Lula quer criar, entre os jornalistas, o sentimento de que não pode ser investigado.
1.
Não é novidade que o Brasil não é um país muito afeito à liberdade. No Index of Economic Freedom, elaborado pela Heritage Foundation, o Brasil ocupa uma nada gratificante 122ª posição, num ranking que mede, essencialmente, liberdades econômicas. Nos índices de gastos do governo, liberdade de investimento, liberdade financeira e liberdade nas relações de emprego, o país é enquadrado na categoria “mostly unfree”. Quando o assunto é corrupção e liberdade, a situação é pior: estamos no mais baixo nível da escala – “repressed”.
Mas não é só em relação às liberdades econômicas que o país não vai bem. No World Press Freedom Index de 2015, elaborado pela Reporters Without Borders para medir a liberdade de imprensa nos diversos países do mundo, o Brasil está na 99ª posição, atrás de Uganda, Kwait, Guiné-Bissau, Togo e Serra Leoa. O Comittee to Protect Journalists coloca o Brasil como o 9ª país mais “letal” para jornalistas, levando-se em conta o número de repórteres assassinados desde 1992. Nada mal, não?
Ainda que digam que a liberdade econômica é pré-condição para o exercício das demais liberdades políticas e que seria, por isso, mais importante, a aversão brasileira à liberdade de imprensa, em particular, e à liberdade de expressão, em geral, parece-me algo mais grave e estarrecedor do que excesso de intervenção estatal na economia. O tempo médio para se abrir uma empresa pode esperar quando vivemos num país em que jornalistas são perseguidos por fazer seu próprio trabalho.
Se querem um exemplo ilustrativo, o ex-presidente Lula nos dá vários.
2.
Cercado de denúncias de recebimento de favores de grandes empreiteiras – segundo o Ministério Público, possivelmente durante o próprio mandato – Lula fez o que seu partido tem feito de melhor: atacou a imprensa.
Após surgirem notícias de que os pedalinhos do já famoso sítio em Atibaia receberam os nomes dos netos de Lula, O Globo procurou o Instituto Lula para pedir um posicionamento sobre o tema. Cumpriam o mais básico e corriqueiro dever do jornalista: o de ouvir os dois lados.
Qual foi a resposta do Instituto? Um desaforado e-mail de resposta em que sugeriam à “brava reportagem de O Globo que persegue pedalinhos de crianças” (sic) que investigasse o real proprietário de uma mansão em Paraty. Em tom irônico, acrescentava: “Haverá alguma nota ou reportagem do Globo sobre essa polêmica propriedade?”. Nas entrelinhas – ou nem tanto – insinuavam que os pedalinhos não eram matéria jornalística e que o que a reportagem fazia, ao questionar o Instituto sobre o tema, era pura perseguição.
Para não deixar margem para dúvidas quanto ao respeito que nutriam pelo trabalho jornalístico de O Globo, o Instituto resolveu divulgar a troca de e-mails sob a singela desculpa de que seria “material de interesse público e histórico”.
Não era. Não é preciso muito esforço para saber que o Instituto Lula queria, com a divulgação da troca de e-mails, afrontar os jornalistas e, quem sabe, intimidá-los. A estratégia era mostrar que o pobre ex-presidente e sua pacata família são vítimas de uma incessante perseguição da imprensa, preocupada em apurar assuntos sem relevância enquanto ignoram notícias realmente importantes.
Não satisfeito com uma só resposta desaforada e intimidadora, o Instituto Lula insistiu na estratégia quando foi novamente questionado por O Globo, desta vez sobre o vazamento das notas fiscais de compra dos pedalinhos. A nova resposta, também divulgada pelo Instituto, conseguiu ser pior que a primeira: além de inserir, no já famoso modus operandi petista, uma atribuição de culpa a Fernando Henrique Cardoso, continha uma passagem representativa da alta consideração que nutrem pelo trabalho jornalístico:
Para, no que espero encerrar esse capítulo da história do jornalismo investigativo brasileiro, digno de um filme que mereceria o Oscar (“Os pedalinhos”), os pedalinhos foram adquiridas por Dona Marisa, que também adquiriu uma canoa de alumínio.
(…)
Aproveito para registrar que o Globo não registrou a minha pergunta sobre a propriedade de Paraty no outro lado da minha resposta anterior.
