Brasil

Dá para defender Lula?

por André Egg (06/03/2016)

Lula não é insubstituível. Se fosse, a esquerda estaria irremediavelmente em maus lençóis.

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Escrevo este texto de um lugar confortável (ou não) para perguntar sobre defender Lula.

Fui eleitor dele nas vezes em que ganhou eleições presidenciais e nas vezes em que perdeu também. Estava no comício dele na Boca Maldita em 1989, quando ainda nem votava. Acompanhei sua primeira campanha presidencial no meio do agito da vida de secundarista, quando estudava no CEFET e o movimento estudantil participava ativamente da campanha – dividido entre Brizola e Lula.

Considero que ele foi um dos melhores presidentes que o Brasil teve. Um dos maiores políticos da nossa história, comparável apenas a nomes como D. Pedro II, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Fernando Henrique Cardoso. É um dos poucos que conseguiram operar nosso complicadíssimo sistema de alianças políticas e manter uma governabilidade prática, ao mesmo tempo em que promoveu transformações significativas e deu grandes contribuições para a modernização do país.

Dito isso, posso voltar à pergunta: dá para defender Lula?

Como todo mundo sabe, na última sexta ele foi conduzido para depor na Polícia Federal, e pela primeira vez há indícios fortes de que ele recebeu dinheiro desviado do esquema de corrupção da Petrobras. Há um sítio em Atibaia e um Triplex no Guarujá que não estão no patrimônio declarado do ex-presidente, mas que são de seu uso, e foram pagos por uma empreiteira envolvida nos esquemas de desvio da Petrobras (e em muitos outros desvios da República, provavelmente) e nos esquemas de financiamento de campanha (várias campanhas, provavelmente).

Em relação a isso, imediatamente se levantou uma campanha fortíssima em defesa do ex-presidente. Ele é o maior símbolo político da esquerda no país. O nome dele representa esperança de retorno em 2018, quando seria um forte nome nas eleições, e acredita-se seria capaz de reeditar o sucesso de seus dois mandatos presidenciais, recolocando a economia nos trilhos após as lambanças de Dilma, mantendo o rumo da distribuição de renda e reeditando a pax política que obteve com tanto sucesso, quando chegou a índices próximos a 90% de aprovação e era cortejado por muitos que hoje gritam contra ele e querem vê-lo preso.

“Lula é vítima de uma ação orquestrada e as investigações tem cunho político”

Essa defesa de Lula argumenta em duas direções, basicamente. A primeira enxerga na investigação do Ministério Público, no juiz Sérgio Moro e na Polícia Federal uma operação orquestrada para atingir o ex-presidente e torná-lo inviável em 2018. Se possível, derrubar junto o governo Dilma. Estariam em ação uma justiça e uma PF partidárias e interessadas em influir no jogo político e derrubar o PT.

Essa linha de raciocínio não é destituída de fundamento. Sobre termos uma justiça partidária há poucas dúvidas. As altas cortes do judiciário são recrutadas das classes médias para cima, as ligações dos tribunais com a elite política são umbilicais. Temos o judiciário mais caro do mundo, tanto em altos salários como em benefícios múltiplos e inconstitucionais (são eles que julgam a constitucionalidade dos próprios benefícios). Os executivos e legislativos cumulam o judiciário de bênçãos como auxílio moradia, um salário disfarçado que não paga imposto de renda e não é computado para fins de teto constitucional. Tudo isso embute garantias de imunidade em eventuais ações ou investigações.

Lula estaria sendo vítima dos playboys da PF, do MP e do judiciário. Afinal, ele é proletário, nordestino e o único líder sindical e de esquerda a ter chances reais de influir na política brasileira. Esse discurso de classe não é inverossímil. Basta ver as manifestações de membros da PF e do MP no Facebook, as redes de apoio que a Lava-Jato tem entre a classe média alta e suas ligações com o antipetismo, bem como as carreiras políticas desenvolvidas por alguns personagens, como o Deputado Francischini, delegado de carreira cujo único mérito político é ter articulado vazamentos seletivos para cacifar-se como o melhor dos antipetistas (e hoje é pré-candidato à prefeitura de Curitiba), ou como o delegado que prendeu João Santana e é pré-candidato pelo PSDB à prefeitura de Niterói.

A leitura que propõe Lula como vítima tem a acrescentar a opinião abalizada de juristas que consideram que a condução coercitiva foi um abuso de poder por parte das instâncias investigativas. Seria uma clara ação midiática para atingir a imagem do ex-presidente como símbolo político, e parte um golpe, ilegal e ilegítimo.

