Provavelmente o Brasil não desenvolveu a ficção científica devido ao seu apego aos cânones da Semana de 22 e ao "realismo de denúncia".
Definirei ficção científica primeiramente dizendo que ela não é. A ficção científica não pode ser definida como “uma narrativa que se passa no futuro”, [nem exige] que haja uma tecnologia ultra-avançada. Na verdade, deve ser um mundo fictício, uma sociedade que não existe de fato, entretanto é baseada em nossa sociedade conhecida… esta é a essência da ficção científica: o deslocamento conceitual na sociedade de modo que o resultado seja uma nova sociedade gerada na mente do autor, transferida para o papel, e que do papel seja como um choque convulsivo na mente do leitor, o choque do desrreconhecimento.
– The Collected Stories of Philip K. Dick
Ao que parece, alguns gêneros literários de fato não vingam no ambiente brasileiro, por mais vigorosos que sejam, por vezes, algumas iniciativas ou projetos estéticos isolados. Talvez o que primeiro nos venha à mente sejam as tentativas de criação de um épico distintamente brasileiro que permitisse que nossa literatura figurasse dentre aquelas que sintetizaram a unidade de um ideário e a substância de uma identidade numa obra fundante. Afinal, falando honestamente, não há como sermos indulgentes para nós mesmos e atribuir a Caramuru (1781), de Santa Rita Durão, tamanha responsabilidade.
Todavia, não é ao gênero épico que nossa observação se refere, mas sim, e de maneira geral, à ficção científica, e mais especificamente um seu subgênero, a distopia. A reflexão nasce da curiosa convergência editorial de obras paradigmáticas do gênero nos últimos meses.
Primeiramente, o romance Nós, de Yevgeny Zamyatin, publicado originalmente em 1924, e a ser lançado em nova edição, com tradução direta do russo, pela editora Aleph. Censurado na União Soviética, a narrativa se centra num mundo cujo critério predominante é a produtividade racionalizante, inteiramente desprovida do sentimento. Numa cidade inteiramente planejada, as pessoas, identificadas apenas por números, vivem em apartamentos transparentes, com seus raros momentos de privacidade e intimidade determinados pelo Estado do Benfeitor, que, inclusive, teve êxito em promover a alienação e segregação do homem para com a natureza por meio da construção de uma Muralha Verde. O romance High Rise, do escritor britânico J.G. Ballard, retoma essa premissa quando narra a vida num edifício racionalmente construído[1], que, desconsiderando os aspectos não racionais da natureza humana, sucumbe sob o peso dos próprios esquemas lógicos e hierárquicos.
A segunda reedição (ainda este ano, também pela Aleph), a qual merece toda atenção dos leitores, é a magnus opum do escritor polonês Stanislaw Lem, Solaris, publicada originalmente em 1961 e posteriormente eternizada no filme de Tarkovski. A maestria do autor, ao longo de seu projeto literário, consistiu na sua capacidade de entrelaçamento entre a ficção científica e o questionamento metafísico e teológico. O planeta Solaris, por exemplo, é aparentemente um organismo unicelular divino, uma espécie de oceano primordial genesíaco, que não somente é autoconsciente, mas, a julgar pelas réplicas das memórias dos exploradores enviados para pesquisá-lo, também onisciente. Outras obras do autor que revigoraram o gênero, quando de sua publicação, são o romance Memórias encontradas numa banheira (cuja última edição brasileira data da década de 80), no qual Lem sobrepõe o desespero oriundo da ambivalência da técnica – que é, em termos gerais, o domínio da ficção científica – a um universo kafkiano. Também em A voz do mestre, o autor lida com as questões relativas aos limites entre a ciência e a transcendência, e, antecipando as controvérsias éticas atuais no que toca aos interesses científicos e financeiros, explora os dilemas morais com que os cientistas se deparam enquanto instrumentos de poderes e corporações.
E, finalmente, uma publicação recente tem demonstrado como a atual literatura distópica não perdeu vigor com o fim dos totalitarismos do século XX, nem com o fim dos blocos ideológicos homogêneos. Pelo contrário, talvez de fato estejamos testemunhando, no âmbito do gênero romanesco, uma transmutação geral para aquilo que Carren Irr chamou de romance geopolítico.
