Ruy Castro lança sua crônica da noite carioca entre 1946 e 1965, que teve o samba-canção como pano de fundo.
Quando soube que estava sendo lançado o livro A noite do meu bem, de autoria de Ruy Castro, logo me candidatei a ler e fazer resenha aqui na Amálgama. O livro me atinge diretamente como professor de História da Música Brasileira, exatamente por tratar de um período pouco estudado. Concentra-se entre 1946 e 1965, e analisa uma época que os grandes cronistas da Música Popular Brasileira sempre reputaram como de menor importância. Pode-se dizer que o senso comum compreende uma Era de Ouro, nos anos 1920 e 30, instituída como base para a criação de um glorioso período moderno, iniciado com a Bossa Nova em 1958. Os anos 1950 ficam num limbo, que muitos historiadores chamam, pra fazer piada, de “Idade Média” da Música Popular Brasileira.
Curioso é que o próprio Ruy Castro foi um ator importante nesta visão historiográfica, afinal seu livro Chega de saudade: A história e as histórias da Bossa Nova ajudou a consolidar uma visão do período como a grande fase do Brasil e da música popular, e João Gilberto como o maior gênio musical. Isso só aumentou meu interesse pelas histórias do samba-canção contadas por um fã declarado da Bossa Nova. Vale ressaltar que a leitura hegemônica sobre o impacto musical da Bossa Nova é a que reputa ao samba-canção o papel de música de mau gosto, dos vozeirões impostados dos cantores, do aboleramento da Música Popular Brasileira, dos arranjos orquestrais arrastados. Era contra esse pano de fundo antiquado que a Bossa Nova vinha se constituir como marco de modernidade e de bom gosto, e a comparação de João Gilberto com cantores da geração anterior sempre o colocam em larga vantagem no entender de vários cronistas – o próprio Ruy Castro entre eles.
Esse panorama reforça o valor do livro. Afinal, não é todo dia que um fã de João Gilberto e da Bossa Nova escreve um livro que prova que o bom baiano não surgiu por geração espontânea e que existiu música antes dele pegar no violão para acompanhar “Chega de saudade” no disco Canção do amor de mais de Elizeth Cardoso.
Ruy Castro é jornalista de formação, e de atuação profissional, o que explica o enfoque e o estilo do livro. Ele certamente é um autor muito experiente e relevante. Já escreveu muitas biografias importantes, e tem grande capacidade de pesquisa. Pelo menos é o que parece pelo volume de informações trazidas no livro, embora embora ele não se preocupe quase nunca em indicar fontes.
O autor deve ter pensado que o livro ficaria mais chato de ler se ficasse indicando como sabe isso ou aquilo. Eu achei exatamente o contrário: como preciso das informações e vou usá-las profissionalmente, elas praticamente não me servem da forma como ele apontou no livro. Vou ter que sair atrás de complementar praticamente tudo que achei importante. Essa forma de escrever como se o autor fosse a autoridade moral que sustenta todas as informações é uma boa economia de tempo para quem escreve. Assim, torna-se possível escrever em 3 anos um livro que demoraria muito mais tempo para ser trabalhado se fosse escrito de forma mais fundamentada.
De qualquer forma, o Ruy Castro se sai muito bem como cronista, a gente lê o texto dele mais ou menos como se fosse a coluna que ele escreve no jornal, só que agora é sobre 60 ou 70 anos atrás. O texto corre bem, é interessante e a histórias são ótimas. Os personagens são incríveis, e tudo vem temperado com o ar anedótico e bem humorado. Isso faz até a gente acreditar que histórias irrelevantes são importantes.
Boa parte do que Ruy Castro acredita, os por quês da escrita do livro e informações sobre como ele fez a pesquisa são dadas na ótima entrevista do autor para o programa Roda Viva, dias atrás. Entrevista que você já vai assistindo enquanto espera chegar o livro que vai comprar (porque por mais que eu aponte defeitos aqui, a leitura é simplesmente obrigatória para quem é estudioso ou apenas interessado em História da Música Brasileira). Ali ele conta, um pouco fanfarroneando, que a Bossa Nova estava fora de moda, e que o livro dele ajudou a alçá-la à posição de grande música brasileira. O que não é correto, afinal, os cronistas da Música Popular Brasileira todos sempre gostaram muito da Bossa Nova (exceto o Tinhorão) e a consideraram o grande salto de modernização. Isso está estabelecido de forma bastante definitiva já no Balanço da Bossa de Augusto de Campos, publicado em 1966 e republicado em 1976 com acréscimos, com o título Balanço da Bossa e outras bossas para poder incluir o Tropicalismo e estabelecer uma “linha evolutiva” entre João Gilberto e Caetano Veloso.
