Previdência Social e leis "trabalhistas" são alguns dos frutos de uma mentalidade que trava o Brasil.
1.
Em 2016, pleno ano de forte recessão, com um acumulado de queda no produto nacional per capita acima de 10% em apenas dois anos, a Dr. Consulta teve forte crescimento. Projetando atingir 30 unidades (de 12 no início do ano), boa parte delas em áreas periféricas, a rede de clínicas populares foi fundada em 2010 na favela de Heliópolis por empreendedores locais. O modelo da empresa é diferente de qualquer seguradora de saúde do país, oferecendo exames e cirurgias tópicas a preços baixos, com custo medido por demanda individual.
O sucesso é explicado pelo seu enorme apelo em classes de renda mais baixa, que sofrem com demoras mortíferas na rede pública de saúde, da qual dependem não raro exclusivamente, dado o custo alto de seguros e o baixo nível de renda disponível, após a alta mordida de impostos – que, por sua vez, financiam o ineficaz SUS. Na Dr. Consulta, ao invés de depender de datas específicas num futuro distante, os pacientes podem modelar o atendimento de acordo com suas necessidades. Na Índia, onde não há sistema universal de saúde, pululam clínicas do tipo, a um custo que chega a US$ 1 por exame, e elas viraram modelo de exportação para países de baixa e média renda.
No Brasil, no entanto, a dificuldade é maior. Leis inviabilizam a oferta de serviços a preços baixos, a rigidez corporativa e a alta carga tributária encarece muito os custos, e, além disso, há forte preconceito dos meios intelectuais a qualquer oferta de serviço fora da seara pública. Em reportagens dos jornais Folha de S. Paulo e O Globo – entre outros – foram citados especialistas contrários a planos populares de saúde, num tom que assinala a incapacidade do consumidor de escolher por si próprio.
Na desregulamentação dos planos, hoje caros e inviáveis às classes D e E por uma série de exigências mínimas de atendimento, os críticos veem uma potencial exploração das pessoas mais carentes. Eles as enxergam como ignorantes completas, como declarou a presidente da Proteste, Maria Inês Dolci: “Não adianta oferecer planos baratos, criando uma falsa expectativa de atendimento no consumidor, se posteriormente o custo do plano se tornará oneroso em razão de reajustes ou de mecanismo de regulação financeira de caráter restritivo”. A visão é claramente essa: o brasileiro não consegue ler contratos, entender o que está comprando ou pelo que está pagando, e, portanto, sempre deve pagar mais, ou se submeter ao padrão público. Planos privados são só para os que podem pagar os custos da legislação proibitiva. Os pobres ignorantes que se contentem com o que lhes cabe.
No fim das contas, a síndrome da tutela, que impera no Brasil, é um misto tóxico de corporativismo com paternalismo. Teóricos das ditas elites pensantes do país discorrem sobre os perigos da liberdade para o suposto bem estar da população – afinal, esta não sabe se comportar quando lhe dada a escolha, precisando ser tolhida na autonomia. Enquanto isso, conglomerados empresariais e sindicais, em conluio com a classe política dominante, aproveitam-se do chorume ideológico para criar oligopólios e monopólios artificiais, ao passo em que se regula e se fecha a concorrência – para “o bem do povo”.
Isto resulta em má alocação de recursos, com o país gastando muito em atividades onde é pouco produtivo – cuja baixa produtividade, não raro, é explicada pelo protecionismo que aqui é regra. Ao afastar a concorrência, gera-se um círculo vicioso, que retira os incentivos para melhoras em processos ou mesmo substituição de empresários menos eficientes por outros mais eficientes. Não é de admirar que pagamos tão caro por produtos aqui dentro do país, e que nossas indústrias pouco consigam exportar (mesmo com a depreciação violenta do real desde a debacle de Dilma Rousseff).
Esse estado de coisas também evidencia, em muito, a fraqueza das instituições brasileiras. Como explicam muitos trabalhos de pesquisa desenvolvidos ao longo das últimas décadas, quando os poderes de um país se organizam para extrair, e não para incluir e distribuir, se diminui o crescimento potencial, a geração de oportunidades e, em última leitura, a ascensão social de toda a população. O processo se retroalimenta, já que, na visão da intelligentsia brasileira, o pobre é vulnerável e estúpido demais para sequer almejar verdadeira ascendência – no máximo uma geladeira parcelada com subsídios do governo, ou casas pré-moldadas na periferia dadas pelo salvador mágico do momento.
