O que os bem-intencionados da Terra preferem é tentar calar os opositores na porrada.
“Assim morre a liberdade, sob um estrondoso aplauso”. A frase, melodramática, dita num filme ruim por uma atriz bela, porém pouco inspirada, parece perfeita para definir este mês de março, também ele cheio de melodrama e muito pouco inspirado, embora nada belo: minha impressão é de que nunca antes esteve tão claro o “novo consenso” ocidental em torno da questão do valor do debate e da liberdade de expressão – a saber, de que violência e intimidação, seja por ação direta ou por meio dos agentes do Estado, constituem modos legítimos de suprimir dados e opiniões; que debates não são debates, mas pantomimas; e que a repugnância moral, sincera ou forçada, sobrepuja a lógica como critério para sopesar argumentos.
A fantástica apoteose do calaboquismo bem-intencionado, ou do bom-mocismo intransigente, começou logo no dia primeiro do mês, quando uma teleconferência do filósofo Peter Singer, para uma audiência numa universidade canadense, foi inviabilizada pela balbúrdia criada no auditório por manifestantes – numa aplicação exemplar da estratégia estudantil “quatro pernas bom, duas pernas ruim” de interdição de debates, descrita com maestria em A revolução dos bichos, de George Orwell.
Como as ideias de Singer sobre eutanásia e a admissibilidade do infanticídio são, prima facie, repugnantes tanto para a direita conservadora quanto para a esquerda politicamente correta (ele seria um “capacitista”, de acordo com o léxico dessa gente), fica difícil atribuir com precisão a paternidade da sabotagem.
Mas a esquerda logo emergiu como líder na disputa. Um dia depois, violência – não mais restrita ao campo verbal – foi usada para impedir Charles Murray, um dos autores do infame volume A curva do sino, de participar de um debate em Middlebury College, no Estado de Vermont, Estados Unidos. A professora que deveria ter mediado o debate, Allison Stanger, descreveu o ocorrido da seguinte forma para The New York Times:
O protesto foi bem-sucedido em interromper a palestra. Fomos forçados a nos deslocar para outro local e transmitir nossa discussão pela internet, enquanto ativistas que tinham deduzido onde estrávamos batiam nas janelas e disparavam alarmes de incêndio. Mais tarde, enquanto o Dr. Murray e eu deixávamos o prédio (…) a turba nos atacou.
A maior parte do ódio estava focalizada no Dr. Murray, mas quando segurei seu braço direito para protegê-lo e garantir que não nos separássemos, a multidão se voltou contra mim. Alguém puxou meu cabelo, enquanto outros me empurravam. Temi por minha vida…
Alguns comentaristas de esquerda tentaram, mais tarde, defender o ponto de vista que, se a violência física é intolerável e inaceitável, as ideias de Murray “também são”. Claro! Escrever um livro ruim e tentar linchar uma professora universitária são ofensas idênticas. Óbvio! Como não pensamos em algo assim antes? Isso tudo me faz lembrar de um antigo diálogo de uma história em quadrinhos do Justiceiro, em que um coadjuvante diz ao anti-herói sanguinário da Marvel que, se ele não recuperasse logo algum senso de proporção e equilíbrio, um dia ainda acabaria fuzilando pedestres por atravessar a rua fora da faixa.
Para quem não está familiarizado, A curva do sino é um livro de ciência social e psicologia dos que se costumam chamar de “controversos”, que busca demonstrar a existência de uma espécie de elite intelectual hereditária; muitas de suas ideias foram assimiladas pelo discurso racista. Segundo o veredicto da RationalWiki, “boa parte da pesquisa reunida em A Curva do Sino não está em disputa, mas as conclusões tiradas dela são consideradas, em geral, lixo”.
Sigamos o calendário. No dia 13, encontramos uma nota no site de The Economist com o título “The Hounding of Owen Jones”. “Hounding” é um verbo cujo significado em português combina os efeitos de “perseguir”, “caçar” e “assediar”. Uma das acepções do Merriam-Webster é “mover ou afetar por meio de assédio constante”. O artigo se refere ao assédio sofrido por Owen Jones, um articulista do Guardian, não exatamente o mais conservador dos jornais britânicos, a partir do momento em que passou a tecer críticas ao líder do Partido Trabalhista, Jeremy Corbyn. O nível de agressão verbal atingiu um ponto em que Jones desistiu de manter uma presença nas mídias sociais. “Owen Jones abandona mídia social em meio a ameaças de tortura e morte”, disse outro veículo da imprensa britânica, The Telegraph. The Economist reproduz uma das postagens finais do jornalista no Facebook:
Todo dia encontro desconhecidos furiosos gritando que, por um lado, sou culpado pela destruição do Partido Trabalhista e, pelo outro, que sou um carreirista vendido para a direita e (…) possivelmente na folha de pagamento do governo de Israel (…) o que une esses dois grupos é uma incapacidade crônica de aceitar discordância política em boa fé. Nada disso: tem de haver alguma motivação sinistra por trás. Suas crenças são tão retas e puras que a única razão possível para o desacordo é malícia ou ganância (…) somados aos costumeiros extremistas de direita que mandam descrições cada vez mais criativas de como vão me torturar e matar, não creio mais que a mídia social seja uma ferramenta útil para debate político…
O autor da nota para a revista suplementa deste modo as palavras de Jones: “Se pensarmos que os motivos dos outros são suspeitos, não pode mais existir confiança”.