De todo modo, se Ruy Castro não pode se atribuir a descoberta da bossa com seu Chega de saudade, poderá se vangloriar de ter escrito o livro mais completo sobre o samba-canção, e de ter se debruçado sobre um período realmente menosprezado pela maioria dos escritores que trataram do tema da Música Popular Brasileira. Mesmo no ambiente acadêmico, onde temos a obrigação de questionar o senso comum e problematizar as visões históricas hegemônicas a partir de novos estudos e ampliação da documentação, pode-se dizer que continuamos a reboque dos cronistas que se aninharam a favor da periodização proposta por Ary Vasconcelos em seu Panorama da Música Popular Brasileira, de 1964, onde aparece a divisão da história da música brasileira em “fase heroica” (antes de 1927), “época de ouro” (entre 1927-45) e a “era moderna” (depois de 1958). A principal discordância com essa visão foi sempre a estabelecida por Tinhorão, que situa os tempos dourados bem mais cedo, entre 1870 e 1920, deixando tudo que vem depois na conta da deterioração da autenticidade pelo aburguesamento e pela influência estrangeira. Assim, podemos questionar essas leituras na academia, mas continuamos privilegiando a “época de ouro” e a MPB dos anos 1960 como objetos de pesquisa, e contribuímos para o vazio histórico que Ruy Castro resolveu colorir um pouco com seu livro.
A escrita parte do pressuposto, bastante lógico, por sinal, que a Bossa Nova não surgiu por geração espontânea, mas que se assentava sobre as bases da canção popular brasileira construída nos anos imediatamente anteriores. Justiça seja feita, não foi Ruy Castro que descobriu isso também. Autores acadêmicos já fizeram ótimos trabalhos sobre o período, leituras hoje indispensáveis. Para citar apenas os exemplos mais evidentes que me ocorrem, o livro Os cantores do rádio: A trajetória artística de Nora Ney e Jorge Goulart, escrito por Alcir Lenharo e publicado pela editora da UNICAMP já deu tratamento acadêmico e muito mais fundamentado a temas do período. Walter Garcia em seu Bim bom: A contradição sem conflitos de João Gilberto também já fez o trabalho musicológico de mostrar exatamente “de onde vem” a inovação do principal intérprete da Bossa Nova, estabelecendo as raízes harmônicas, rítmicas e interpretativas do trabalho dele na produção anterior de músicos como Garoto, João Donato ou Radamés Gnatalli. E também, a ligação com os anos 1950 já aparece bem demonstrada na dissertação de mestrado do meu colega Fabio Poletto, que estudou a produção de Tom Jobim antes da Bossa Nova.
Ruy Castro não é o primeiro a escrever sobre o período, nem o melhor autor a abordar as questões. Mas é certamente o que escreveu o panorama mais abrangente, ao tratar de uma grande quantidade de cantores, instrumentistas, cancionistas, cronistas da noite, donos de boate, e até políticos e grã-finos que circularam pelos lugares onde o samba-canção foi tocado. O livro fala pouco de música, é mais uma grande crônica da noite, uma contação de casos sobre as pessoas que fizeram os ambientes onde a música circulou.
A história começa com a chegada do Barão Stuckart, vindo de Viena depois da guerra e arranjando imediatamente um emprego que o coloca como principal responsável pelo sucesso da boate do Hotel Copacabana Palace. Em 1947 ele abriria o Vogue, que foi a principal casa noturna no Rio de Janeiro até ser destruído por um incêndio em 1955. E o livro termina contando a morte deste personagem chave em dezembro de 1965, desaparecido de cena no momento em que as boates deixaram de fazer sentido na vida carioca, e sua importância para a música foi suplantada pelos programas de televisão e casas de show como o Zicartola ou o Canecão. Ao final do livro, Ruy Castro fornece, além das tradicionais bibliografia e discografia, uma “cançãografia”, uma filmografia e até uma lista das boates cariocas por ano de criação. No período mais fecundo da noite carioca, os 12 anos entre 1948 e 1959, foram abertas um total de 74 boates. Todas elas tiveram música durante a noite inteira, fornecida por conjuntos instrumentais que acompanhavam cantores – cartazes que eram também grandes vendedores de disco e sucesso no rádio.