Em The Mandibles: A family, 2029-2047, Lionel Shriver, conhecida por seu romance Precisamos falar sobre o Kevin, adaptado para filme em 2011, narra a história de Florence Darkly, uma millenial, vive num mundo abalado pela crise econômica de 2029, em que os Estados Unidos se negam a pagar sua dívida nacional. Tendo a América se tornado um pária internacional, e com a crescente marginalização de seus cidadãos, o México constrói uma cerca elétrica para impedir a entrada de refugiados e imigrantes ilegais americanos. Soldados invadem e vasculham as casas, munidos de detectores de metal, para se apropriarem de todo ouro que porventura se encontre em posse individual. O cume da obra é precisamente o reconhecimento do “milagre da civilização” – perspectiva que cobre as páginas de Chesterton e Burke, por exemplo –, já que “o fracasso e a decadência são o estado natural do mundo”.
Mas, retornando à declaração inicial, podemos nos indagar as razões pelas quais a ficção científica, e em especial a distopia, jamais vingou no solo brasileiro. Não ignoramos a existência de obras esparsas e mesmo obscuras como Esfinge (1908), do grande Coelho Neto, ou A desintegração da morte (1981), de Orígenes Lessa, que antecipa em mais de vinte anos, As intermitências da morte (2005), de José Saramago.
A resposta mais superficial talvez seja a disparidade do processo de modernização brasileiro, a qual resultou na precária infraestrutura a nível nacional, que, por sua vez, não possibilitou o contato generalizado com as novas tecnologias. Trata-se evidentemente de uma generalização grosseira das condições industriais e tecnológicas do Brasil. Todavia, como contraposição a esse argumento, é curioso perceber que Stanislaw Lem, por exemplo, trabalhou a partir de suas experiências durante o totalitarismo nazista (que proibira o acesso de jovens poloneses às universidades), quando teve de trabalhar como mecânico e soldador, nas condições mais desfavorecidas possíveis.
Mais provavelmente, porém, o Brasil não desenvolveu a ficção científica devido ao seu apego indelével tanto aos cânones do primitivismo da Semana de 22 quanto ao seu produto residual, o realismo de denúncia. Como declarava o Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura (1962), “o poeta deve participar do processo histórico: o novo é o povo”. Este trocadilho sofrível ainda persiste e norteia nossos círculos intelectuais; e, aparentemente, por “processo histórico”, eles entendem as composições pretensamente literárias que se diluem em meros relatos de minúcias e na indignação calculada contra os canais de comunicação.
Ademais, a única justificativa para a presente miséria na produção cultural literária (condição inegável até mesmo para aqueles cegados pela ideologia) permanece sendo o passado de coups d’État brasileiro – afinal, uma vez que supostamente participam ativamente da história, os poetas e escritores creem que o fluxo de seu pensamento necessariamente sofre interrupção pelas rupturas e descontinuidades na linha temporal.
Com efeito, é inviável uma ficção científica madura numa cultura obcecada por um passado que pouco ou nada explica sobre a decadência de sua presente condição. Os eventos pretéritos, portanto, são não somente o bode expiatório ao qual atribuímos a causa de nossa pobreza narrativa e a unissonância de estilo, mas também uma espécie de retorno ao inorgânico que priva o grosso da atual literatura brasileira de toda forma de inventividade.
De semelhante modo, uma literatura distópica se faz possível quando os escritores percebem os vetores que direcionam certas políticas, atitudes, comportamentos sociais e movimentos e assim antecipam, lógica e imaginativamente, seus resultados. As previsões políticas no ambiente cultural brasileiro, ao menos nas grandes esferas públicas, revelaram-se mais como expressões de wishful thinking do que análises regidas pela seriedade intelectual.
Por fim, consideremos, por exemplo, a obra magistral de J.J. Veiga, que mais do que ninguém soube retratar as mudanças na paisagem, mentalidade e cultura brasileira em obras nas quais o mundo é infestado por tecnologias e invenções que se tornaram detritos ou artefatos incognoscíveis, sendo ora divindades, ora entes malditos.
Para aqueles que hoje desejam desenvolver essa tradição, é necessário retomar as trilhas já abertas por autores competentes, ainda que estreitas e opostas às atuais vias principais.
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NOTA
[1] Analisando os romances de Ballard e de Zamyatin não há como ignorar a analogia que se nos apresenta, de maneira quase súbita, entre as narrativas e o plano piloto de Brasília.
Fabrício de Moraes
Tradutor, doutor em Literatura (UFJF/Queen Mary University of London).
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