Qual o denominador comum desses eventos? Eu sugeriria que é uma transformação radical no modo como as novas gerações encaram argumentos e debates: o valor de um argumento não está mais na verdade de suas premissas ou na cogência de sua conclusão, mas em sua eventual implicação política. De fato, o valor de um argumento equivale a sua suposta implicação política: a questão “é verdade” fica subordinada à questão de “a quem serve”.
Se se descobrir uma forma de a doutrina da Terra Plana ser usada a favor do combate à homofobia ou contra o Estatuto do Desarmamento, logo haverá grupos organizados (de esquerda ou direita, dependendo do caso) tentando incluí-la no currículo escolar. Mas se uma ideia serve às Forças do Mal, então é imoral dar-lhe ouvidos – nem que seja para entender suas causas e procurar suas falhas. E mesmo que seja verdade.
Quanto aos debates, eles deixam de ser vistos como espaços de esclarecimento (ou, no mínimo, de diálogo), e passam a ser vistos como palanques, performances, plataformas. Charles Murray é vilipendiado porque, dizem seus críticos, suas ideias “habilitam”, ou “autorizam”, ou “normatizam” atos de racismo. Peter Singer é atacado porque sua visão mecanicista da ética gera conclusões perturbadoras, ou mesmo repugnantes, para o senso-comum. Mas a oportunidade de confrontá-los no campo das ideias – de questionar seus dados, pôr em dúvida suas conclusões, expor os elos fracos de suas cadeias de raciocínio – é descartada, a priori, como inútil.
O que os bem-intencionados da Terra preferem é tentar calá-los na porrada. Se algumas pessoas ficam com a impressão de que o recurso à interdição e à violência indica indigência mental ou falta de argumentos dos santos inquisidores, ora bolas, elas que calem a boca ou apanhem também. Afinal, qual o problema em esmurrar um nazista (ou comunista)?
Às vezes há, mesmo, um germe de sagacidade nessa recusa ao debate: não há como negar que muitos supostos “debates” são, na realidade, espetáculos armados de propaganda. Mas, mesmo nesses casos, a violência só faz emprestar legitimidade ao que é duvidoso: em vez de fazer uma pregação irrelevante para uma plateia de convertidos (e a pregação é irrelevante exatamente porque só os já convertidos a levam a sério), o demagogo tem sua voz ampliada pelos atos dos que se propunham a combate-lo. O infame Milos Yiannopoulos é um caso clássico desse princípio da massa de pão, que mais cresce quanto mais apanha.
Agora, em 5 de abril, completam-se 100 anos do nascimento de Robert Bloch, prolífico escritor norte-americano, mais conhecido como autor do romance que inspirou o filme Psicose, de Alfred Hitchcock, mas que também colaborou com séries de TV como Jornada nas Estrelas e Galeria do Terror. No prefácio de um livro publicado em 1994, ano de sua morte, que reunia seus contos da juventude – intitulado, adequadamente, The early fears –, Bloch adverte que esses trabalhos dos anos 30 a 50 não eram nada “politicamente corretos”. E complementa:
Essas questões não preocupavam a mim ou a meus colegas, numa época em que nosso principal objetivo era evitar a baba dos censores lascivos que farejavam sexo, e não a estridência de ativistas profissionais (…) Mas hoje a coisa da moda é se sentir ultrajado.
O paralelo entre censores babões em uma obscura busca freudiana por cenas de sexo ou de supostas insinuações de sexo que pudessem cortar, de um lado, e ativistas em busca de passagens ofensivas ou supostamente ofensivas que possam denunciar, de outro, é justo? Alguém poderia interpretar a manifestação de Bloch como rabugice conservadora da terceira idade. Quando escreveu essas palavras, afinal, ele tinha já 88 anos. Mas é sempre bom lembrar que, não raro, a idade também oferece um senso de perspectiva que escapa à juventude.
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.