O livro de Ruy Castro se preocupa em dar os detalhes desta vida noturna nos seus tempos mais gloriosos no Rio de Janeiro. Quando as boates fechavam com o sol alto, eram frequentadas por ricos e influentes do Brasil e de várias partes do mundo, e gente como Jacinto de Thormes, Ibrahim Sued, Sérgio Porto, Antonio Maria e outros jornalistas faziam a crônica diária da vida nas boates para os jornais. Tudo podia ser assunto, principalmente as relações amorosas, bastante dinâmicas naquele ambiente. Ruy Castro se posiciona entre os cronistas, e dá pra suspeitar que ele construiu seu livro a partir dos textos de jornal da época (pesquisados em hemerotecas como ele conta na entrevista para o Roda Viva). Também somam-se a essa fonte os vários livros que ele indica na bibliografia (mas nunca cita no decorrer do livro) e os muitos depoimentos tomados, além é claro da convivência pessoal do autor com vários personagens relevantes, de quem ouviu muitas histórias. E aí não o culpo de não dar as referências, afinal, só se ele passasse a vida inteira anotando as coisas – quem falou e quando, para poder citar quando escrevesse o livro.
A história que Ruy Castro conta é muito importante por vários aspectos. Como ele mesmo destaca no livro, o samba-canção teve o mérito de marcar o início de um domínio da produção nacional no mercado de veiculação de música no Brasil. Com a força da liderança tecnológica e cultural dos Estados Unidos na produção e difusão de música por meios de massa (disco, rádio, cinema sonoro), sempre foi muito marcante a presença de música norte-americana no mercado brasileiro. Nenhum problema quanto a isso, mas a maior parte dos autores que trataram do tema da Música Popular Brasileira sempre o fizeram partindo do pressuposto que a presença de música estrangeira era um fator negativo, e que o brasileiro deveria produzir e ouvir música autóctone, de preferência sem influências externas, se é que isso é possível ou mesmo concebível. Ruy Castro tem o mérito de não cair nesse tipo de premissa, mas aponta corretamente em seu livro que foi a geração do samba-canção que estabeleceu um mercado nacional de canções. E como ele demonstra no livro, sem talvez prestar atenção, nem mesmo enfatizar este aspecto, estabeleceu-se uma importante cadeia produtiva que marcou as décadas de 1940 e 1950.
Nesse período a produção envolvia diversos profissionais altamente especializados, e o circuito da música popular não se fecharia sem que cada um desempenhasse o seu papel corretamente. Isso passava pelas boates, que mantinham o padrão elegante de convivência noturna, decoração e comida adequados, uísque de qualidade correta (e preço altamente impeditivo), atendimento profissionalíssimo. Eram as boates que lançavam a maioria dos cantores, que ao começarem a fazer sucesso como crooners acabavam conseguindo algum contrato na rádio (especialmente a Nacional, a Tupi ou a Mairink Veiga), e gravavam discos. As boates, o rádio e os discos (e ainda o cinema e mais tarde a televisão) realimentavam a cadeia de circulação da música. Era possível aos maiores cantores trabalhar de dia nos estúdios da rádio e das gravadoras e durante a noite nas boates. Mas os cantores (principalmente cantoras) precisavam ser abastecidos por compositores, ou cancionistas. Estes eram poetas e jornalistas que se consorciavam com músicos (principalmente pianistas, mas também violonistas e até os próprios cantores) para produzirem canções que eram quase sempre parcerias.
Sobre este importante trabalho dos cancionistas, Ruy Castro dá uma ótima descrição, às páginas 356-57:
Os compositores não tinham consciência de que estavam construindo uma “obra”. Ninguém diria então que esta ou aquela de suas músicas seria ouvida dali a cinquenta anos. Para muitos – e até pela irregularidade no pagamento dos direitos autorais – um novo samba ou samba-canção era garantia de, no máximo, uma boa ida à feira nas próximas semanas. Além disso, achavam fácil fazer o que faziam. Uma letra podia ser escrita no verso de um maço de Mistura Fina, encostado ao poste, enquanto se esperava o bonde – e a melodia vinha junto.
Quem aparecia mais, as grandes celebridades, eram os cantores e as cantoras. Muitas das divas do samba-canção ganhavam muito dinheiro como contratadas das boates e das rádios. As mais famosas viviam em mansões e colecionavam carros, jóias e vestidos.
