Resenha do novo romance de Maria Valéria Rezende.
Maria, educadora, retorna após várias décadas a Olho d’Água, cidade mítica localizada no sertão nordestino, em uma longa viagem de ônibus à noite, em que recorda tempo em que foi pela primeira vez a este povoado com a missão de educar os homens e mulheres que viviam isolados geográfica, política e educacionalmente durante a década de 1960. Na viagem, a angústia do desconhecido de outrora dá lugar à ansiedade em saber das transformações daquele lugar remoto.
Enquanto esperava a verba e os materiais prometidos pelo vereador que a enviou para aquela cidade, Maria precisou se adaptar e se integrar com os habitantes. Assim, passa a trabalhar no tingimento de fios para confecção de redes, a única atividade desenvolvida no local, já que a pecuária está impossibilitada pela ausência de chuvas. Mexe sem parar o fio e a tinta borbulhante, retirando com longas varas as meadas coloridas, fumegantes, pondo-as a secar sobre uma sucessão de cavaletes rústicos, depois desenlear o fio, já seco, e enrolá-lo em grandes bolas para após urdir os liços, entremeando as cores em longas listras, constituindo-se num verdadeiro trabalho masculino.
Demoram os materiais didáticos e, consequentemente, seu salário prometidos pelos políticos locais. Quando finalmente esse dia chega, Maria vê à frente mais desafios: o lugar é inadequado para montar uma sala de aula e como fará a alfabetização de jovens e adultos encontra mais resistência ainda, já que para aquelas rudes pessoas estudar era desculpa para não trabalhar e a esperança era a educação das crianças.
Apoiada por Fátima, mulher sábia que a acolheu já na sua chegada, Maria passa a dar aulas clandestinamente no período da manhã para as crianças e à noite para os adultos. A professora, diante da dura realidade sertaneja, precisa buscar formas de trabalhar a resignação e a aceitação daquelas pessoas frente à sua triste realidade ancoradas na aceitação religiosa de que “Deus quis assim”, adequando-se a um estado “natural” e, portanto, imodificável.
Numa espécie de troca, assim como Maria levou a educação, a possibilidade de mudança para aquela gente, aquele povo trouxe a sabedoria popular, a resistência sertaneja à menina idealista que partiu com o intuito de ensinar as letras e mostrar outros caminhos.
No livro de Maria Valéria Rezende, as memórias correm soltas. Maria (a autora-personagem) entrelaça as histórias e relembra pouco a pouco um e outro sertanejo que, assim como ela nesse momento, na morrente viagem de retorno, direcionam-se ao nordeste depois de passar temporadas sofridas e tentativas de melhorias de vida em São Paulo ou no Rio de Janeiro.
O regresso a Olho d’Água traz o desejo de calmaria e sossego que quarenta anos depois a professora não encontrou no sudeste do país, mas esse tempo de informática e transformação, para tristeza de Maria, parece ter também chegado àquela região de outrora.
A escrita da autora, de fato, é bonita, sutil e poética. Enxerga e descreve a beleza em coisas insuspeitas, como no ato do tingimento dos fios acima. Essa pintura descritiva se traduz na esperança da transformação social vivida pela personagem, que tem cunho autobiográfico e se entrelaça com o período que a autora, freira, trabalhou com educação social durante o período da ditadura militar. Período da história que também trata sutilmente, sem muitos aprofundamentos, usando-o, basicamente, como pano-de-fundo, um cenário acobertado por sombras reinantes, mesmo assim denunciando os horrores e a impossibilidade de melhoria de vida da população carente durante a época. A bem da verdade, a educação em nossa “pátria educadora”, na atualidade, não teve maiores evoluções em tais orbes. O próprio trabalho evidencia que, fora a cultura estrangeira de massas, consubstanciada na gastronomia, palavras soltas em inglês e numa certa familiarização com a tecnologia no uso de computadores, parco foi o conhecimento educacional adquirido.
Apesar das boas e receptivas críticas que o livro vem recebendo, pelas características que foram aqui também salientadas, o leitor deve ter em conta que demandará páginas e páginas sem grandes ações, dentro de uma viagem terrestre sacolejante e desconfortável, numa única noite que, se não levantar o peso dos cílios, correrá o risco de dormir pela metade (ou antes) do caminho. Diferente do seu livro anterior (Quarenta dias), em Outros cantos a ideia que fica é de que não vemos nada de novo na literatura contemporânea produzida pela autora (não que isso fosse procurado deliberadamente – era somente uma expectativa advinda do trabalho anterior), e ainda fica a impressão de ter passado nos olhos descrições de cenas de uma novela antiga do horário das seis ou uma que reprisa no Vale a Pena Ver de Novo. Mais um romance tratando da ditadura. Mais um romance em tom intimista-autobiográfico. Mais um romance de uma ganhadora do Jabuti usando (não ela, claro, mas a editora) o prêmio como chamariz na capa. Ao fim da viagem, chega-se alquebrado. Se puder escolher, a menos que apeteçam Proust e Joyce naquilo que lhes caracterizou, não entre no ônibus.
Andrei Ribas
Autor, mais recentemente, de Animais loucos, suspeitos ou lascivos e Cada amanhecer me dá um soco. Vive em Santa Rosa-RS.
Obrigada pela resenha, Andrei, e ainda bem que meu livro tem essa capacidade de induzir-lo ao sono com poucas páginas de leitura… rsrsrs … bem mais saudável como sonífero do que comprimidos tranquilizantes! Bem que meu pai sempre me dizia que todo livro vale a pena ler, nem que seja pra se saber como NÃO escrever! Valeu!
És uma grande escritora, Maria. E como toda grande escritora (e artistas, no geral, como, por exemplo, Woody Allen), fica-se sujeito a nem sempre acertar (ou nem sempre acertar para este ou aquele receptor do trabalho). O bom é sempre continuar, independentemente disso.
És uma grande escritora, Maria. E como toda grande escritora (e
artistas, no geral, como, por exemplo, Woody Allen), fica-se sujeita a
nem sempre acertar (ou nem sempre acertar para este ou aquele receptor
do trabalho). O bom é sempre continuar, independentemente disso.
Ainda bem, né, Andrei, pois como disse o Nelson Rodrigues (cuja literatura, aliás, nunca acertou comigo… rsrsrs) , “toda unanimidade é burra”… sempre que só elogiam meus livros fico desconfiada de que seja por uma certa condescendência pra com a freirinha velha, “tão boa pessoa”, rsrs Quanto a continuar, vamos ver se dá, pois já estou bem fora da garantia! Abç
PS: ri demais com o “Vale a pena ver de novo”!
Obrigado por ser um digno exemplo de espírito tolerante e democrático, o qual que se extraviou na nossa atualidade brasileira, Maria (podemos até chamar o que vivemos no Brasil de hoje de DEMOScracia, em que o respeito a opiniões diversas é apenas discurso revestindo ódios recalcados). Pena não termos mais pessoas lúcidas, inteligentes e respeitosas como você por aí.
Grande abraço.