E a síndrome que nos acomete é perniciosa, pois se vende como solução – mesmo dificultando enormemente a vida do indivíduo, reduzindo a possibilidade de escolhas e levando a maior concentração, tanto de ofertantes como de demandantes. Está embutido, nos discursos que defendem as medidas paternalistas como protetoras, a toxicidade de elites intelectuais com visão torta e elitista da sociedade (alguns inteligentes, que sabem o que é bom para todos, e as massas incapazes e ignorantes), que dão sustentação moral e teórica para os tradicionais parasitas do estado (rent-seekers), que dele se apoderam para proveito próprio.
2.
E a história vem de longe: ganhando corpo sob o populismo de Getúlio Vargas e se intensificando sob outra ditadura, a militar, o governo brasileiro instituiu uma série de mecanismos de concentração de poder e recursos em um grande e inchado estado. A justificativa era sempre de que os comandantes sabiam melhor.
Isto incluiu poupança forçada, sob a justificativa de financiar melhorias para a própria população. Obrigatoriedade que residia no diagnóstico de que a população não conseguiria – nem iria – poupar por conta própria. Hoje, o sistema chega a abocanhar até 60% da renda de parte inferior da pirâmide.
O FGTS é um desses grandes símbolos. Originado em fins da década de 60, funciona como cobrança obrigatória nos salários, e foi constituído a partir do diagnóstico de que, mesmo com a melhora da renda, o brasileiro dificilmente iria poupar – logo, deveria ser forçado a fazê-lo. Ao mesmo tempo, porém, foi propagandeado como direito trabalhista, pelo fato do empregado receber o valor em momento de demissão – sem se explicitar, porém, que trata-se de um dinheiro que, se não fosse retido pelo governo, poderia ser adicionado nos salários todos os meses.
Por décadas (e até os dias atuais), o Fundo Garantidor serviu para subsidiar empresas ineficientes e projetos de baixo retorno, dentre eles as malfadadas obras de refinaria da Petrobras em Pernambuco e no Maranhão – que já consumiram mais de R$ 55 bilhões (apesar de estimativa inicial inferior a R$ 8 bi), mesmo com a primeira ainda incompleta e a segunda sequer tendo começado as obras. Já os empregados, esses não podem utilizar seu dinheiro até que seja demitido. O FGTS rendeu, em média, cerca de 3% ao ano nos últimos sete anos, segundo dados da Caixa Econômica – muito abaixo da inflação, portanto. A poupança, enquanto isso, rendeu 6,5%, e a taxa básica de juros ficou em 11% ao ano (chegando a 14,25%).
3.
Outro caso que ilustra perfeitamente o quão profunda é a tutela no estado brasileiro é nosso sistema de previdência. Concebido sob o conceito de “solidário” – ou seja, empregados ativos sustentariam pensionistas –, a ideia implícita aqui é que nossa população, por mais riqueza que gere, dificilmente iria poupar para a velhice. Instituído na década de 1940, sob Getúlio, o INSS se tornou uma profecia autorrealizável de sua justificativa – já que serviu como desincentivo à poupança espontânea da população, no período crítico de constituição da classe média do país.
Além de sua inviabilidade do ponto de vista fiscal – o que exige que hoje se aplique uma reforma para mitigar seus já enormes estragos –, o regime criou uma expectativa nefasta, fazendo com que boa parte dos brasileiros sequer pense em poupar para o longo prazo, na certeza de que o governo tudo lhes proverá. Reside aí, e em inúmeros outros instrumentos de tutela estatal, um dos motivos centrais para a baixíssima taxa de poupança no país. Para se ter noção, hoje este número gira em torno de 14%, enquanto em países asiáticos, onde tais benesses são mais escassas, as taxas giram entre 35 e 50%, de acordo com o Banco Mundial.
A previdência tem ainda caráter extremamente injusto, já que sua natureza de partilha força todos os trabalhadores formais do país a sustentarem as pensões. Se 67% delas são salários mínimos, uma minoria mais rica recebe o teto do INSS ou mais e se aposenta ao redor dos 50 anos, vivendo às custas dos outros trabalhadores por algo entre 30 e 40 anos. Uma enorme injustiça, é paga sob as esperanças falsas vendidas por uma nefasta propaganda das corporações mais beneficiadas. Enquanto nada se faz, os pagamentos de pensão do sistema público hoje equivalem a metade dos gastos do governo federal, de acordo com dados do Banco Central. Em 2016, representaram mais de 12% do PIB, incluindo servidores públicos e privados na conta, e devem chegar a 20% do PIB até 2024. É um quarto da riqueza nacional transferida para inativos, em um dos mais tristes monumentos da tutela.