Mais que vítima

Essa leitura tem como principal problema ignorar a questão central no processo. Lula cometeu os ilícitos de que é acusado? Provavelmente sim. Os indícios são fortes. Os que o defendem como vítima de um processo político, de um golpe de uma orquestração do antipetismo e da burguesia, encastelaram-se na posição confortável do negacionismo. Ou acreditam piamente que Lula é inocente, é santo, não cometeu os ilícitos e está sendo acusado injustamente, ou simplesmente retiram tal componente de suas considerações políticas.

Outro fator que tem sido desconsiderado pelos analistas que afirmam que a condução coercitiva foi um abuso é o fato de que um depoimento marcado, no caso de Lula, seria um convite ao tumulto. A condução coercitiva de Lula foi aplicada de surpresa, e mesmo assim a delegacia da PF teve manifestações de partidários de Lula e de manifestantes de ódio a ele.

Que Lula é vítima de perseguições, é odiado pela burguesia é atacado como símbolo, sabemos desde a década de 1970. É deste lugar que ele tem operado como importante ator na política nacional, desde o movimento sindical que ajudou a derrubar o Regime Militar, passando pela atuação radical e minoritária como partido anti-establishment nos anos 1980 até a construção de uma alternativa ao grupo que se articulou em torno de FHC nos anos 1990. Foi somente com o colapso da economia no fim daquela década (desemprego alto, inflação mais ou menos, racionamento de energia elétrica) que Lula se tornou viável como candidato presidencial.

A questão é que Lula sempre soube atuar deste lugar de vítima real, de perseguido político, de candidato interditado pela direita, pelas altas esferas, pelos donos do poder.

O detalhe é que já tem um década e meia que Lula não é mais o representante das classes trabalhadoras que luta por um lugar no sistema político oligárquico que o Brasil construiu ao longo dos últimos 200 anos. Ele é o líder supremo de um partido político que assumiu o Governo Federal e construiu ali um esquema de desvios múltiplos de recursos públicos (desde os tempos do “mensalão”, chegando ao “petrolão”) para comprar apoio político e governar. O PT não inventou os esquemas de corrupção e compra de apoio, apenas usou os que já eram praticados largamente, o que nos leva à segunda linha de raciocínio da defesa.

“Todos fizeram, mas só o PT é investigado e condenado”

Essa segunda linha de raciocínio vem sendo usada por muita gente em defesa do PT e de Lula contra as acusações as investigações e as prisões. Ela não é falsa. O grau de punibilidade de crimes políticos (ou de crimes cometidos por políticos) tem sido quase nulo ao longo da tradição política brasileira. Contribui para isso a eterna ligação entre as classes proprietárias e os altos cargos políticos e o caráter oligárquico de recrutamento da classe política, do judiciário e dos altos postos nas polícias.

Políticos de esquerda seriam vítimas preferenciais destas investigações e condenações, pois gente como Maluf, Sarney ou os quadros do PSDB estariam imunes como representantes dessas elites no poder. O julgamento do mensalão às vésperas das eleições municipais de 2012 teria sido o maior exemplo desta ação enviesada de MP, PF e judiciário. Abusando da teoria do “domínio do fato”, teriam condenado sem provas personagens como José Genoíno e José Dirceu, basicamente por serem petistas, atendendo assim ao clamor político de um antipetismo cada vez mais forte, turbinado pelo poder (inimaginável em outras democracias) de assistir ao vivo pela TV as sessões do STF em canal a cabo.

Invariavelmente, esta linha de defesa usa as evidências para argumentar que o PT e Lula são vítimas de uma ação política orquestrada, condenando pela primeira vez práticas políticas ancestrais. Todos podiam, nunca eram condenados. Quando o PT chegou não pode mais.

Assim,  a cada notícia, escândalo ou investigação, os blogueiros pagos e os militantes tentam trazer novamente à tona inúmeras acusações contra FHC, Serra, Alckmin ou Aécio. Por que eles não são investigados? Por que só se fala em mensalão e petrolão, e nada de trensalão, Sivam, pasta rosa, helipóptero? Por que não prendem o ladrão da merenda?

Até aí, tudo justo. É uma saudável concorrência política termos partidos rivais, um pressionando pela investigação e punição dos crimes cometidos pelo outro. O detalhe é que até hoje têm sido fáceis as composições e os panos quentes: deixem quieto os nossos podres que deixamos os de vocês pra lá. É disso que se compõe a governabilidade.

