Seja na direita ou na esquerda, existe uma incompreensão fundamental do lugar da imprensa em uma democracia.
Faz aí uns 25 anos, sofri meu primeiro (e até agora único) boicote como jornalista: era, na época, um dos editores responsáveis por um jornal no interior do Estado de São Paulo e a prefeitura local decidiu que não atenderia mais à nossa reportagem. Se bem me lembro, a causa foi o fato de termos então um editorialista que era especialmente impiedoso no exame de alguns atos que revelavam a abissal incompetência da administração.
Fizemos uma bela gritaria contra a arbitrariedade, mas não conseguimos sequer o apoio dos colegas de outros veículos, que preferiram encarar a situação com o cinismo de quem vê o moleque metido que quebra as “regras do jogo” receber o devido castigo.
A lembrança desse evento, perdido nas neblinas do tempo, veio à tona diante da notícia de que Donald Trump decidiu vetar a presença de alguns órgãos de imprensa, como The New York Times e CNN, em entrevistas coletivas da Casa Branca. A memória já havia sido tocada, no entanto, meses atrás, quando alguns professores de universidades públicas resolveram se negar a conceder entrevistas a membros da soi-disant “imprensa golpista”. Separadas por décadas, quilômetros e ideologias, todas essas ocasiões revelam uma incompreensão fundamental do lugar da imprensa no intricado maquinário da democracia.
E qual é esse lugar? Ela é a engrenagem, a caixa de transmissão entre as fontes – “fonte” é jargão jornalístico para qualquer pessoa ou organização que forneça informações para publicação – e o público. A fonte que decide boicotar um veículo de comunicação não boicota o veículo: boicota seus leitores. Desrespeitar um órgão de imprensa é, no fim, desrespeitar as pessoas que investem tempo e dinheiro para lê-lo ou assisti-lo.
Quem se recusa a falar com o repórter de um jornal se recusa a falar com os leitores desse jornal: leitores que, imagina-se, pagam impostos, votam e talvez até discordem de alguns pontos da linha ideológica do veículo. Há toda uma doutrina, um tanto quanto controversa, que trata do “mandato da imprensa” – a ideia de que, ao comprar um jornal (ou sintonizar um canal de TV) o cidadão delega ao veículo seu direito democrático de fiscalizar o exercício do poder e a atuação dos agentes públicos.
Mas nem é precioso invocar essa ideia do “mandato” para construir um caso contra o boicote por fontes: basta lembrar que, por trás do repórter, há leitores que não têm nada a ver com a antipatia pessoal da fonte pelo veículo.
Cidadãos privados têm, é claro, todo o direito de mandar o público às favas. Mas quando funcionários públicos resolvem fazer isso a questão torna-se um pouco menos clara – e menos clara, ainda, quando as questões do jornalista têm a ver com a função pública desempenhada pelo funcionário.
No caso dos professores universitários que decidiram boicotar os “golpistas”, um deles havia sido procurado para dar uma opinião, e nesse caso é razoável supor que o princípio da privacidade se sobreponha ao eventual interesse público no que ele teria a dizer. Mas o outro havia sido procurado para falar sobre seu trabalho de pesquisa científica – isto é, em sua capacidade formal de pesquisador e usuário de recursos públicos.
Ao boicotar o veículo, boicotou o público que poderia se interessar por seu trabalho – que sustenta esse trabalho, e que tem o direito democrático de conhecê-lo. Quanto à empresa “golpista” que se pretendia punir, não creio que deixar de noticiar os resultados de um laboratório de uma universidade pública tenha afetado sua audiência de modo significativo.
Nos Estados Unidos, já há decisões judiciais que contestam o direito de agentes públicos de negar ou revogar credenciais de imprensa por razões arbitrárias, mas que reconhecem o direito dos funcionários de selecionar jornalistas ou veículos na hora de prestar declarações ou repassar informações que “não sejam públicas”.
Trata-se de um equilíbrio delicado entre a relação de confiança fonte-jornalista e o interesse público em geral, mas que não se confunde com o boicote puro e simples: uma coisa é um funcionário escolher para qual jornal vai vazar a informação, mantida em segredo por seus superiores, de que a água da cidade está contaminada; outra, bem diferente, é se recusar a divulgar, para um jornal específico, uma lista de postos de vacinação.
Trump poderá se ver em conflito com a Justiça americana. Decisão da Corte de Apelações do Distrito de Columbia, de 1977, pondera que “não são apenas os jornalistas e as publicações para as quais escrevem, mas também o grande público quem tem um interesse protegido pela Primeira Emenda, de que a apuração de notícias não seja mais difícil do que o necessário, e de que jornalistas individuais não sejam arbitrariamente excluídos de fontes de informação”.
Meu ponto, no entanto, é menos legal do que ético – ou filosófico, se preferirem: o de que é imoral, antidemocrático e contraproducente que uma fonte, de posse de informação de interesse público ou investida de responsabilidade pública, boicote, por razões arbitrárias ou ideológicas, um jornalista ou órgão de imprensa que busque essa informação ou que cobre esclarecimentos sobre essa responsabilidade.
Espero que ninguém pressuponha que este artigo parte de uma visão rósea ou idealizada da imprensa. Há canalhas com credencial de jornalista, há veículos que servem a interesses escusos enquanto fingem servir ao leitor. Há companhias mais do que dispostas em liquidar décadas de credibilidade duramente construída em troca de uns dois tostões aqui e agora. Mas o único boicote capaz de consertar isso – o único realmente legítimo – é o da outra ponta: o do leitor. Melhor do que não falar com um jornal é simplesmente não anunciar nele, e nem comprá-lo.
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.