Meira Penna desenvolve uma das mais completas análises críticas do patrimonialismo brasileiro.
Comemorou-se no passado 14 de março o centésimo aniversário do embaixador e grande pensador liberal José Osvaldo de Meira Penna. Desde o início dos anos oitenta do século passado, quando o conheci em São Paulo, tenho tido o privilégio de desfrutar da sua amizade.
Meira Penna é um desses raros membros da intelligentsia brasileira comprometido profundamente com a defesa da liberdade. Quando tive o primeiro contato com ele, em 1980, estava à frente da embaixada do Brasil na Polônia. Vivia-se, no país europeu, o clima de glasnost, com as acirradas lutas do velho establishment comunista contra os que demandavam o fim da tutela soviética. Meira Penna conheceu por dentro as desgraças vividas pelos cidadãos comuns no regime comunista. Preocupado com os rumos da abertura brasileira, o nosso autor insistia na necessidade de que as novas gerações conhecessem em profundidade os pensadores liberais clássicos, a começar por John Locke, os pais fundadores americanos, Alexis de Tocqueville e os autores da Escola Austríaca, a começar por Hayek.
O meu amigo propôs a mim e a outros intelectuais a criação da Sociedade Tocqueville, com a finalidade de estimular o surgimento de uma tendência liberal-conservadora que inspirasse as novas gerações. Junto com Antônio Paim e Ubiratan Macedo, o ajudei a elaborar a Carta de Princípios da mencionada entidade, que foi criada em 1986, no Rio de Janeiro e em Brasília, onde ficava a sua residência. Ele foi o presidente-fundador da Sociedade e eu, o primeiro secretário.
Uma característica de Meira Penna é sua generosidade intelectual, que o levou sempre a compartilhar seus pontos de vista com as novas gerações, estimulando-as ao debate aberto e à busca de soluções para a democracia brasileira. Pelo seu intermédio conheci figuras destacadas do liberal-conservadorismo francês como Henry de Lesquen (presidente do Clube de l’Horloge, em Paris) e o empresário Guy Plunier (fundador e presidente da Sociedade Tocqueville na França). Foi numa reunião da Sociedade Mont Pèlerin, no Rio de Janeiro, em 1993, que Meira Penna me apresentou a este último, tendo recebido dele, na sua casa em Carnac, na Normandia, orientações de grande valor para o conhecimento do Sitz im Leben de Tocqueville.
José Osvaldo de Meira Penna nasceu no Rio de Janeiro a 14 de março de 1917. Concluiu o Curso de Direito na Universidade dessa cidade, em 1939. Ingressou por concurso na carreira diplomática em 1938, tendo permanecido nela durante mais de quarenta anos, até sua aposentadoria, ocorrida em 1981. Cursou estudos complementares na Universidade de Columbia (New York), no Instituto Jung de Psicologia (Zurich) e na Escola Superior de Guerra (Rio de Janeiro).
Meira Penna é um dos mais importantes e polêmicos ensaístas brasileiros. Seus livros, ensaios e artigos cobrem ampla gama de assuntos. Sua produção intelectual pode ser aglutinada ao redor de três grandes centros de interesse: a história, a filosofia e a psicologia social (notadamente as obras dedicadas à reflexão sobre a política e a ética pública) e a sociologia.
No campo da história, sobressaem as seguintes obras: Shangai, O sonho de Sarumoto e Quando mudam as capitais. No terreno da filosofia e da psicologia social, pode-se mencionar Elogio do burro, O Evangelho segundo Marx, Opção preferencial pela riqueza, Decência já, O espírito das revoluções, Em berço esplêndido e A ideologia do século XX. No campo sociológico, sobressaem Segurança e desenvolvimento, Psicologia do subdesenvolvimento, O Brasil na idade da razão, O Dinossauro e Utopia brasileira.
A crítica de Meira Penna ao Estado patrimonial
O Brasil não chegou ainda à idade da razão. O cogito ergo sum cartesiano foi substituído, na nossa sociedade presidida pelas relações afetivas, pelo coito ergo sum macunaímico. Essa seria a primeira caracterização que Meira Penna formula em relação à nossa realidade. Não se trata, evidentemente, de atitude puramente negativista em face do país. A atitude do nosso autor é crítica, não perdoa as incoerências nem dá trégua ao bom-mocismo, mas trata-se de uma atitude crítica construtiva. Se quisermos sair do marasmo secular em que estamos confinados, como eterno país do futuro, devemos olhar com clareza para dentro de nós mesmos, conhecermos a fundo nossas potencialidades e mazelas, a fim de remediar as segundas e fazer crescer as primeiras. É nesse contexto de ética intelectual weberiana que se situa a crítica de Meira Penna ao patrimonialismo.