Ao mesmo tempo, a intromissão tutelar do governo na poupança gerou distorções de impacto incalculável. O famoso crédito subsidiado do país – que alcançou auspiciosos 60% de tudo que o país emprestou, sob Dilma Rousseff – distorceu a tal ponto os empréstimos livres que impossibilitou a criação de um mercado de financiamento para o longo prazo, que não passasse por bancos públicos. Estudos do Insper e do Ibre/FGV indicam que outros países do tamanho e perfil socioeconômico similares aos do Brasil conseguiram tal financiamento de longo prazo, em especial para a infraestrutura.
Os subsídios, além de tudo, foram muitas vezes utilizados como instrumento de barganha política, servindo para corrupção. Mas, sendo ou não essa a motivação, é absolutamente injustificável que um país de renda ainda baixa como o Brasil sustente grandes empresas (destinatárias de quase 80% dos empréstimos do BNDES entre 2008 e 2015, segundo o próprio).
4.
Diversos julgamentos dos tribunais brasileiros, em especial na seara trabalhista, ilustram de forma cristalina a mania brasileira de tutela. São mais de 9 milhões de processos inflando o Tribunal Superior do Trabalho (TST), numa bola de neve alimentada por um cipoal de intermináveis e desencontradas regras, cujo maior prejuízo cai na conta do trabalhador – que arca com maiores custos em cima do salário, menor geração de oportunidades (em um país menos dinâmico) e menor possibilidade de acordos individuais, com base em mérito e produtividade, em benefício de acordos espúrios e na força da lei.
O viés favorável ao trabalhador no TST não beneficia o todo dos trabalhadores, por mais contraditório que isto possa parecer. Beneficia apenas alguns trabalhadores que conseguem chegar ao fim dos intermináveis processos, em detrimento de toda a sociedade, que perde em um contexto mais difícil, com menos emprego e menor renda líquida. Juízes do TST defendem com unhas e dentes nosso código de leis, datado dos anos 40 e de inspiração fascista, até porque são os que mais ganham na indústria de processos que aqui impera.
É surpreendente (ou não) o profundo desconhecimento, por parte desses senhores, de conceitos básicos de economia. Na liminar expedida recentemente pelo TJ-SP, contrária à desregulamentação do setor aéreo (que incluía a previsão de cobrança por malas expedidas, como ocorre em todo o mundo), o juiz José Henrique Prescendo justifica: “(…) Considerar a bagagem despachada como um contrato de transporte acessório implica obrigar o consumidor a contratar esse transporte com a mesma empresa que lhe vendeu a passagem, caracterizando a prática abusiva de venda casada vedada pelo CDC”. Na verdade, venda casada é o que acontece hoje, com todos os passageiros obrigados, no momento da passagem, a comprar também franquia para bagagem – uma vez que expedir malas tem mesmo um custo, ocupando espaço, demandando gasolina e manejo de profissionais no aeroporto.
Os casos poderiam ser citados até a exaustão. Há muitos, e os problemas se acumulam numa sociedade cada vez mais passiva, que tem sua autonomia reduzida a cada nova decisão de tribunal acerca do que se pode ou se deve fazer, ou a cada nova lei do Congresso tentando resolver problemas complexos por meio de canetadas simples – muitas vezes com más-intenções, conforme nosso passado de corrupção atesta.
O resultado é uma população que passa a depender (e esperar) cada vez mais de um estado provedor. O pior é que, quanto mais demanda do estado, menos eficiente este fica em atender suas expectativas. A elefantíase da burocracia cada vez mais dificulta a busca dos cidadãos por caminhos mais efetivos para atender seus anseios e sanar seus problemas – como os planos de saúde populares citados no início deste artigo, que atenderiam milhões de brasileiros hoje exclusivamente dependentes do ineficaz SUS.
Um extremo dessa mentalidade são as sociedades socialistas, que, sem exceção, acabam entrando em decadência total, com o colapso do sistema produtivo e a desagregação da sociedade, já que preocupações de subsistência e de preencher as demandas da burocracia substituíram os mecanismos naturais de cooperação e competição. Um aperitivo dessa mentalidade é a baixa produtividade brasileira, a paralisia econômica da última década e a polarização intensa que marcaram nossa história recente.
Luiz Eduardo Peixoto
Graduando em economia na FEA-USP.