Vale tudo? – prova ilícita e combate à corrupção

Se o interesse público autoriza o Estado e seus agentes a descumprirem a lei, soçobrou o Estado Democrático de Direito.


minispublico

É incrível como em certas épocas, nas quais a população demonstra indignação e intolerância com certos comportamentos ou situações, indo às ruas protestar contra práticas que considera abjetas, sempre aparecem espertinhos (“malandro demais”, na expressão de Bezerra da Silva) querendo se aproveitar das manifestações de modo a passar suas pautas. A principal característica dessas pautas é que, se adotadas, levariam a um caminho inverso ao pedido pelas manifestações principais. São, assim, “pautas parasitárias” da reivindicação principal.

Um exemplo típico, que pode ser retirado das manifestações contrárias à corrupção que estão ocorrendo no Brasil, é o caso dos pedidos de intervenção militar. Se houvesse golpe, teríamos menos transparência e menos democracia. Logo, menos controle popular sobre o governo. O que levaria a mais corrupção.

É exatamente este, também, o caso de uma das medidas propostas pelo Ministério Público Federal em seu “pacote anticorrupção”. O MPF quer que mesmo provas ilícitas possam ser usadas nos processos, quando “os benefícios decorrentes do aproveitamento forem maiores do que o potencial efeito preventivo” (sic). Seja lá o que o MPF queira dizer com tal disparate, fica patente a violação ao art. 5º, LVI, da Constituição da República: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.

Entretanto, o subprocurador-geral da República, Nicolao Dino Neto, alega que as provas ilícitas não podem, automaticamente, prejudicar todo o processo, dizendo que “é preciso fazer uma ponderação de interesses e verificar em que medida a eventual irregularidade na produção da prova pode indicar prejuízo à parte. Se não houver algo que evidencie prejuízo à defesa, nada justifica a exclusão dessa prova”.

Perguntamos: quais serão os “interesses” a serem “ponderados”? O interesse no cumprimento da Constituição contra o interesse da punição custe o que custar? Ou o interesse de ver uma condenação facilitada contra o interesse de que se cumpram as regras do jogo? Porque se um dos lados puder realizar ações que violam as regras, mas tais ações ainda serão “ponderadas” pelo juiz para decidir se é o caso de anulá-las, estamos feitos. Se o interesse público autoriza o Estado e seus agentes a descumprirem a lei, soçobrou o Estado Democrático de Direito.

E tudo feito tendo como pano de fundo dois fenômenos. De um lado, a confiança na subjetividade do julgador (e não na integridade do sistema jurídico) através da “ponderação”, da “livre apreciação das provas”, do “livre convencimento”. Passamos a depender da bondade de juízes e promotores (o “passamos” aqui é meramente retórico; essa gente faz isso mesmo ao arrepio da Constituição e das leis). Do outro lado, a aposta no inchaço do Direito Penal e no enfraquecimento do Direito Processual Penal de matriz democrática. Penas maiores, inversão de ônus probatório, relativização das nulidades etc.

Mas não precisamos nos preocupar, existem exceções! Estão ressalvados os casos de tortura, ameaça e interceptações sem ordem judicial, por exemplo. Estamos salvos! Afinal, essa prova ilícita não é prejudicial à defesa. Mesmo o réu tendo sido condenado, porque existiam outras provas (que só foram possíveis devido à prova ilícita)! Como diria Pangloss, este é realmente o melhor dos mundos possíveis.

Isso sem contar o que se configura como a cereja do bolo: o Ministério Público no Direito brasileiro tem entre as suas atribuições a de ser o guardião da correta execução das leis – o fiscal da lei – e deve, para cumprir essa função, arguir a inconstitucionalidade de leis que violem a Constituição. Neste cenário, “Quis custodiet ipsos custodes (quem fiscalizará os fiscalizadores)?”

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Hugo Guimarães

Bacharel em Direito pela UFPR, com mestrado em Filosofia pela mesma instituição.


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MAIS RECENTES


  • Nilson Carlos Schmidt

    esta história de prova ilicita ou ñ licita já livrou muito corrupto da cadeia , portanto prova é prova, ñ importa de que maneira conseguiram ela, se tem um suspeito de corrupção, a policia arma um flagrante , pega o cprrupto com esta prova, o sujeito diz que esta prova foi conseguida de maneira iilicira e livra o corrupto da cadeia, só no brasil mesmo.

    • Hugo Silva

      Na verdade, só no Brasil e em todo o mundo democrático. Apenas em países maravilhosos como Irã, Coreia do Norte ou China poderia uma prova conseguida por meio ilícito valer em um processo. Isso é abrir as portas para a tortura e outros meios utilizados no processo inquisitório da Idade Média para chegar na “verdade” (que, diziam, libertava).

  • Júlio Crespo

    O direito é um meio e não um fim para alcançar a justiça. Portanto prova é prova, independente do meio pelo qual ela foi conseguida. Se foi cometido alguma infração ou crime para se conseguir uma prova, que seja punido também esse infrator ou criminoso, mas nunca excluindo de punição o autor dessa prova.