A ironia da resposta, além do mau gosto, denuncia a visão lulista do trabalho da imprensa. Um e-mail simples e direto, trabalho corriqueiro de jornalistas do mundo todo, é interpretado como verdadeira perseguição jornalística. A apuração da notícia, um “filme que mereceria o Oscar”. No limite, o que sugerem é que não cabe à imprensa apurar notícias sobre Lula. E talvez não caiba a ninguém.
3.
Se acham que exagero quando afirmo que a divulgação dos e-mails e o tom geral da resposta do Instituto tinham intuitos claros – primeiro, menosprezar o trabalho jornalístico, segundo, intimidá-los com a tentativa de passar ao público a imagem de injusta perseguição – deixem-me acrescentar outros fatos.
Em conversa com blogueiros da mídia independente (leia-se, petista), o próprio Lula (o Lula CPF, não o Lula CNPJ) afirmou que iria “processar jornalista para ver se a gente recupera a dignidade da categoria”. Desta vez, Lula não ficou só no discurso: de fato, moveu ações judiciais contra diversos jornalistas e órgãos de imprensa.
Mas isso não basta, não é mesmo? Orgulhoso de intimidar jornalistas, Lula lançou um site para dar publicidade aos diversos processos que tem movido, juntamente com seu filho, contra os órgãos de imprensa. O site lista, com cópias das peças iniciais, as ações movidas contra Lauro Jardim, Veja, Cláudio Humberto e, mais recentemente, o site O Antagonista.
Se Lula e seu Instituto restringissem sua visão do trabalho dos jornalistas a respostas desaforadas e recheadas de ironia de terceira linha, teríamos razões para reconhecer aí mais um capítulo da visão brasileira e, especificamente, petista da liberdade de imprensa, e nada mais. Mas Lula foi além: resolveu interpelar judicialmente diversos jornalistas, transformando o que era ranço antidemocrático em perigo e intimidação concreta.
4.
Não é raro que o Judiciário seja usado como instrumento de intimidação. É o já famoso “vou te processar”. Mas também não é raro – e isto é especialmente preocupante – que os poderosos façam uso dos meios judiciais, e do nosso amplo acesso à jurisdição, para lidar com pessoas indesejáveis. Se não se pode ir às vias de fato (o que, dado o número de jornalistas mortos, não é estritamente verdade), pode-se ao menos esmagar os opositores com uma enxurrada de processos.
Lula, de fato, não é um caso único de desrespeito à imprensa livre. Mas talvez seja o caso mais exemplar, especialmente por disfarçar seu autoritarismo tradicionalista sob as vestes de uma posição democrática. Se Lula processa jornalistas, é apenas para “recuperar a dignidade da categoria”, jamais para persegui-los. Ele faz isso, como diriam nossas mães, para o nosso próprio bem.
A estratégia lulista é simples, conhecida e muito utilizada pelos poderosos: dispondo de numerosos advogados e contando com fontes inesgotáveis de recursos financeiros, políticos como Lula movimentam o Judiciário e obrigam os jornalistas, quando acionados individualmente, a disporem de recursos que muitas vezes não possuem. E se possuem, lhes é muito mais caro do que a alguém que conta com a amizade de empreiteiras e amigos “preocupados”.
Obrigando jornalistas a gastarem recursos com advogados, com tempo e com defesas custosas, Lula quer obrigá-los a pensar duas vezes antes de publicarem reportagens a seu respeito. Para ele, um processo a mais ou a menos não faz diferença. Para um jornalista, é possível que faça.
É claro que essa estratégia só funcionaria num país em que, mais do que a tão alardeada desigualdade econômica, haja uma avassaladora desigualdade de poder. E é isto que ocorre no Brasil.
Talvez não haja crime em usufruir – por mais de 100 vezes – dos benefícios de um sítio de amigos, construído e reformado por empreiteiras investigadas por corrupção. Mas esse fato revela que, mais importante do que dinheiro, os brasileiros comuns são separados dos políticos influentes por um abismo de poder. Lula não precisou comprar um sítio, não precisou reformá-lo, não precisou enfrentar toda a burocracia para a instalação de uma antena de celular. Bastou pedir.
Lula tem acesso a políticos, a juízes, a desembargadores, a empresários. Tem recursos, tem contatos. Seu capital não é somente resultado das milionárias palestras que deu, mas do poder político que ainda exerce no país.