É interessante também a opinião crítica de Ruy Castro. Como grande conhecedor do repertório e das histórias, ele não poderia se furtar e emitir suas opiniões sobre quem eram os melhores cantores e quais as melhores músicas – além das que seriam mais emblemáticas ou marcantes do gênero samba-canção. Assim ele traz uma curiosa visão histórica: o período áureo do samba-canção é circunscrito ao período de funcionamento das boates (1946-65), que teriam sido o espaço social por natureza do gênero, garantindo o estilo de vida que alimentava as canções. Mas como gênero musical o samba-canção já existia mesmo antes de ganhar tal nome, e perduraria até bem depois do fim do sistema de circulação que garantira seu funcionamento. Para Ruy Castro, o primeiro samba-canção foi “Linda flor” (ou “Ai, iô iô”), gravado por Araci Côrtes em 1928. E continuaram sendo produzidos sambas-canção até bem depois de 1965.
O estabelecimento do gênero também passa, para o autor, pela ligação com artistas importantes dos anos anteriores. O cantor Orlando Silva teria estabelecido no Brasil o estilo de Bing Crosby, cantando com microfone de forma intimista e não operística, tornando verossímeis os temas de canção de amor. O repertório do samba-canção também deveria muito ao trabalho de Ary Barroso, músico de sucesso importante desde final da década de 1930 e que foi personagem constante nas boates e no repertório do período analisado no livro. Ou à voz de Francisco Alves, grande cartaz do disco e do rádio desde os primórdios, e que ainda foi um dos importantes lançadores de samba-canção (a “cançãografia” ao final do livro traz vários sambas-canção importantes lançados na voz de Francisco Alves entre 1946 e 50). E até mesmo às composições de Noel Rosa, que foi resgatado por Aracy de Almeida em seu período como contratada da boate Vogue a partir de 1948.
De certa forma, o estabelecimento do samba-canção como gênero mainstream da música brasileira se deveu a particularidades e à situação econômica. No fim dos anos 1930 e começo dos anos 1940 a maior força eram cantores e cantoras estrangeiros: americanos, franceses, argentinos, que eram as principais atrações dos cassinos e, depois do fechamento destes, das primeiras boates. Primeiro por necessidade econômica, as boates começaram a contratar cantores brasileiros, mais baratos. Em 1948, logo após sua abertrua, o Vogue contratou Linda Batista e Aracy de Almeida que se revezavam como atrações. Deu tão certo que a contratação de cantores nacionais se tornou a regra, embora o repertório tivesse sempre se alternado nas boates entre música internacional e samba-canção.
Um lista dos cantores mais importantes apontados por Ruy Castro e tratados com atenção no livro: Aracy de Almeida, Linda Batista, Dalva de Oliveira, Lucio Alves, Dick Farney, Doris Monteiro, Elizeth Cardoso, Nora Ney, Angela Maria, Cauby Peixoto, Nelson Gonçalves, Sylvia Telles, além dos que eram também compositores (fato até então muito raro), como Dolores Duran, Maysa e Tito Madi. Na página 173 Ruy Castro dá a pista de quais eram as características marcantes do samba-canção já definidas no final da década de 1940: busca de “harmonias mais modernas”, um “jeito mais contido de cantar”, e uma “exigência relativa quanto às letras”. Este trecho é muito interessante porque a crônica da Bossa Nova (e o próprio Ruy Castro está entre os autores que contribuíram para esse mito) aponta essas características como inovações da Bossa Nova a partir de 1958 e de João Gilberto. Mas, surpresa, já eram características do samba-canção, segundo o autor descobre agora. As cantoras de samba-canção são definidas pelo autor com as seguintes características: não cantam baião, nem carnaval. E os compositores mais emblemáticos: Antonio Maria, Paulo Soledade, Fernando Lobo, Peterpan, Billy Blanco, Johnny Alf, Klecius e Armando, Valzinho.
Também são muito interessantes as listas de instrumentistas fornecidas pelo livro – a música instrumental brasileira é uma história ainda por ser escrita. Por exemplo, à página 246 tem uma lista dos músicos que tocavam nas noitadas organizadas por Jorginho Guinle à beira da piscina do Hotel Glória em 1954: Dick Farney, Johnny Alf, Fats Elpídio, Moacyr Peixoto e Ribamar (piano) e uma grande quantidade de músicos de vários instrumentos que inclue os clarinetistas Severino Araújo, Zaccarias e K-ximbinho, os acordeonistas Chiquinho e João Donato e os violonistas Garoto e Bola Sete.