A análise de Meira Penna acerca do Estado patrimonial inspira-se, basicamente, na crítica de Tocqueville ao centralismo francês. Meira Penna, aliás, inicia seu livro O Dinossauro (1988) com a seguinte paráfrase, tirada de A democracia na América: “Sobre essa raça de homens opera um poder imenso e tutelar que se atribui a obrigação exclusiva de gratificá-los e presidir sobre seu destino. Esse poder é absoluto, minucioso, regular, providente e suave. Seria como uma autoridade de pai se, como essa autoridade, fosse seu propósito preparar os homens para a idade adulta; mas ele procura, ao contrário, mantê-los em perpétua infância: contenta-se em que o povo se divirta, contanto que não pense em outra coisa senão divertimento. Para sua felicidade tal governo trabalha com prazer, mas deseja ser o agente único e árbitro exclusivo dessa felicidade… Assim cada dia torna menos útil e menos freqüente o exercício da livre capacidade do homem; circunscreve a vontade num âmbito cada vez mais estreito e gradualmente priva o homem de todos os usos que, de si mesmo, pode fazer. O princípio da igualdade preparou os homens para essas coisas, os predispôs para suportá-las e freqüentemente para considerá-las como bens”.
Não podia ser outra a fonte de inspiração do nosso autor na sua crítica ao patrimonialismo, levando em consideração que O Dinossauro constitui, no sentir dele, “a minha primeira contribuição para a Coleção do pensamento neoliberal ou liberal-conservador, que a Sociedade Tocqueville pretende editar”.
Lembremos que a mencionada Sociedade tinha sido criada em 1986, sob a inspiração de Meira Penna, por alguns intelectuais (entre os quais eu próprio me encontrava), com o propósito, como frisava a Carta de Princípios, de “contribuir, pelo seu exemplo, no sentido de que as diversas correntes em que se divide a opinião nacional sejam levadas a explicitar corretamente os princípios em que se louvam”, a fim de que fiquem claras as diferenças entre socialistas e liberais, no que se refere à construção do Estado. Este, pelos primeiros, sempre foi entendido como realidade mais forte do que a sociedade, enquanto que, para os segundos, deve estar a serviço da mesma. Segundo rezava mais adiante a Carta, “a realidade do Estado patrimonial burocratizado configura ainda (…) o complexo de clã (Oliveira Vianna), em que predominam as funções afetivas e os critérios concretos de simpatia ou antipatia, no relacionamento pessoal privilegiado, em detrimento dos princípios abstratos de obediência à lei, de ordem, de responsabilidade e de justiça. Ainda existimos em berço esplêndido, sob a proteção do clã familiar. Quem não tem pai, padrinho ou patrono não tem vez. Só entramos parcialmente na Idade da Razão. A nossa modernização se processou a médias. O anacronismo e defasagem de nosso desenvolvimento cultural e mental é o que abre as portas à tentação totalitária”.
Em que consiste a essência do patrimonialismo? Meira Penna, em O Dinossauro, considera que foi Max Weber quem melhor a definiu. “Nesse sistema poderes particulares e as vantagens econômicas correspondentes são apropriadas, isto é, tornam-se propriedade particular do Chefe. Weber discute com certo pormenor a maneira como se processa essa apropriação. Vemos, no caso do Brasil, que a descrição se enquadra com bastante exatidão no que ocorre em nosso regime clientelista (…)”.
Alternativas ao patrimonialismo
Meira Penna encontra na difusão das luzes da Razão no seio da sociedade brasileira a solução para as contradições e irracionalidades ensejadas pela nossa tradição patrimonialista. O que precisamos é, com dois séculos de atraso, da entrada definitiva do Brasil na Idade da Razão. É o que nosso autor denomina de Revolução do Lógos.
A proposta de Meira Penna aponta para um processo educacional que modifique a mentalidade. Somente assim garantir-se-á uma solução de fundo ao problema do Estado patrimonial, que repousa em hábitos administrativos sedimentados ao longo dos séculos. Trata-se de uma proposta de pedagogia social e política. É o ponto que nosso pensador destaca no seguinte trecho: “A pergunta natural para quem, de frente, fita o Dinossauro anteriormente descrito é a seguinte: Que fazer? Como caçar o monstro? Como eliminá-lo? Como diminuir o empreguismo, banir o clientelismo, combater o nepotismo, selecionar os melhores, aumentar a dedicação dos servidores, apressar e simplificar os processos, suprimir as tolices, racionalizar os serviços, reduzir o poder do Estado? Não se trata tanto, a meu ver, de tomar esta ou aquela medida legal corretiva quanto de mudar a mentalidade. Algo que virá lentamente com a educação, com o esforço consciente do governo e com o próprio desenvolvimento. Uma sociedade liberal moralmente estruturada poderá superar o estágio da mamãezada patrimonialista. Mas não é o caso de debater os remédios. Todo mundo sabe quais são, sobretudo se pertence à própria classe(…)”.
