fatal do luto. É um livro sobre a angústia. Sobre como lidar com as incertezas e os efeitos físicos provocados por um acidente vascular cerebral (AVC) que, em 2010, acometeu o escritor pernambucano. Com a metade esquerda do corpo paralisada, a fala da memória dá conta do que a “voz rachada e confusa” não é capaz de expressar. Cria-se, desse modo, uma confissão montada por fragmentos de distâncias pretéritas, cuja varredura é comandada pelo medo de perder o autodomínio, em especial a coordenação que ocasiona a escrita.
Carrero, a todo tempo, recorre aos livros, a autores que escreveram sobre o esboroamento físico (de Dostoiévski a Clarice Lispector), como pontos cardeais para guiá-lo nessa jornada autocentrada destituída de ordem cronológica ou de limites claros entre realidade e ficção. A literatura, e seu salvo-conduto fantasioso, é a chave que o autor encontrou para o embarque. Inventar um personagem de si, o Escritor, deslocando a narração da primeira para a terceira pessoa. Algo como a livre adulteração dos versos de Walt Whitman: “Eu sou o homem, eu sofri, eu estava lá”, para: “Ele é o homem, ele sofreu, ele estava lá”. Um olhar extracorporal, não avariado pela doença.
A partir desse novo ângulo, as reminiscências compaginam-se a figuras de linguagens, símbolos e alegorias. O autor segue o conselho que recebeu do mestre e amigo Ariano Suassuna: “A literatura se faz com metáforas”, povoando as pequenas cenas que constituem o livro com elementos desnaturados a fim de significar sensações e devaneios. Os morcegos, as aranhas, o cortejo mezzo medieval mezzo circense formado pelo O Gordo, O Magro, O Velho, O Anão e A Mulher Grávida. Da transição do organismo saudável para o enfermo, Carrero reconfigura a vida, seu passado, seu presente, “o Recife, agora transformado num mundo de ansiedade e espera, algo que se aproxima muito do arco de desolação que se estende no horizonte de prédios gigantes que ocupam a paisagem da cidade”. Faz-se homem, faz-se menino, repintando e encadeando as palavras num pueril, e igualmente agourento, trava-língua: “A aranha arranha a rota roupa mortal na noite rebelde”.
É sempre uma sinuca de bico para o resenhista analisar uma obra de substância íntima (sobretudo esse que vos escreve, cujo segundo livro é motivado por uma perda), porém, ao se desencarregar da condução da narrativa, Carrero expõe o enredo ao juízo da invenção e absolve a verdade. Daí se expõem a técnica e a manufatura da trama, urdida com a precisão da mestria. O sempre arriscado recurso da metáfora se dissolve numa prosa rica e densa, produzindo passagens belíssimas, tal qual o trecho em que descreve, numa tensão quase onírica, como as aranhas no teto tecem sua mortalha. Outros fragmentos, a exemplo da descoberta do acidente em casa até a mudança para o hospital e dos danos mais grotescos, como a incapacidade de controlar as excreções, têm força para sensibilizar o leitor, sem que se apele para a autocomiseração ou para o pieguismo. Tudo passa por uma revisão, exceto a literatura. A única fração orgânica e espiritual do Escritor imutável, antes e depois da doença. “Não conseguia parar um só instante, tomado de febre criativa, e as palavras se multiplicavam sem reflexão, sem crítica, sem análise. Apenas o desejo de criar e criar. Sem imitar nenhum escritor, sem copiar, sem se aproximar. Sem pensar, ele sabia: não pensava. Escrevia e escrevia”.
Ao fim, fica a impressão de que o romance valida a máxima de que, ao ser soprado pela morte, o que se viveu corre sobre os olhos. Os primeiros autores, o início no jornalismo, os amores, os excessos, as bebedeiras, os carnavais, os amigos, a fé, as atividades políticas, o casamento e o nascimento dos filhos revolvem num fluxo que não clareia o porquê da sobrevivência, mas estimula a recuperação. Há espanto, vergonha, dúvida; nunca derrotismo. Carrero, a seu modo, faz uma ode à vida.
Sérgio Tavares
Jornalista e escritor, autor de Queda da própria altura (2012), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (2010), vencedor do Prêmio Sesc.
[email protected]