    • Hugo Silva

      O Direito é meio apenas para regimes autoritários como o fascismo, o nazismo e o stalinismo que acreditam que as regras possam ser relativizadas para alcançar conceitos abstratos de justiça como o “sadio sentimento do povo”, ou a “consciência de classe”. Num Estado Democrático de Direito a justiça é a realização dos valores expressos na Carta fundadora, a Constituição.

      • Júlio Crespo

        Você não entendeu o que eu disse. Deve-se punir quem conseguiu uma prova por meios ilegais, mas não absolver o autor dessa prova se ela vier a ser confirmada por meios legais. E outra: palavras não são números e a carta fundadora, a constituição, pode conter mais interpretações (relativizações) que a sua vã filosofia pode supor. Portanto, eu procuro defender acima de tudo valores éticos inegociáveis e não meras legislações provisórias, como uma constituição. E pra deixar bem claro, eu não sou um operador do direito (magistrado ou advogado), sou apenas um cidadão.

        • Hugo Silva

          Eu entendi o que vc disse. Apenas não concordo com nada.

          • Júlio Crespo

            “Se o interesse público autoriza o Estado e seus agentes a descumprirem a lei, soçobrou o Estado Democrático de Direito.”

            Quando a maior parte da população brasileira concorda (ou autoriza) que um ex-advogado do PT (presidente do TSE) tome conta das eleições 2014 e diga em cadeia nacional de rádio e televisão que essas eleições com suas urnas eletrônicas fraudáveis e apuração secreta e restrita a cerca de 20 pessoas, são 100% seguras, soçobrou o Estado Democrático de Direito ou não??? Na minha opinião, essa situação relativiza qualquer legalidade no país. E não é por acaso, que nos dias atuais, os poderes e instituições estão todos comprometidos e desacreditados nesse país. Esse modus operandi atual do MPF é causa ou efeito desse eventual soçobramento do Estado Democrático de Direito pelas eleições 2014???

            • Hugo Silva

              Sinto muito, amigo. Não acredito em teorias da conspiração.

              • Júlio Crespo

                Muitas vezes teorias da conspiração podem ser argumentos com os quais você não concorda.

  • Pablo Vilarnovo

    Sinceramente, texto irrepreensível.

  • André Martins

    Concordo em grande parte. Mas a proposta não seria tornar lícitas alguns tipos de provas que hoje são consideradas ilícitas? Se essas mudanças forem feitas as provas deixam de ser ilícitas e não haverá mais incongruências com a constituição. A sua argumentação não impediria qualquer emenda constitucional? Outro ponto que eu achei esquisito é você afirmar que essa mudança abriria caminho para a legalização da tortura, mas se a própria proposta exclui a tortura não creio que essa argumento seja razoável.

    • Hugo Silva

      Olá,

      1- Não. A proposta pretende que haja uma “ponderação de interesses” para verificar se a prova – mesmo obtida por meios ilícitos – pode valer ou não (basicamente se há prejuízo à defesa ou não).

      2- Não só a minha argumentação, como a própria constituição impede que aconteçam modificações em certos trechos. O nome dessa técnica de redação é “cláusula pétrea”. Essas cláusulas são consideradas imutáveis, mesmo por emenda. Na nossa constituição estão elencadas no art. 60, § 4º. A proibição de provas ilícitas e a definição do que são provas ilícitas são cláusulas pétreas. Elas não podem ser excluídas ou reduzidas; assim como, não podemos criar exceções novas (podemos ampliá-las ou criar novas).

      3- Não encontrei em qual parte do texto eu disse que a proposta abriria caminho para a legalização da tortura.

      Abraços!

      • André Martins

        Hugo, obrigado pelas respostas.

        1) De fato, a forma como foi feita a proposta pelo MP ficou muito ruim.

        2) A proibição de provas ilícitas está na constituição, mas a definição do que são provas ilícitas é dada em lei. Não poderiam ser mudadas?

        3) Não está no texto, foi na resposta dada ao Nilson Carlos Schmidt abaixo.

        • Hugo Silva

          2- Boa parte das regras sobre provas é dada de forma indireta na Constituição. Por exemplo, no art. 5º, XI vem dada a inviolabilidade do domicílio. Se a polícia entrar no domicílio sem uma das razões autorizadoras do inciso e conseguir alguma prova de um ilícito, essa prova é ilícita. Outro exemplo é o do inciso seguinte, o XII, que traz a inviolabilidade de certos sigilos. Se a polícia violá-los sem a única hipótese autorizadora do inciso e conseguir uma prova de algum ilícito; tal prova é ilícita e não vale. Isso não pode ser mudado nem por emenda.

          Lógico que se a lei traz algum rito específico para a produção de uma prova – sem contrariar a constituição – esse rito pode ser mudado. É o caso do rito para a produção de prova testemunhal, por exemplo. Mas, mesmo nesses casos, devemos ficar atentos às garantias que estão na Constituição (e que definem um sistema processual acusatório, em regra). Nesse caso, jamais poderia ser mudada a lei para impedir a defesa de participar da oitiva das testemunhas de acusação. Violaria o contraditório e a ampla defesa.

          3- Eu me referia ao que ele tinha dito (“prova é prova, ñ importa de que maneira conseguiram ela”), não à proposta do MPF.