Na página 263 tem uma lista dos pianistas de boate que inclue os veteranos José Maria de Abreu, Chuca-Chuca, Britinho, Pernambuco, Claude Austin, Fats Elpídio, Bené Nunes, Djalma Ferreira, Waldyr Calmon, Ribamar e Sacha Rubim, e os jovens Johnny Alf, Tom Jobim, Newton Mendonça, Sérgio Ricardo, Zé Maria, Walter Gonçalves, Antonio Guimarães, Paulinho, Carlinhos, Steve Bernard, Chaim Levak, Luizinho Eça, Luiz “Cabeleira” Reis, Ed Lincoln, Celso Murilo, João Roberto Kelly e João Donato (que trocava o acordeon pelo piano).
A essa incrível economia dos cantores e dos instrumentistas que trabalhavam na noite, se somava a força dos jornais: mais de 20 diários circulavam no Rio de Janeiro e quase todos tinham colunistas dedicados a acompanhar o que acontecia nas boates e publicar crônicas diárias. E a circulação se ampliava pela presença marcante do rádio. Em 1949 o Rio de Janeiro tinha 13 emissoras. A Rádio Nacional, maior do país, tinha 90 cantores contratados e 5 orquestras (de Radamés Gnatalli, Leo Peracchi, Lirio Panicalli, Ercole Vareto e Chiquinho do Acordeon). A estrutura era alimentada por uma indústria de programas de calouros, que recrutavam novos talentos adolescentes em cinemas, associações, clubes e circos, mas principalmente no rádio, cujos principais programas eram os de Ary Barroso na Tupi e Renato Murce na Rádio Nacional.
Essa economia altamente segmentada do samba-canção vai dando lugar a novas configurações que acabam por sepultar o gênero. A narrativa de Ruy Castro vai mostrando como o surgimento de novas formas de criar e veicular música vai acontecendo e substituindo as formas que marcaram o período áureo do samba-canção. Primeiro é o surgimento dos cantores compositores, especialmente Dolores Duran (que surge como compositora depois do sucesso avassalador como cantora, e que deixa várias canções para sucesso póstumo), Tito Madi e Maysa. A existência de cantores que gravam e/ou apresentam as próprias músicas, com ou sem parceiro, vai apontado para o estabelecimento de uma fatura artística mais autoral, que viria a ser a grande marca da chamada MPB. Parece bastante marcante também a indicação de Canção do amor demais, produzido por Vinícius de Moraes e Tom Jobim e gravado por Elizeth Cardoso em 1958 como o primeiro LP autoral da música brasileira. Embora alguém possa discordar, e apontar para álbuns anteriores como Sinfonia do Rio de Janeiro (de Tom Jobim e Billy Blanco).
Fiel aos princípios de sua narrativa, Ruy Castro só se dá mesmo por vencido quando as boates terminam de desaparecer e morre o homem que deu forma à noite carioca nos seus tempos áureos: Stuckart. Embora já estivesse superado esteticamente pela Bossa Nova desde 1958, e emparedado pela Canção Engajada a partir de 1962, o Samba-Canção teria durado até 1965. Após este período teria deixado de ser o maistream da música brasileira, mas continuaria sendo produzido embora nem sempre identificado como tal.
A narrativa de Ruy Castro traz esse notável saudosismo dos tempos em que o Rio de Janeiro era a capital da música brasileira, quando uma elite financeira, política e cultural estabeleceu as bases de uma sociabilidade e de um consumo elegante de canções, que nas décadas seguintes dominaria a circulação pela indústria fonográfica e pela televisão, substituindo o consumo intimista de música ao vivo nas boates que nunca fechavam.
O livro, enfim, é uma grande retratação. Descobrimos agora que, ao contrário do que Ruy Castro sugeria em seu livro Chega de saudade, somando-se à interpretação de vários outros autores antes dele, a música popular brasileira moderna não começa com João Gilberto em 1958. Ela já estava lá há mais tempo e tinha estabelecido raízes profundas com o samba-canção. Que foi muito mais do que uma música exagerada e cafona, um samba abolerado e de mau gosto.
André Egg
Professor da UNESPAR, professor colaborador no PPGHIS-UFPR, colaborador da Gazeta do Povo. Um dos organizadores do livro Arte e política no Brasil: modernidades (Perspectiva, 2014).