O carioca Miguel Del Castillo flerta com o mundo literário do continente, daí sua proximidade com temas e autores contemporâneos como Alejandro Zambra.
Quem inicia a leitura de Restinga, do carioca Miguel Del Castillo, seu livro de estreia, sem atentar para a biografia ou as informações da orelha sobre autor, certamente não terá dúvidas de estar diante de um veterano, com muitos títulos na praça e outras experiências na vida e na literatura.
Esse sentimento nasce justamente da constatação, logo nas primeiras linhas do conto que dá título à obra, do vigor e segurança com que a narrativa se desenvolve, o que se sucede também nos 11 textos do livro, extraindo-se a mesma maturidade e desenvoltura ao articular ideias & temas, no manuseio, sem firulas ou falsos experimentalismo, da linguagem, na harmonia entre forma e conteúdo, na dosagem entre a necessidade de contar uma história, seja ela repleta de crueza, mistério ou trivialidade, ou com sua carga de forte tensão ou emoção, mas amortecida pela sutileza de um estilo cristalino, porém direto e contido.
Mas estamos diante de um marinheiro de primeira viagem que (algo raro!) sabe conduzir o timão, contrariando o que se observa na obras da maioria dos estreantes que, muitas vezes seduzidos pelo açodamento de publicar-se ou ocupar espaços, não se realizam em suas pretensões literárias.
Castillo é uma voz que já se fazia notar no atual cenário da literatura brasileira, quando fez seu dèbut na concorrida revista inglesa Granta, com o conto “Violeta”, incluído nesse livro, e que penetra na memória da ditadura chilena, expondo os dilemas da família de um desaparecido político, um tema caro a todos nós latino-americanos e que o autor tangenciou com habilidade, sem extrapolar para uma inflexão ideológica, mantendo um fluxo delicado entre presente e passado, dialogando com os sustos e silêncios existenciais, sem carregar nas tintas da denúncia.
Em sua escritura, Castillo flerta com o mundo literário do continente, daí sua proximidade com temas e autores contemporâneos como Alejandro Zambra e nota-se, por exemplo, o passeio de sua lente pelos cenários chilenos e uruguaios, numa uma espécie de resgate de histórias ou de pequenos dramas domésticos que são muito comuns em nossas vidas, que canalizam uma certa ancestralidade histórica, política e social.
O autor, pela idade que tem, certamente não viveu as agruras do período de obscurantismo do continente, mas há fortes indícios em sua prosa de uma relação, seja familiar ou social, com quem amargou o gosto de chumbo daquela época, pela melancolia presente nos seus contos, inspirado na leitura de uma identidade perdida, de desencontros e solidões curtidos, de dores e angústias camufladas, de amizades e relações fragmentadas, da infância que não se resgata, do artificialismo das relações, enfim fala de estar e também de não pertencer, sentimentos difusos na natureza humana e muito presentes nos seus personagens, como denotam os belos “Olimpíada”, “Arraial”, “Cruzeiro”, “Paranoá” e o suspense de “Casa abandonada”.
Alguns contos, como “Restinga”, nos tocam pela simbiose entre a contundência da realidade e a poesia trágica do quotidiano. Neste, um dos mais paradigmáticos do livro, uma mãe vencida pelo câncer, deseja suavizar seu fim num passeio de pelo mar, cujo pedido é atendido pela filha Laura. No trajeto, ela ouve soar a música de Jobim na voz do condutor da barca que a leva, uma espécie de alento metafórico ao seu futuro desenlace: “Longa é a praia, longa restinga, da Marambaia à Joatinga”, como um recado íntimo a dizer que o que separa Marambaia do continente é o mesmo que separa sua vida da morte.
O autor não está preocupado com a linearidade e isso é uma característica peculiar no seu processo criativo, porque seus contos primam pela atmosfera, não necessariamente pelo estilo tradicional e óbvio em que tudo se adivinha. Deixa ao leitor pistas para outras leituras e sentidos que podem emergir do texto, como se cada um pudesse desvelar as histórias como num sistema de palimpsestos. Apesar de toda a fluidez e simplicidade de sua escritura, ela não se presta às facilidades, nada é perfunctório. Saímos de seus contos como quem mergulha nas tantas águas que, simbolicamente, estão presentes em seu livro: com o frescor de um banho estético, com a necessidade ainda maior de buscar no espanto e nos acidentes do quotidiano a virtude de sempre nos reinventarmos, como sujeitos e como leitores.