A reunião dos poemas de Adélia Prado revela a consistência dos seus temas ao longo dos tempos.
É relativamente fácil achar bons poetas; o complicado mesmo é encontrar os excepcionais, aqueles que lemos com a sensação de que a nossa visão de mundo está modificando no momento exato da leitura. Quando estamos diante de um poeta verdadeiro, alguém que se entrega à sua subjetividade com técnica, usando cada palavra como se fosse a mais preciosa joia, sentimo-nos como barro sendo manuseado por mãos sábias; a cada verso, sentimos que uma breve pressão foi aplicada na nossa personalidade, e algo se modificou de forma eterna; a cada poema, sentimos que ele sempre esteve dentro de nós, mas não tínhamos a capacidade de transformá-lo em carne e palavras.
A poesia existe para nos aproximar do divino, e tal conceito independe de religião, fama ou bens materiais, mas está vinculado àquele algo maior que almejamos em silêncio. Neste sentido, Poesia reunida, de Adélia Prado, mais do que uma compilação de todo o material já produzido pela escritora mineira, é uma apologia ao fazer poético. Não é um livro que explode em epifanias ou que possui pontos da mais plácida calma. Ao contrário, a reunião dos poemas de Adélia Prado revela a consistência dos seus temas ao longo dos tempos, a tranquilidade com que utiliza a palavra para construir imagens, a sabedoria do poetar sem pressa.
Por reunir todos os livros publicados por Adélia Prado, o tamanho de Poesia reunida pode assustar leitores incautos. No entanto, entre as 543 páginas que constituem o exemplar, um pouco mais de 80 são dedicadas a um extenso levantamento bibliográfico e a três textos, um escrito por Carlos Drummond de Andrade, outro por Affonso Romano de Sant’Anna e o terceiro por Alberto Mussa. Os textos ajudam a deixar a obra de Adélia Prado ainda mais prazerosa, pois abordam características comuns dos seus poemas. De Drummond, optou-se por trecho da crônica que ele escreveu para o Jornal do Brasil, onde revelou as suas primeiras – e maravilhadas – impressões sobre a obra da escritora mineira até então desconhecida. Affonso Romano de Sant’Anna relata o que sentiu quando leu os originais de Adélia. Nas suas palavras: “Não aguentei e telefonei para Drummond: Mestre, acaba de aparecer uma poetisa no interior de Minas. E isto eu dizia como um astrônomo no observatório nacional, feliz com uma nova possibilidade de vida fora de mim, do que conhecia, do que lia.” Alberto Mussa optou por um texto inédito, descrevendo cada livro de Adélia e apresentando algumas de suas chaves de escritura para deixar mais completa a fruição dos poemas.
Ainda assim, quando nos deparamos com a obra de Adélia Prado, vemos as pouco mais de 460 páginas de poesia se sucederem com prazer crescente. Não é um livro cansativo; afastamos o olhar dele não para refletir, mas para deixar que o encantamento gerado pelo poema – ainda de leitura fresca – continue mais alguns segundos na memória. Se existe um mérito em uma obra poética de tamanha envergadura é este: lemos os poemas não como se eles fossem uma sucessão de palavras em formato de versos, mas como se estivessem respirando na nossa frente. É possível sentir cada palavra com a mesma emoção original que a gerou. A poesia flui do livro assim como saiu da poeta – sem dificuldades, sem sobressaltos, com o avançar inexorável de uma catarata. O mundo torna-se uma grande poesia, vertido pelas palavras elegantemente exatas de Adélia Prado, e o leitor se torna parte delas, tanto da poesia quanto da poeta.
Ao analisar a obra reunida de qualquer escritor (e vale aqui lembrar que é “Poesia Reunida” ao invés de “completa” por que Adélia Prado ainda se encontra produzindo poemas, com a velocidade que o seu fazer poético autoriza, sem se curvar à fome crescente dos leitores e do mercado editorial), alguns temas acabam se destacando. Em primeiro lugar, analisando as epígrafes e citações contidas no interior dos poemas, é possível notar a forte influência que a Bíblia deixou sobre a poeta mineira. Mas não toda a Bíblia, e sim as frases mais repletas de beleza e os livros mais poéticos, em especial o “Cântico dos Cânticos”, assumidamente a obra mais literária do texto sagrado. Dito desta forma, poderia sinalizar que a obra de Adélia Prado possui um forte cunho religioso, mas escapa deste rótulo no momento em que articula temas bíblicos no meio do cotidiano. Além disso, muitas de suas poesias aproveitam mais o ritmo dos textos da Bíblia, em uma toada que lembra a estrutura da oração, como no poema “A boca”:
Se olho atentamente a erva no pedregulho
uma voz me admoesta: mulher! mulher!
como se me dissesse: Moisés! Moisés!
Tenho missão tão grave sobre os ombros
e quero só vadiar.
Um nome para mim seria A BOCA
ou a SARÇA ARDENTE E A MULHER CONFUSA
ou ainda e melhor A BOBA GRAVE.
Gosto tanto de feijão com arroz!
Meu pai e minha mãe que se privaram
da metade do prato para me engordar
sofreram menos que eu.
Pecaram exatos pecados,
voz nenhuma os perseguiu.
Quantos sacos de arroz já consumi?
