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Resenha do novo romance de Maria Valéria Rezende.

"Outros cantos", de Maria Valéria Rezende (Alfaguara, 2016, 152 páginas)

“Outros cantos”, de Maria Valéria Rezende (Alfaguara, 2016, 152 páginas)

Maria, educadora, retorna após várias décadas a Olho d’Água, cidade mítica localizada no sertão nordestino, em uma longa viagem de ônibus à noite, em que recorda tempo em que foi pela primeira vez a este povoado com a missão de educar os homens e mulheres que viviam isolados geográfica, política e educacionalmente durante a década de 1960. Na viagem, a angústia do desconhecido de outrora dá lugar à ansiedade em saber das transformações daquele lugar remoto.

Enquanto esperava a verba e os materiais prometidos pelo vereador que a enviou para aquela cidade, Maria precisou se adaptar e se integrar com os habitantes. Assim, passa a trabalhar no tingimento de fios para confecção de redes, a única atividade desenvolvida no local, já que a pecuária está impossibilitada pela ausência de chuvas. Mexe sem parar o fio e a tinta borbulhante, retirando com longas varas as meadas coloridas, fumegantes, pondo-as a secar sobre uma sucessão de cavaletes rústicos, depois desenlear o fio, já seco, e enrolá-lo em grandes bolas para após urdir os liços, entremeando as cores em longas listras, constituindo-se num verdadeiro trabalho masculino.

Demoram os materiais didáticos e, consequentemente, seu salário prometidos pelos políticos locais. Quando finalmente esse dia chega, Maria vê à frente mais desafios: o lugar é inadequado para montar uma sala de aula e como fará a alfabetização de jovens e adultos encontra mais resistência ainda, já que para aquelas rudes pessoas estudar era desculpa para não trabalhar e a esperança era a educação das crianças.

Apoiada por Fátima, mulher sábia que a acolheu já na sua chegada, Maria passa a dar aulas clandestinamente no período da manhã para as crianças e à noite para os adultos. A professora, diante da dura realidade sertaneja, precisa buscar formas de trabalhar a resignação e a aceitação daquelas pessoas frente à sua triste realidade ancoradas na aceitação religiosa de que “Deus quis assim”, adequando-se a um estado “natural” e, portanto, imodificável.

Numa espécie de troca, assim como Maria levou a educação, a possibilidade de mudança para aquela gente, aquele povo trouxe a sabedoria popular, a resistência sertaneja à menina idealista que partiu com o intuito de ensinar as letras e mostrar outros caminhos.

No livro de Maria Valéria Rezende, as memórias correm soltas. Maria (a autora-personagem) entrelaça as histórias e relembra pouco a pouco um e outro sertanejo que, assim como ela nesse momento, na morrente viagem de retorno, direcionam-se ao nordeste depois de passar temporadas sofridas e tentativas de melhorias de vida em São Paulo ou no Rio de Janeiro.

O regresso a Olho d’Água traz o desejo de calmaria e sossego que quarenta anos depois a professora não encontrou no sudeste do país, mas esse tempo de informática e transformação, para tristeza de Maria, parece ter também chegado àquela região de outrora.

A escrita da autora, de fato, é bonita, sutil e poética. Enxerga e descreve a beleza em coisas insuspeitas, como no ato do tingimento dos fios acima. Essa pintura descritiva se traduz na esperança da transformação social vivida pela personagem, que tem cunho autobiográfico e se entrelaça com o período que a autora, freira, trabalhou com educação social durante o período da ditadura militar. Período da história que também trata sutilmente, sem muitos aprofundamentos, usando-o, basicamente, como pano-de-fundo, um cenário acobertado por sombras reinantes, mesmo assim denunciando os horrores e a impossibilidade de melhoria de vida da população carente durante a época. A bem da verdade, a educação em nossa “pátria educadora”, na atualidade, não teve maiores evoluções em tais orbes. O próprio trabalho evidencia que, fora a cultura estrangeira de massas, consubstanciada na gastronomia, palavras soltas em inglês e numa certa familiarização com a tecnologia no uso de computadores, parco foi o conhecimento educacional adquirido.

Apesar das boas e receptivas críticas que o livro vem recebendo, pelas características que foram aqui também salientadas, o leitor deve ter em conta que demandará páginas e páginas sem grandes ações, dentro de uma viagem terrestre sacolejante e desconfortável, numa única noite que, se não levantar o peso dos cílios, correrá o risco de dormir pela metade (ou antes) do caminho. Diferente do seu livro anterior (Quarenta dias), em Outros cantos a ideia que fica é de que não vemos nada de novo na literatura contemporânea produzida pela autora (não que isso fosse procurado deliberadamente – era somente uma expectativa advinda do trabalho anterior), e ainda fica a impressão de ter passado nos olhos descrições de cenas de uma novela antiga do horário das seis ou uma que reprisa no Vale a Pena Ver de Novo. Mais um romance tratando da ditadura. Mais um romance em tom intimista-autobiográfico. Mais um romance de uma ganhadora do Jabuti usando (não ela, claro, mas a editora) o prêmio como chamariz na capa. Ao fim da viagem, chega-se alquebrado. Se puder escolher, a menos que apeteçam Proust e Joyce naquilo que lhes caracterizou, não entre no ônibus.

Andrei Ribas

Autor, mais recentemente, de Animais loucos, suspeitos ou lascivos e Cada amanhecer me dá um soco. Vive em Santa Rosa-RS.

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Maria Valéria Rezende
Maria Valéria Rezende

Obrigada pela resenha, Andrei, e ainda bem que meu livro tem essa capacidade de induzir-lo ao sono com poucas páginas de leitura… rsrsrs … bem mais saudável como sonífero do que comprimidos tranquilizantes! Bem que meu pai sempre me dizia que todo livro vale a pena ler, nem que seja pra se saber como NÃO escrever! Valeu!

Andrei Ribas
Andrei Ribas

És uma grande escritora, Maria. E como toda grande escritora (e artistas, no geral, como, por exemplo, Woody Allen), fica-se sujeito a nem sempre acertar (ou nem sempre acertar para este ou aquele receptor do trabalho). O bom é sempre continuar, independentemente disso.

Andrei Ribas
Andrei Ribas

És uma grande escritora, Maria. E como toda grande escritora (e
artistas, no geral, como, por exemplo, Woody Allen), fica-se sujeita a
nem sempre acertar (ou nem sempre acertar para este ou aquele receptor
do trabalho). O bom é sempre continuar, independentemente disso.

Maria Valéria Rezende
Maria Valéria Rezende

Ainda bem, né, Andrei, pois como disse o Nelson Rodrigues (cuja literatura, aliás, nunca acertou comigo… rsrsrs) , “toda unanimidade é burra”… sempre que só elogiam meus livros fico desconfiada de que seja por uma certa condescendência pra com a freirinha velha, “tão boa pessoa”, rsrs Quanto a continuar, vamos ver se dá, pois já estou bem fora da garantia! Abç

Maria Valéria Rezende
Maria Valéria Rezende

PS: ri demais com o “Vale a pena ver de novo”!

Andrei Ribas
Andrei Ribas

Obrigado por ser um digno exemplo de espírito tolerante e democrático, o qual que se extraviou na nossa atualidade brasileira, Maria (podemos até chamar o que vivemos no Brasil de hoje de DEMOScracia, em que o respeito a opiniões diversas é apenas discurso revestindo ódios recalcados). Pena não termos mais pessoas lúcidas, inteligentes e respeitosas como você por aí.
Grande abraço.

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