O problema somos nós, eleitores

A questão é que os políticos estão aí, há décadas, combinando entre si como ficar impunes, e nós eleitores pouco ou nada pudemos fazer para interferir nisso. Muita gente (eu incluso) votou no PT nos anos 1980 ou 90 com esse intuito: trazer um grupo político de fora dos esquemas, para tentar modificar o jogo político e construir sobre novas bases.

A realidade é que o PT demoraria mais para eleger presidente, ou talvez nunca elegesse, se continuasse fora dos esquemas. Em algum momento decidiu que eleger presidente era mais importante e agora paga o preço.

Por outro lado, já são 13 anos de governo do PT (o governo é de uma coalizão, na qual o PT é minoritário, para dizer a verdade) e pouca coisa mudou. Exceto o fato de que hoje se investiga, se julga e se prende políticos como “nunca antes nesse país”.

A prova máxima? O próprio ex-presidente Lula está sendo atingido.

Existe saída para posições políticas de esquerda?

Grande parte da motivação para defender Lula com os esquemas mentais do tipo “os fins justificam os meios” descritos acima derivam da percepção de que Lula é uma liderança única e insubstituível. Ele é um símbolo tão forte que, se for destruído politicamente os pobres ficarão para sempre órfãos, nunca mais distribuiremos renda e voltaremos à velha hegemonia da direita oligárquica. Para todo mundo que já chorou de emoção cantando “Lula lá” ou “la-la-la Brizola” (e podemos inserir aí a tradição de liderança popular que remonta a Prestes e Getúlio), essa questão é fundamental.

A história da política brasileira demonstra o contrário. O Brasil é um país muito desigual, com ignominiosos bolsões de pobreza e miséria. Continuamos sendo um país de mão de obra barata e propriedade extremamente concentrada. Em ambientes de livre concorrência eleitoral, a tendência sempre foi de vitória das forças que defenderam mais distribuição.

O avanço neste sentido não é irreversível, como o demonstra nossa experiência de 1964. Podemos interpretar o Golpe como uma reação aos esforços distributivos da democracia de 1946, mas a compreensão histórica precisa passar pela noção de que a instabilidade institucional não interessa à esquerda.

Lula não é insubstituível. Se fosse, a esquerda estaria irremediavelmente em maus lençóis. Se ele se beneficiou dos esquemas de desvio de recursos, isso precisa ser investigado. Se houver provas suficientes, ele precisa ser condenado. Se precisar ficar impedido de concorrer em 2018, deve ficar impedido.

“Ah, e como faremos sem ele?” Não sei. É um caminho que deverá ser construído. Para quem continua sonhando com um Brasil mais justo e menos desigual, é o grande momento para rever seus esquemas mentais, repassar a história recente do país, e arregaçar as mangas para construir novas lideranças, e recuperar a democracia interna no PT (bem como em outros partidos – o PT não é o único canal para ideias distributivistas em nosso sistema político).

Se a esquerda souber trabalhar, continuará sendo uma força incontornável no sistema de eleições democráticas. Se insistir na ruptura institucional, ficar apegada a personalidades mais que a ideias, será fragorosamente derrotada.

É evidente que existem parcelas consideráveis da sociedade (e do MP, PF e judiciário entre elas) que quer ver o PT e Lula varridos do sistema político brasileiro. E o PT e Lula, mesmo sabendo disso, continuaram dando inúmeros motivos e razões para os caras cumprirem seu intento.

Não é o momento de defendermos Lula. Quem fará isso serão seus advogados. O momento é de defendermos instituições melhores, justiça igual para todos, partidos mais democráticos, um funcionamento político menos envolvido com crimes financeiros.

Nos próximos meses veremos inúmeros políticos de altos cargos indo para a cadeia – Eduardo Cunha puxa uma longa fila de deputados investigados na Lava Jato. Talvez vejamos Lula preso, e Dilma impedida. Eu votei em ambos nas eleições recentes, e não quero que o meu voto seja considerado um salvo-conduto diante de investigações e julgamentos. Saberei achar outros candidatos se for o caso. Nós cidadãos brasileiros precisaremos reinventar nossa política diante da profundidade das investigações e do alto número de políticos atingidos. Precisaremos repor nossas lideranças de forma responsável. Eu espero, realmente, que não façamos isso simplesmente pondo panos quentes e mantendo tudo como está.

André Egg

Professor da UNESPAR, professor colaborador no PPGHIS-UFPR, colaborador da Gazeta do Povo. Um dos organizadores do livro Arte e política no Brasil: modernidades (Perspectiva, 2014).

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