É contra isso que os jornalistas processados por Lula irão se defender. Os jornalistas não irão se defender apenas das alegações – no mais das vezes frágeis – de crime contra honra. Terão que se defender de toda a rede de contatos lulista, de toda sua influência e todo seu poder.
Há defesa contra isso?
Há, e ela passa por um judiciário independente que reconheça o caráter essencial e fundamental da liberdade de imprensa.
5.
Nos Estados Unidos, o caso New York Times v. Sullivan, de 1964, tornou-se o precedente definitivo sobre o tema da liberdade de imprensa, garantindo aos jornalistas a necessária independência e segurança para realizar seu trabalho. No caso Sullivan, a Suprema Corte norte-americana estabeleceu um pesadíssimo ônus aos autores de ações de indenização por danos morais ou crimes contra a honra em face de jornalistas, passando a exigir que demonstrassem que os responsáveis pela publicação supostamente difamatória sabiam do seu teor falso, ou atuaram sem a mínima atenção ou preocupação com sua verdade ou falsidade.
Uma notícia publicada e posteriormente desmentida não renderia mais indenizações ou condenações, a menos que o autor conseguisse provar o exigido pelo padrão estabelecido em Sullivan. Afinal, se uma notícia falsa necessariamente configurasse um atentado a honra, o trabalho jornalístico seria gravemente dificultado, restando aos jornalistas a publicação exclusiva de matérias das quais tivessem 100% de certeza quanto à sua verdade. Esse padrão não ocorre nem mesmo nos tribunais, que decidem, muitas vezes, com base em critérios de distribuição do ônus da prova ou presunções jurídicas artificiais que permitem um juízo com base em probabilidade e graus de certeza razoáveis, mas não definitivos.
Isso significa que os jornalistas podem publicar notícias falsas? Em alguma medida, sim, desde que eles não saibam que ela é falsa, e desde que tenham tomado as medidas necessárias (e razoáveis) para apurar sua verdade. A possibilidade de eventuais notícias falsas é o preço que se paga pela liberdade de imprensa.
Haverá, evidentemente, casos claros de violação à honra, e casos fronteiriços, em que será discutível se caberá ou não indenização. A própria decisão do caso Sullivan não deixou de receber críticas nos anos posteriores. O fato, contudo, é que ela expressou um princípio importante: que a imprensa precisa de segurança para fazer o seu trabalho, justamente porque o seu trabalho é essencial para a democracia.
Mas voltemos a Lula. Seriam falsas as notícias publicadas a seu respeito? Com as matérias judicializadas, caberá ao Judiciário decidir. Entretanto, mais importante do que analisar a verdade das matérias, é analisar o âmbito de proteção do direito fundamental à liberdade de imprensa. Se nossos juízes decidirem que reportagens que contenham fatos supostamente “negativos” à imagem de Lula são indenizáveis, daremos carta branca a ele e a qualquer político para afrontar o trabalho jornalístico de apuração e investigação. Estaremos dispostos a isso?
Aliás, vale um parênteses: a cambiante defesa de Lula nos casos noticiados atende o padrão de “rigor” e “verdade”que ele próprio exige? Até o momento, Lula não conseguiu responder de maneira satisfatória à maior parte das acusações que tem recebido, havendo divergências e contradições em sua própria defesa. Isso não significa que as acusações sejam verdadeiras, evidentemente. Mas significa que não há a falsidade cristalina necessária para autorizar uma condenação contra jornalistas que apuram e noticiam o fato.
Na verdade, mais do que contestar a veracidade das matérias divulgadas – o que poderia ser feito por meio de notas do seu próprio Instituto – Lula quer criar, entre os jornalistas, o sentimento de que não pode ser investigado, de que os custos para fazê-lo são altos e de que nenhum jornalista teria coragem de suportá-los.
A imprensa deve responder à altura. Todavia, o que o país precisa, nesse momento, é de uma resposta do seu Judiciário. A liberdade de imprensa é importante mesmo quando desagrada poderosos. Ou melhor: principalmente quando desagrada poderosos. Está na hora de o Brasil ter seu New York Times vs. Sullivan.
Horacio Neiva
Mestre em Teoria do Direito pela USP.
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