Duas instituições nosso autor enxerga para, a partir delas, deflagrar o amplo processo educativo de que o Brasil carece: uma Escola Nacional de Administração, destinada à formação da elite técnica civil de que o Estado carece, e um Instituto Superior de Ciência Política, destinado à formação da nova classe política. Ambas as instituições foram inspiradas, ao nosso ver, na experiência que Meira Penna teve no Itamaraty como diplomático de carreira. O Instituto Rio Branco representa, na burocracia brasileira, o mais bem sucedido intento de escola de altos estudos para formação de pessoal técnico a serviço do Estado. Diríamos que é uma das instâncias profissionalizantes que mais se aproximam, na nossa sociedade, do ideal burocrático-racional weberiano.
A primeira das instituições apontadas, a Escola Nacional de Administração proposta por Meira Penna, encontra uma outra fonte de inspiração: a École National d’Administration francesa, bem como a nossa Fundação Getúlio Vargas e a própria Escola Superior de Guerra. Tal instituição “assumiria uma função precisa e nitidamente delimitada: assegurar o recrutamento e a formação da fração superior do funcionalismo civil”. A Escola apontada, como a ENA francesa, adotaria rigorosos critérios de seleção alicerçados exclusivamente na capacidade dos candidatos, desmontando portanto qualquer mecanismo familístico ou clientelista.
A segunda das instituições propostas, o Instituto Superior de Ciência Política, encontrou inspiração imediata na Escola Superior de Guerra e na Escola de Governo de Harvard. Meira Penna parte do seguinte princípio filosófico, herdado de Sócrates e Platão: “a boa política pode ser ensinada”. Ele formula nos seguintes termos seu projeto de Instituto: “(…) o que apresento como proposta idônea é a organização de uma Escola de Altos Estudos Políticos, funcionando no quadro da Universidade de Brasília e sediada na capital. Seu propósito central seria constituir um fulcro de pesquisa e uma ponte entre a universidade, como mais alta instituição educacional, a meio caminho entre a esfera privada e a esfera pública, e o mundo da política”.
O Instituto apontado buscaria profissionalizar a atividade político-administrativa pelo estudo e pela pesquisa. Na trilha do princípio de Bacon de que conhecimento é poder, a ciência política permite, hoje, desenvolver um treinamento sério para o serviço público.
Conclusão
Meira Penna, graças ao seu conhecimento aprofundado do serviço público e da máquina administrativa do Estado, desenvolve uma das mais completas análises críticas do patrimonialismo brasileiro. Sua contribuição coloca-o junto dos que se destacaram, ao longo dos últimos sessenta anos, no estudo da nossa tradição política: Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Raimundo Faoro, Simon Schwartzman, Guerreiro Ramos, Vianna Moog, Caio Prado Júnior, Miguel Reale, João Camillo de Oliveira Torres, Antônio Paim, Fernando Uricoechea, Wanderley-Guilherme dos Santos, Celso Lafer, Bolívar Lamounier e outros.
A análise efetivada por Meira Penna não faz concessões ao bom-mocismo ou ao politicamente correto. Corajosa atitude de quem, na casa dois oitenta anos, ainda não perdeu a capacidade de indignação diante das irracionalidades do nosso Leviatã e dos hábitos tortos por ele estimulados no seio da sociedade brasileira. As propostas apresentadas pelo autor situam-se no contexto do que o saudoso Roque Spencer Maciel de Barros denominava de “a ilustração brasileira”, e que Meira Penna denomina de “a idade da Razão”.
Na trilha da lição aprendida do mestre embaixador, de quem sempre recebi estímulo para meus estudos sobre o liberalismo, vou me permitir uma observação crítica. Não bastam, no combate ao Estado patrimonial, a meu ver, medidas no terreno de uma nova paideia que aponte para a formação de uma elite civil e política. O ponto que me parece fundamental é que essas medidas venham acompanhadas de um aperfeiçoamento da representação e da vida político-partidária, sem as quais não se renova a capacidade da nossa sociedade para domar o dinossauro patrimonialista.
Falta-nos, no Brasil atual, como dizia Tocqueville em relação à França da sua época, construir o homem político, empreendimento que tanto ele como seus mestres doutrinários entendiam em duas etapas, intimamente correlacionadas: ilustrada e institucional. Não há dúvida que é importante a instância ilustrada, concretizada, no nosso caso, nas propostas apresentadas por Meira Penna na sua obra. Mas falta-nos muito caminho para percorrer no que tange à questão do aperfeiçoamento das instituições que no Brasil garantam o exercício da liberdade e da democracia. Sem aperfeiçoarmos o sistema representativo e a vida político-partidária, terminarão vingando soluções aventureiras de rousseaunianismo caboclo, como a que acometeu a Venezuela bolivariana.
Neste campo, não podemos deixar para depois, como filigrana jurídica, a discussão dos mecanismos institucionais e das reformas que precisam ser feitas. Este aspecto é tão fundamental quanto a Revolução do Lógos proposta por Meira Penna.
Ricardo Vélez-Rodríguez
Colombiano, militou na extrema-esquerda até o início dos anos 70. Estudou pensamento brasileiro na PUC-RJ e foi professor da Universidade Federal de Juiz de Fora. Publicou em 2015 A grande mentira: Lula e o patrimonialismo petista. Colabora com o Estadão e outros veículos.
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