Ó Deus, cujo reino é um festim,
a mesa dissoluta me seduz,
tem piedade de mim.
O poema acima revela outra característica da produção de Adélia Prado: as memórias da infância. As preocupações simples da época de criança, as recordações quase tácteis, os cheiros, sons e cores são revividos através dos poemas, mas sem o ranço de saudosismo. A poeta traz a infância para dentro da sua obra não a título de nostalgia ou melancolia, mas como uma sucessão de momentos luminosos que continuam a residir na mulher já adulta – e que nunca serão perdidos, posto que se tornaram parte da sua essência. Em geral, quando nos recordamos do passado, tendemos a imaginá-lo como algo perfeito. No entanto, em uma abordagem criativa para a sua infância, Adélia a trata como um espaço de dúvidas, incertezas, medos e alegrias, sem idealizações. Apesar da sua voz autoral manter uma certa reminiscência da voz infantil (possível perceber no poema “A boca”, em que a voz do poema oscila da fase adulta para a criança temerosa da reação dos pais), não é por tratar deste período da vida como uma fase de confrontos, mas como espaço para constante maravilhamento.
Alberto Mussa destaca a forte tensão sexual existente na poesia de Adélia, algo não declarado de forma explícita, mas que percorre os seus versos como uma voltagem invisível. Grande parte desta sensação de voluptuosidade surge das suas descrições repletas de sentidos e da forma faminta com que trata do corpo masculino e feminino. São poemas de relativa intensidade, escritos com palavras quentes, e parte do calor se transmite através da leitura. Em épocas de erotismo desbragado (e mal feito), é interessante ver como um poema pode ser sexualmente excitante sem usar nenhum estratagema fácil. Exemplo é o poema “Ofício parvo”, no qual se sente uma atmosfera sexual sem, no entanto, existir nenhuma cena que leve a tal conclusão, a não ser a imaginação forte do leitor:
Quero limpar a boca e as entranhas
do sonho que me sujou
mais que se em vigília
as mesmas podres coisas me sujassem.
O tentador me cobra sem descanso
uma prova de fé.
Virgem, Porta do Céu, em meu favor,
pisa com teu pé de menina
a cabeça de cobra que ele tem,
me livra da tentação
de sofrer mais do que Deus.
Lendo o conjunto da obra de Adélia Prado até agora, também merece realce a força que ela dá para a mulher no interior dos seus poemas. Não quer dizer que sejam trabalhos feministas, mas poemas repletos de temas femininos articulados de maneira universal. Ao invés de realizar denúncias ou descrever situações de machismo, a poeta aborda o feminino com coragem e força poética, mostrando dúvidas, como em “Mural”:
Recolhe do ninho os ovos
a mulher
nem jovem nem velha,
em estado de perfeito uso.
Não vem do sol indeciso
a claridade expandindo-se,
é dela que nasce a luz
de natureza velada,
seu próprio gosto
em ter uma família,
amar a aprazível rotina.
Ela não sabe que sabe,
a rotina perfeita é Deus:
as galinhas porão seus ovos,
ela porá sua saia,
a árvore a seu tempo
dará suas flores rosadas.
A mulher não sabe que reza:
que nada mude, Senhor.
Nas entrevistas, Adélia Prado afirma que o seu tema preferencial é o cotidiano. Ser capaz de ver os temas universais que se escondem no meio do habitual é a característica principal de qualquer grande poeta. Afirmou Percy Bysshe Shelley no clássico ensaio Em defesa da poesia: “a poesia ergue o véu de beleza oculta do mundo, e torna familiar objetos como se não fossem familiares; reproduz tudo o que representa e as interpretações revestidas nesta luz Elísia permanecem, desde então, nas mentes daqueles que, uma vez, as contemplaram como memoriais daquele conteúdo, gentil e exaltado, que se estende sobre todos os pensamentos e ações com as quais coexistem.” Neste sentido, Adélia Prazo produziu uma obra que, mais do que revelar a beleza do mundo, também agregou novas cores nele. E ninguém melhor do que ela própria para se definir, em um verso do poema “Branca de Neve”: “sou curva, mista e quebrada, sou humana.”
Ao buscar o Deus indiferente que reside em cada mínimo objeto, a poeta ergueu um memorial poético em honra ao ser humano. Talvez por causa disto, a surpresa de Adélia Prado no dia seguinte ao lançamento bem-sucedido do seu primeiro livro – o medo de que a sua poesia tenha morrido – revela-se engraçado, conforme ela confessa no poema “Fluência”, quando o despertar do dia seguinte a faz procurar a voz poética, saber se ela ainda existe, se a poeta não morreu no momento em que o livro nasceu:
Eu fiz um livro, mas oh, meu Deus,
não perdi a poesia.
Hoje depois da festa,
quando me levantei para fazer café,
uma densa neblina acinzentava os pastos,
as casas, as pessoas com embrulho de pão.
O fio indesmanchável da vida tecia seu curso.
Persistindo, a necessidade dos relógios,
dos descongestionantes nasais.
Meu livro sobre a mesa contraponteava exato
com os pardais, os urinóis pela metade,
o antigo e intenso desejar de um verso.
O relógio bateu sem assustar os farelos sobre a mesa.
Como antes, graças a Deus.
Gustavo Melo Czekster
Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.
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