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Deve ser possível estar com quem discorda de nós

por Rodrigo Cássio (13/03/2017)

Ao apagar a foto com Sérgio Moro, Leandro Karnal apagou também a sua imagem de democrata.

Leandro Karnal apagou a sua foto com Sérgio Moro, no Facebook, depois de ser punido por seus admiradores de esquerda, para quem o juiz da Operação Lava Jato só pode ser visto como um fatal inimigo. Essa notícia parece apenas mais uma bobagem da internet, mas é um tema realmente importante para pensar a democracia no contexto das interações em redes sociais.

Permitam-me abordar esse assunto, aqui, adotando um tom mais pessoal. Há alguns anos deixei de me importar com a opinião que a esquerda tem sobre o que penso, o que digo e com quem ando. Essas opiniões só me importaram, de fato, até a época em que estive preparando a defesa do meu doutorado, em 2014. Além de acreditar, até então, na necessidade de posicionar-me à esquerda, eu também tinha razões práticas inconfessáveis: no meio acadêmico, o rompimento com certas ideias políticas significa fechar portas, passar a ser ignorado e tornar-se alvo de uma dissimulada difamação.

Meu “desligamento” da esquerda coincidiu com o segundo governo de Dilma e a organização em massa do mundo acadêmico para defender um projeto político que estava arruinando a economia do país. Foi nesse momento que me decepcionei com professores que até então eu via como mestres, e reconduzi meus interesses de pesquisa para novos rumos, bem mais interessantes e profícuos. Não que eu queira mal a esses ex-professores. Simplesmente me convenci de que a paixão ideológica era um limite que eu não gostaria de impor à minha carreira docente, e que a honestidade com nossas próprias posições é muito mais importante que manter relações profissionais por conveniência. Por mais difícil que tenha sido me desligar de certas ideias e dos vínculos que elas suscitavam, não me pareceu que fosse possível fazer algo diferente.

Em 2014, quando já estava me distanciando, foi publicado um livro em que faço uma “crítica da esquerda por dentro”, resultado de uma dissertação de mestrado em cinema que escrevi cinco anos antes. Este é um gênero de discurso teórico que sempre acompanhou as oscilações políticas da esquerda, pelo menos desde que o seu conceito apareceu, na Revolução Francesa. Com a esquerda brasileira mergulhada em uma crise notória desde o impeachment de Dilma, o gênero voltou a ser praticado e apreciado no país. São cada vez mais comuns os textos em que encontramos sentenças como “a esquerda deveria…”, “a esquerda precisa…”, “nós da esquerda…” etc.

Embora várias dessas reflexões sejam interessantes, já não consigo não achar aborrecidos os discursos em que os autores condicionam suas falas ao pertencimento a um grupo. Penso que a liberdade de pensamento – se verdadeira – deve incluir a possibilidade de que nossas ideias contrariem as pessoas com quem costumamos dialogar. Mais que isso, quando pensamos livremente, deve ser sempre possível que as nossas ideias decepcionem os nossos próprios desejos. Isso acontece quando precisamos admitir um equívoco ou uma escolha errada. Por vezes, nesses embates conscientes, contrariamos sentimentos que submetem a nossa razão e a deixam estéril.

Abandonar o Partido Comunista quando se sabe que ele não está disposto a criticar ditaduras (como não fez Sartre) ou terminar um casamento falido e irrecuperável são atitudes deste tipo: corajosas e honestas, que colocam a razão acima de nossos sentimentos mais fortes. Na política ou nas relações amorosas, esse comportamento racional é difícil e raro. Mas isso não muda o princípio de que o pensamento deve ser livre o bastante para que nos tire de lugar, transformando-nos. Não existe pensamento verdadeiro que nos deixe imóveis. Daí o motivo pelo qual incorremos em tantas falácias quando estamos na defensiva. Quem quer se defender acima de tudo, não se importa com as regras da lógica.

Pouco antes da reeleição de Dilma, tive a oportunidade de jantar com Demétrio Magnoli, um dos maiores críticos dos governos petistas na mídia. Obviamente eu não tenho 1% da fama de Leandro Karnal, e não quero fazer uma comparação. Mas a polêmica no Facebook me lembrou que postei uma foto deste jantar com Demétrio, na época em que ele ocorreu, já sabendo que seria reprovado por vários conhecidos de esquerda. Sabia disso porque eu mesmo, algum tempo antes, sentia rejeição por Demétrio antes mesmo de ouvi-lo, apenas porque não deveria concordar com ele.

“Não se deve estar com quem você não concorda.” Difícil conceber uma falácia mais antidemocrática e irracional que esta. O jantar com Demétrio Magnoli foi memorável, e sua agradável inteligência me fez ter vergonha de já ter deixado a paixão ideológica se sobrepor à minha capacidade de estar aberto ao diálogo.

Não conheço a fundo o que Karnal escreveu contra a Operação Lava Jato, mas o seu gesto de publicar a foto com Sérgio Moro deveria ser visto como uma atitude democrática. Criticá-lo por estar à mesa com Moro é uma tolice que ignora o valor da diplomacia, excluindo a possibilidade da convivência amistosa entre indivíduos que, supostamente, não partilham as mesmas convicções políticas. Ao apagar a foto, porém, Karnal apagou também a sua imagem de democrata, e a substituiu por uma nova imagem que mostra alguém mais preocupado em manter sua rede de admiradores intacta. Desfecho lastimável para um episódio que só existiu por causa da irracionalidade que domina as interações da sociedade em rede.

Rodrigo Cássio

Professor e pesquisador. Autor de Filmes do Brasil Secreto (Ed. UFG).

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